# Raul Pompéia, "O Ateneu"
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# Last edited on 1998-07-09 20:26:29 by stolfi

I

"Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem
para a luta." Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que
me despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na
estufa de carinho que é o regime do amor doméstico, diferente do que
se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cuidados
maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais
sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera
brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso.
Lembramo-nos, entretanto, com saudade hipócrita, dos felizes tempos;
como se a mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto, não nos houvesse
perseguido outrora e não viesse de longe a enfiada das decepções que
nos ultrajam.

Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que
nos alimentam, a saudade dos dias que correram como melhores. Bem
considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas. Feita a
compensação dos desejos que variam, das aspirações que se transformam,
alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base fantástica
de esperanças, a atualidade é uma. Sob a coloração cambiante das
horas, um pouco de ouro mais pela manhã, um pouco mais de púrpura ao
crepúsculo -- a paisagem é a mesma de cada lado beirando a estrada da
vida.

Eu tinha onze anos.

Freqüentara como externo, durante alguns meses, uma escola familiar do
Caminho Novo, onde algumas senhoras inglesas, sob a direção do pai,
distribuíam educação à infância como melhor lhes parecia. Entrava às
nove horas, timidamente, ignorando as lições com a maior regularidade,
e bocejava até às duas, torcendo-me de insipidez sobre os carcomidos
bancos que o colégio comprara, de pinho e usados, lustrosos do contato
da malandragem de não sei quantas gerações de pequenos. Ao meio-dia,
davam-nos pão com manteiga. Esta recordação gulosa é o que mais
pronunciadamente me ficou dos meses de externato; com a lembrança de
alguns companheiros -- um que gostava de fazer rir à aula, espécie
interessante de mono louro, arrepiado, vivendo a morder, nas costas da
mão esquerda, uma protuberância calosa que tinha; outro adamado,
elegante, sempre retirado, que vinha à escola de branco, engomadinho e
radioso, fechada a blusa em diagonal do ombro à cinta por botões de
madrepérola. Mais ainda: a primeira vez que ouvi certa injúria crespa,
um palavrão cercado de terror no estabelecimento, que os partistas
denunciavam às mestras por duas iniciais como em monograma.

Lecionou-me depois um professor em domicílio.

Apesar deste ensaio da vida escolar a que me sujeitou a família, antes
da verdadeira provação, eu estava perfeitamente virgem para as
sensações novas da nova fase. O internato! Destacada do conchego
placentário da dieta caseira, vinha próximo o momento de se definir a
minha individualidade. Amarguei por antecipação o adeus às primeiras
alegrias; olhei triste os meus brinquedos, antigos já! os meus
queridos pelotões de chumbo!  espécie de museu militar de todas as
fardas, de todas as bandeiras, escolhida amostra da força dos estados,
em proporções de microscópio, que eu fazia formar a combate como uma
ameaça tenebrosa ao equilíbrio do mundo; que eu fazia guerrear em
desordenado aperto, -- massa tempestuosa das antipatias geográficas,
encontro definitivo e ebulição dos seculares ódios de fronteira e de
raça, que eu pacificava por fim, com uma facilidade de Providência
Divina, intervindo sabiamente, resolvendo as pendências pela concórdia
promíscua das caixas de pau. Força era deixar à ferrugem do abandono o
elegante vapor da linha circular do lago, no jardim, onde talvez não
mais tornasse a perturbar com a palpitação das rodas a sonolência
morosa dos peixinhos rubros, dourados, argentados, pensativos à sombra
dos tinhorões, na transparência adamantina da água...

Mas um movimento animou-me, primeiro estímulo sério da vaidade:
distanciava-me da comunhão da família, como um homem! ia por minha
conta empenhar a luta dos merecimentos; e a confiança nas próprias
forças sobrava. Quando me disseram que estava a escolha feita da casa
de educação que me devia receber, a notícia veio achar-me em armas
para a conquista audaciosa do desconhecido.

Um dia, meu pai tomou-me pela mão, minha mãe beijou-me a testa,
molhando-me de lágrimas os cabelos e eu parti.

Duas vezes fora visitar o Ateneu antes da minha instalação.

