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\titpg{Dom Casmurro}{Machado de Assis}

\chapt{I}{Do titulo.}

Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no
trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de
chapéo. Comprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos
ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os
versos póde ser que não fossem inteiramente maus. Succedeu, porém, que
como eu estava cançado, fechei os olhos tres ou quatro vezes; tanto
bastou para que elle interrompesse a leitura e mettesse os versos no
bolso.

--- Continue, disse eu accordando.

--- Já acabei, murmurou elle.

--- São muito bonitos.

Vi-lhe fazer um gesto para tiral-os outra vez do bolso, mas não passou
do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes
feios, e acabou alcunhando-me \emph{Dom Casmurro}. Os visinhos, que não
gostam dos meus habitos reclusos e calados, deram curso á alcunha, que
afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anecdota aos amigos da
cidade, e elles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: «Dom
Casmurro, domingo vou jantar com você.» --- «Vou para Petropolis, Dom
Casmurro; a casa é a mesma da Rhenania; vê se deixas essa caverna do
Engenho Novo, e vae lá passar uns quinze dias commigo.» --- «Meu caro
Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do theatro amanhã; venha e
dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só