Ateneu era o grande colégio da época. Afamado por um sistema de
nutrido reclame, mantido por um diretor que de tempos a tempos
reformava o estabelecimento, pintando-o jeitosamente de novidade, como
os negociantes que liquidam para recomeçar com artigos de última
remessa; o Ateneu desde muito tinha consolidado crédito na preferência
dos pais, sem levar em conta a simpatia da meninada, a cercar de
aclamações o bombo vistoso dos anúncios.

O Dr. Aristarco Argolo de Ramos, da conhecida família do Visconde de
Ramos, do Norte, enchia o império com o seu renome de pedagogo. Eram
boletins de propaganda pelas províncias, conferências em diversos
pontos da cidade, a pedidos, à substância, atochando a imprensa dos
lugarejos, caixões, sobretudo, de livros elementares, fabricados às
pressas com o ofegante e esbaforido concurso de professores
prudentemente anônimos, caixões e mais caixões de volumes cartonados
em Leipzig, inundando as escolas públicas de toda a parte com a sua
invasão de capas azuis, róseas, amarelas, em que o nome de Aristarco,
inteiro e sonoro, oferecia-se ao pasmo venerador dos esfaimados de
alfabeto dos confins da pátria. Os lugares que os não procuravam eram
um belo dia surpreendidos pela enchente, gratuita, espontânea,
irresistível! E não havia senão aceitar a farinha daquela marca para o
pão do espírito. E engordavam as letras, à força, daquele pão. Um
benemérito. Não admira que em dias de gala, íntima ou nacional, festas
do colégio ou recepção da coroa, o largo peito do grande educador
desaparecesse sob constelações de pedraria, opulentando a nobreza de
todos os honoríficos berloques.

Nas ocasiões de aparato é que se podia tomar o pulso ao homem. Não só
as condecorações gritavam-lhe do peito como uma couraça de grilos:
Ateneu! Ateneu! Aristarco, todo era um anúncio. Os gestos, calmos,
soberanos, eram de um rei -- o autocrata excelso dos silabários; a
pausa hierática do andar deixava sentir o esforço, a cada passo, que
ele fazia para levar adiante, de empurrão, o progresso do ensino
publico; o olhar fulgurante, sob a crispação áspera dos supercílios de
monstro japonês, penetrando de luz as almas circunstantes -- era a
educação da inteligência; o queixo, severamente escanhoado, de orelha
a orelha, lembrava a lisura das consciências limpas -- era a educação
moral. A própria estatura, na imobilidade do gesto, na mudez do vulto,
a simples estatura dizia dele: aqui está um grande homem... não vêem
os cavados de Golias?!... Retorça-se sobre tudo isto um par de
bigodes, volutas maciças de fios alvos, torneadas a capricho, cobrindo
os lábios fecho de prata sobre o silêncio de ouro, que tão belamente
impunha como o retraimento fecundo do seu espírito, -- teremos
esboçado, moralmente, materialmente, o perfil do ilustre diretor. Em
suma, um personagem que, ao primeiro exame, produzia-nos a impressão
de um enfermo, desta enfermidade atroz e estranha: a obsessão da
própria estátua.  Como tardasse a estátua, Aristarco interinamente
satisfazia-se com a afluência dos estudantes ricos para o seu
instituto. De fato, os educandos do Ateneu significavam a fina flor da
mocidade brasileira.

A irradiação da réclame alongava de tal modo os tentáculos através do
país, que não havia família, de dinheiro, enriquecida pela
setentrional borracha ou pela charqueada do sul, que não reputasse um
compromisso de honra com a posteridade doméstica mandar dentre seus
jovens, um, dois, três representantes abeberar-se à fonte espiritual
do Ateneu.

Fiados nesta seleção apuradora, que é comum o erro sensato de julgar
melhores famílias as mais ricas, sucedia que muitas, indiferentes
mesmo e sorrindo do estardalhaço da fama, lá mandavam os filhos. Assim
entrei eu.

A primeira vez que vi o estabelecimento, foi por uma festa de
encerramento de trabalhos.

Transformara-se em anfiteatro uma das grandes salas da frente do
edifício, exatamente a que servia de capela; paredes estucadas de
suntuosos relevos, e o teto aprofundado em largo medalhão, de
magistral pintura, onde uma aberta de céu azul despenhava aos cachos
deliciosos anjinhos, ostentando atrevimentos róseos de carne, agitando
os minúsculos pés e as mãozinhas, desatando fitas de gaza no
ar. Desarmado o oratório, construíram-se bancadas circulares, que
encobriam o luxo das paredes. Os alunos ocupavam a arquibancada.  Como
a maior concorrência preferia sempre a exibição dos exercícios
ginásticos, solenizada dias depois do encerramento das aulas, a
acomodação deixada aos circunstantes era pouco espaçosa; e o público,
pais e correspondentes em geral, porém mais numeroso do que se
esperava, tinha que transbordar da sala da festa para a
imediata. Desta ante-sala, trepado a uma cadeira, eu espiava. Meu pai
ministrava-me informações. Diante da arquibancada, ostentava-se uma
mesa de grosso pano verde e borlas de ouro. Lá estava o diretor, o
ministro do império, a comissão dos prêmios. Eu via e ouvia. Houve uma
alocução comovente de Aristarco; houve discursos de alunos e mestres;
houve cantos, poesias declamadas em diversas línguas. O espetáculo
comunicava-me certo prazer respeitoso. O diretor, ao lado do ministro,
de acanhado físico, fazia-o incivilmente desaparecer na brutalidade de
um contraste escandaloso. Em grande tenue dos dias graves, sentava-se,
elevado no seu orgulho como em um trono. A bela farda negra dos
alunos, de botões dourados, infundia-me a consideração tímida de um
militarismo brilhante, aparelhado para as campanhas da ciência e do
bem. A letra dos cantos, em coro dos falsetes indisciplinados da
puberdade; os discursos, visados pelo diretor, pançudos de sisudez, na
boca irreverente da primeira idade, como um Cendrillon malfeito da
burguesia conservadora, recitados em monotonia de realejo e gestos
rodantes de manivela, ou exagerados, de voz cava e caretas de tragédia
fora de tempo, eu recebia tudo convictamente, como o texto da bíblia
do dever; e as banalidades profundamente lançadas como as sábias
máximas do ensino redentor. Parecia-me estar vendo a legião dos amigos
do estudo, mestres à frente, na investida heróica do obscurantismo,
agarrando pelos cabelos, derribando, calcando aos pés a Ignorância e o
Vício, misérrimos trambolhos, consternados e esperneantes.

Um discurso principalmente impressionou-me. À direita da comissão dos
prêmios, ficava a tribuna dos oradores.  Galgou-a firme, tesinho, O
Venâncio, professor do colégio, a quarenta mil-réis por matéria, mas
importante, sabendo falar grosso, o timbre de independência, mestiço
de bronze, pequenino e tenaz, que havia de varar carreira mais
tarde. O discurso foi o confronto chapa dos torneios medievais com o
moderno certame das armas da inteligência; depois, uma preleção
pedagógica, tacheada de flores de retórica a martelo; e a apologia da
vida de colégio, seguindo-se a exaltação do Mestre em geral e a
exaltação, em particular, de Aristarco e do Ateneu.  "O mestre,
perorou Venâncio, é o prolongamento do amor paterno, é o complemento
da ternura das mães, o guia zeloso dos primeiros passos, na senda
escabrosa que vai às conquistas do saber e da
moralidade. Experimentado no labutar cotidiano da sagrada profissão, o
seu auxílio ampara-nos como a Providência na Terra; escolta-nos
assíduo como um anjo da guarda; a sua lição prudente esclarece-nos a
jornada inteira do futuro. Devemos ao pai a existência do corpo; o
mestre cria-nos o espírito (sorites de sensação), e o espírito, é a
força que impele, o impulso que triunfa, o triunfo que nobilita, o
enobrecimento que glorifica, e a glória é o ideal da vida, o louro do
guerreiro, o carvalho do artista, a palma do crente! A família, é o
amor no lar, o estado é a segurança civil; o mestre, com amor forte
que ensina e corrige, prepara-nos para a segurança íntima inapreciável
da vontade.  Acima de Aristarco -- Deus! Deus tão-somente; abaixo de
Deus -- Aristarco."

Um último gesto espaçoso, como um jamegão no vácuo, arrematou o rapto
de eloqüência.

Eu me sentia compenetrado daquilo tudo; não tanto por entender bem,
como pela facilidade da fé cega a que estava disposto. As paredes
pintadas da ante-sala imitavam pórfiro verde; em frente ao pórtico
aberto para o jardim, graduava-se uma ampla escada, caminho do andar
superior. Flanqueando a majestosa porta desta escada, havia dois
quadros de alto-relevo; à direita, uma alegoria das artes e do estudo;
à esquerda, as indústrias humanas, meninos nus como nos frisos de
Kaulbach, risonhos, com a ferramenta simbólica -- psicologia pura do
trabalho, modelada idealmente na candura do gesso e da inocência. Eram
meus irmãos! Eu estava a esperar que um deles, convidativo, me
estendesse a mão para o bailado feliz que os levava. Oh! que não seria
o colégio, tradução concreta da alegoria, ronda angélica de corações à
porta de um templo, dulia permanente das almas jovens no ritual
austero da virtude!

Por ocasião da festa da ginástica, voltei ao colégio.

O Ateneu estava situado no Rio Comprido, extremo ao chegar aos morros.

As eminências de sombria pedra e a vegetação selvática debruçavam
sobre o edifício um crepúsculo de melancolia, resistente ao próprio
sol a pino dos meios-dias de novembro. Esta melancolia era um plágio
ao detestável pavor monacal de outra casa de educação, o negro Caraça
de Minas. Aristarco dava-se palmas desta tristeza aérea -- a atmosfera
moral da meditação e do estudo, definia, escolhida a dedo para maior
luxo da casa, como um apêndice mínimo da arquitetura.

No dia da festa da educação física, como rezava o programa (programa
de arromba, porque o secretário do diretor tinha o talento dos
programas) não percebi a sensação de ermo tão acentuada em sítios
montanhosos, que havia de notar depois. As galas do momento faziam
sorrir a paisagem. O arvoredo do imenso jardim, entretecido a cores
por mil bandeiras, brilhava ao sol vivo com o esplendor de estranha
alegria; os vistosos panos, em meio da ramagem, fingiam flores
colossais, numa caricatura extravagante de primavera; os galhos
frutificavam em lanternas venezianas, pomos de papel enormes, de uma
uberdade carnavalesca. Eu ia carregado, no impulso da multidão. Meu
pai prendia-me solidamente o pulso, que me não extraviasse.

Mergulhado na onda, eu tinha que olhar para cima, para
respirar. Adiante de mim, um sujeito mais próximo fez-me rir; levava
de fora a fralda da camisa... Mas não era fralda; verifiquei que era o
lenço. Do chão subia um cheiro forte de canela pisada; através das
árvores, com intervalos, passavam rajadas de música, como uma
tempestade de filarmônicas.

Um último aperto mais rijo, estalando-me as costelas, espremeu-me, por
um estreito corte de muro, para o espaço livre.

Em frente, um gramal vastíssimo. Rodeava-o uma ala de galhardetes,
contentes no espaço, com o pitoresco dos tons enérgicos cantando vivo
sobre a harmoniosa surdina do verde das montanhas. Por todos os lados
apinhava-se o povo. Voltando-me, divisei, ao longo do muro, duas
linhas de estrado com cadeiras quase exclusivamente ocupadas por
senhoras, fulgindo os vestuários, em violenta confusão de
colorido. Algumas protegiam o olhar com a mão enluvada, com o leque, à
altura da fronte, contra a rutilação do dia num bloco de nuvens que
crescia do céu. Acima do estrado balouçavam docemente e sussurravam
bosquetes de bambu, projetando franjas longuíssimas de sombra pelo
campo de relva.

Algumas damas empunhavam binóculos. Na direção dos binóculos
distinguia-se um movimento alvejante.  Eram os rapazes. "Aí vêm!
disse-me meu pai; vão desfilar por diante da princesa." A princesa
imperial, Regente nessa época, achava-se à direita em gracioso
palanque de sarrafos.

Momentos depois, adiantavam-se por mim os alunos do Ateneu. Cerca de
trezentos; produziam-me a impressão do inumerável. Todos de branco,
apertados em larga cinta vermelha, com alças de ferro sobre os quadris
e na cabeça um pequeno gorro cingido por um cadarço de pontas
livres. Ao ombro esquerdo traziam laços distintivos das
turmas. Passaram a toque de clarim, sopesando os petrechos diversos
dos exercícios. Primeira turma, os halteres; segunda, as maças;
terceira, as barras.

Fechavam a marcha, desarmados, os que figurariam simplesmente nos
exercícios gerais.

Depois de longa volta, a quatro de fundo, dispuseram-se em pelotões,
invadiram o gramal e, cadenciados pelo ritmo da banda de colegas, que
os esperava no meio do campo, com a certeza de amestrada disciplina,
produziram as manobras perfeitas de um exército sob o comando do mais
raro instrutor.

Diante das fileiras, Bataillard, o professor de ginástica, exultava
envergando a altivez do seu sucesso na extremada elegância do talhe,
multiplicando por milagroso desdobramento o compêndio inteiro da
capacidade profissional, exibida em galeria por uma série infinita de
atitudes. A admiração hesitava a decidir-se pela formosura masculina e
rija da plástica de músculos a estalar o brim do uniforme, que ele
trajava branco como os alunos, ou pela nervosa celeridade dos
movimentos, efeito elétrico de lanterna mágica, respeitando-se na
variedade prodigiosa a unidade da correção suprema.

Ao peito tilintavam-se as agulhetas do comando, apenas de cordões
vermelhos em trança. Ele dava as ordens fortemente, com uma vibração
penetrante de corneta que dominava a distancia, e sorria à docilidade
mecânica dos rapazes. Como oficiais subalternos, auxiliavam-no os
chefes de turma, postados devidamente com os pelotões, sacudindo à
manga distintivos de fita verde e canutilho.

Acabadas as evoluções, apresentaram-se os exercícios. Músculos do
braço, músculos do tronco, tendões dos jarretes, a teoria toda do
corpore sano foi praticada valentemente ali, precisamente, com a
simultaneidade exata das extensas máquinas. Houve após, o assalto aos
aparelhos. Os aparelhos alinhavam-se a uma banda do campo, a começar
do palanque da Regente. Não posso dar idéia do deslumbramento que me
ficou desta parte.  Uma desordem de contorções, deslocadas e
atrevidas; uma vertigem de volteios à barra fixa, temeridades
acrobáticas ao trapézio, às perchas, às cordas, às escadas; pirâmides
humanas sobre as paralelas, deformando-se para os lados em curvas de
braços e ostentações vigorosas de tórax; formas de estatuária viva,
trêmulas de esforço, deixando adivinhar de longe o estalido dos ossos
desarticulados; posturas de transfiguração sobre invisível apoio; aqui
e ali uma cabecinha loura, cabelos em desordem cacheados à testa, um
rosto injetado pela inversão do corpo, lábios entreabertos ofegando,
olhos semicerrados para escapar à areia dos sapatos, costas de suor,
colando a blusa em pasta, gorros sem dono que caíam do alto e juncavam
a terra; movimento, entusiasmo por toda a parte e a soalheira, branca
nos uniformes, queimando os últimos fogos da glória diurna sobre
aquele triunfo espetaculoso da saúde, da força, da mocidade.

O Professor Bataillard, enrubescido de agitação, rouco de comandar,
chorava de prazer. Abraçava os rapazes indistintamente. Duas bandas
militares revezavam-se ativamente, comunicando a animação à massa dos
espectadores. O coração pulava-me no peito com um alvoroço novo, que
me arrastava para o meio dos alunos, numa leva ardente de
fraternidade. Eu batia palmas; gritos escapavam-me, de que me
arrependia quando alguém me olhava.

Deram fim à festa os saltos, os páreos de carreira, as lutas romanas e
a distribuição dos prêmios de ginástica, que a mão egrégia da
Sereníssima Princesa e a pouco menos do Esposo Augusto alfinetavam
sobre os peitos vencedores. Foi de ver-se os jovens atletas aos pares
aferrados, empuxando-se, constringindo-se, rodopiando, rolando na
relva com gritos satisfeitos e arquejos de arrancada; os corredores,
alguns em rigor, respiração medida, beiços unidos, punhos cerrados
contra o corpo, passo miúdo e vertiginoso; outros, irregulares,
bracejantes prodigalizando pernadas, rasgando o ar a pontapés, numa
precipitação desengonçada de avestruz, chegando estofados, com placas
de poeira na cara, ao poste da vitória.

Aristarco arrebentava de júbilo. Pusera de parte o comedimento
soberano que eu lhe admirara na primeira festa.  De ponto em branco,
como a rapaziada, e chapéu-do-chile, distribuía-se numa ubiqüidade
impossível de meio ambiente. Viam-no ao mesmo tempo a festejar os
príncipes com o risinho nasal, cabritante, entre lisonjeiro e irônico,
desfeito em etiquetas de reverente súdito e cortesão; viam-no bradando
ao professor de ginástica, a gesticular com o chapéu seguro pela copa;
viam-no formidável, com o perfil leonino rugir sobre um discípulo que
fugira aos trabalhos, sobre outro que tinha limo nos joelhos, de haver
lutado em lugar úmido, gastando tal veemência no ralho, que chegava a
ser carinhoso.

O figurino campestre rejuvenescera-o. Sentia as pernas leves e
percorria celerípede a frente dos estrados, cheio de cumprimentos para
os convidados especiais e de interjetivos amáveis para
todos. Perpassava como uma visão de brim claro, súbito extinta para
reaparecer mais viva noutro ponto. Aquela expansão vencia-nos; ele
irradiava de si, sobre os alunos, sobre os espectadores, o magnetismo
dominador dos estandartes de batalha. Roubava-nos dois terços da
atenção que os exercícios. pediam; indenizava-nos com o equivalente em
surpresas de vivacidade, que desprendia de si, profusamente, por
erupções de jorro em roda, por ascensões cobrejantes de girândola, que
iam às nuvens, que baixavam depois serenamente, diluídas na viração da
tarde, que os pulmões bebiam. Ator profundo, realizava ao pé da letra,
a valer, o papel diáfano, sutil, metafísico, de alma da festa e alma
do seu instituto.

Uma coisa o entristeceu, um pequenino escândalo. Seu filho Jorge, na
distribuição dos prêmios, recusara-se a beijar a mão da princesa, como
faziam todos ao receber a medalha. Era republicano o pirralho! Tinha
já aos quinze anos as convicções ossificadas na espinha inflexível do
caráter! Ninguém mostrou perceber a bravura.  Aristarco, porém, chamou
o menino à parte. Encarou-o silenciosamente e -- nada mais. E ninguém
mais viu o republicano! Consumira-se naturalmente o infeliz, cremado
ao fogo daquele olhar! Nesse momento as bandas tocavam o hino da
monarquia jurada, última verba do programa.

Começava a anoitecer, quando o colégio formou ao toque de
recolher. Desfilaram aclamados, entre alas de povo, e se foram do
campo, cantando alegremente uma canção escolar.

À noite houve baile nos três salões inferiores do lance principal do
edifício e iluminação no jardim.

Na ocasião em que me ia embora, estavam acendendo luzes variadas de
Bengala diante da casa. O Ateneu, quarenta janelas, resplendentes do
gás interior, dava-se ares de encantamento com a iluminação de fora.
Erigia-se na escuridão da noite, como imensa muralha de coral
flamante, como um cenário animado de safira com horripilações errantes
de sombra, como um castelo fantasma batido de luar verde emprestado à
selva intensa dos romances cavalheirescos, despertado um momento da
legenda morta para uma entrevista de espectros e recordações. Um jacto
de luz elétrica, derivado de foco invisível, feria a inscrição dourada
ATHENÆUM em arco sobre as janelas centrais, no alto do prédio. A uma
delas, à sacada, Aristarco mostrava-se. Na expressão olímpica do
semblante transpirava a beatitude de um gozo superior. Gozava a
sensação prévia, no banho luminoso, da imortalidade a que se julgava
consagrado. Devia ser assim: -- luz benigna e fria, sobre bustos
eternos, o ambiente glorioso do Panteão. A contemplação da posteridade
embaixo.

Aristarco tinha momentos destes, sinceros. O anúncio confundia-se com
ele, suprimia-o, substituía-o, e ele gozava como um cartaz que
experimentasse o entusiasmo de ser vermelho. Naquele momento, não era
simplesmente a alma do seu instituto, era a própria feição palpável, a
síntese grosseira do título, o rosto, a testada, o prestígio material
de seu colégio, idêntico com as letras que luziam em auréola sobre a
cabeça. As letras, de ouro; ele, imortal: única diferença.

Guardei, na imaginação infantil, a gravura desta apoteose com o
atordoamento ofuscado, mais ou menos de um sujeito partindo à meia

noite de qualquer teatro, onde, em mágica beata, Deus Padre
pessoalmente se houvesse prestado a concorrer para a grandeza do
último quadro.

-- Conheci-o solene na primeira festa, jovial na segunda; conheci-o
mais tarde em mil situações, de mil modos; mas o retrato que me ficou
para sempre do meu grande diretor, foi aquele -- o belo bigode branco,
o queixo barbeado, o olhar perdido nas trevas, fotografia estática, na
aventura de um raio elétrico.

É fácil conceber a atração que me chamava para aquele mundo tão
altamente interessante, no conceito das minhas impressões. Avaliem o
prazer que tive, quando me disse meu pai que eu ia ser apresentado ao
diretor do Ateneu e à matrícula. O movimento não era mais a vaidade,
antes o legítimo instinto da responsabilidade altiva; era uma
conseqüência apaixonada da sedução do espetáculo, o arroubo de
solidariedade que me parecia prender à comunhão fraternal da
escola. Honrado engano, esse ardor franco por uma empresa ideal de
energia e de dedicação premeditada confusamente, no calculo pobre de
uma experiência de dez anos.

O diretor recebeu-nos em sua residência, com manifestações ultra de
afeto. Fez-se cativante, paternal; abriu-nos amostras dos melhores
padrões do seu espírito, evidenciou as faturas do seu coração. O
gênero era bom sem dúvida nenhuma; que apesar do paletó de seda e do
calçado raso com que se nos apresentava, apesar da bondosa
familiaridade com que declinava até nós, nem um segundo o destituí da
altitude de divinização em que o meu critério embasbacado o aceitara.

Verdade é que não era fácil reconhecer ali, tangível e em carne, uma
entidade outrora da mitologia das minhas primeiras concepções
antropomórficas; logo após Nosso Senhor, o qual eu imaginara velho,
feiíssimo, barbudo, impertinente, corcunda, ralhando por trovões,
carbonizando meninos com o corisco. Eu aprendera a ler pelos livros
elementares de Aristarco, e o supunha velho como o primeiro, porém
rapado, de cara chupada, pedagógica, óculos apocalípticos, carapuça
negra de borla, fanhoso, onipotente e mau, com uma das mãos para trás
escondendo a palmatória e doutrinando à humanidade o bê-á-bá.

As impressões recentes derrogavam o meu Aristarco; mas a hipérbole
essencial do primitivo transmitia-se ao sucessor por um mistério de
hereditariedade renitente. Dava-me gosto então a peleja renhida das
duas imagens e aquela complicação imediata do paletó de seda e do
sapato raso, fazendo aliança com Aristarco II contra Aristarco I, no
reino da fantasia. Nisto afagaram-me a cabeça. Era Ele! Estremeci.

"Como se chama o amiguinho?" perguntou-me o diretor.

-- Sérgio... dei o nome todo, baixando os olhos e sem esquecer o "seu
criado" da estrita cortesia.

-- Pois, meu caro Sr. Sérgio, o amigo há de ter a bondade de ir ao
cabeleireiro deitar fora estes cachinhos... Eu tinha ainda os cabelos
compridos, por um capricho amoroso de minha mãe. O conselho era
visivelmente salgado de censura. O diretor, explicando a meu pai,
acrescentou com o risinho nasal que sabia fazer: "Sim, senhor, os
meninos bonitos não provam bem no meu colégio..."

-- Peço licença para defender os meninos bonitos... objetou alguém
entrando.

Surpreendendo-nos com esta frase, untuosamente escoada por um sorriso,
chegou a senhora do diretor, D. Ema.  Bela mulher em plena
prosperidade dos trinta anos de Balzac, formas alongadas por graciosa
magreza, erigindo, porém, o tronco sobre quadris amplos, fortes como a
maternidade; olhos negros, pupilas retintas, de uma cor só, que
pareciam encher o talho folgado das pálpebras; de um moreno rosa que
algumas formosuras possuem, e que seria também a cor do jambo, se
jambo fosse rigorosamente o fruto proibido. Adiantava-se por
movimentos oscilados, cadência de minueto harmonioso e mole que o
corpo alternava. Vestia cetim preto justo sobre as formas, reluzente
como pano molhado; e o cetim vivia com ousada transparência a vida
oculta da carne. Esta aparição maravilhou-me.

Houve as apresentações de cerimônia, e a senhora com um nadinha de
excessivo desembaraço sentou-se no divã perto de mim.

-- Quantos anos tem? perguntou-me.

-- Onze anos...

-- Parece ter seis, com estes lindos cabelos.

Eu não era realmente desenvolvido. A senhora colhia-me o cabelo nos
dedos:

-- Corte e ofereça à mamãe, aconselhou com uma carícia; é a infância
que ali fica, nos cabelos louros... Depois, os filhos nada mais têm
para as mães.

O poemeto de amor materno deliciou-me como uma divina música. Olhei
furtivamente para a senhora. Ela conservava sobre mim as grandes
pupilas negras, lúcidas, numa expressão de infinda bondade! Que boa
mãe para os meninos, pensava eu. Depois, voltada para meu pai,
formulou sentidamente observações a respeito da solidão das crianças
no internato.

-- Mas o Sérgio é dos fortes, disse Aristarco, apoderando-se da
palavra. Demais, o meu colégio é apenas maior que o lar doméstico. O
amor não é precisamente o mesmo, mas os cuidados de vigilância são
mais ativos. São as crianças os meus prediletos. Os meus esforços mais
desvelados são para os pequenos. Se adoecem e a família está fora, não
os confio a um correspondente... Trato-os aqui, em minha casa. Minha
senhora é a enfermeira. Queria que o vissem os detratores...

Enveredando pelo tema querido do elogio próprio e do Ateneu, ninguém
mais pôde falar...

Aristarco, sentado, de pé, cruzando terríveis passadas,
imobilizando-se a repentes inesperados, gesticulando como um tribuno
de meetings, clamando como para um auditório de dez mil pessoas,
majestoso sempre, alçando os padrões admiráveis, como um leiloeiro, e
as opulentas faturas, desenrolou, com a memória de uma última
conferência, a narrativa dos seus serviços à causa santa da
instrução. Trinta anos de tentativas e resultados, esclarecendo como
um farol diversas gerações agora influentes no destino do país! E as
reformas futuras? Não bastava a abolição dos castigos corporais, o que
já dava uma benemerência passável. Era preciso a introdução de métodos
novos, supressão absoluta dos vexames de punição, modalidades
aperfeiçoadas no sistema das recompensas, ajeitação dos trabalhos, de
maneira que seja a escola um paraíso; adoção de normas desconhecidas
cuja eficácia ele pressentia, perspicaz como as águias. Ele havia de
criar... um horror, a transformação moral da sociedade!

Uma hora trovejou-lhe à boca, em sangüínea eloqüência, o gênio do
anúncio. Miramo-lo na inteira expansão oral, como, por ocasião das
festas, na plenitude da sua vivacidade prática. Contemplávamos (eu com
aterrado espanto) distendido em grandeza épica -- o homem sanduíche da
educação nacional, lardeado entre dois monstruosos cartazes. As
costas, o seu passado incalculável de trabalhos; sobre o ventre, para
a frente, o seu futuro: a réclame dos imortais projetos.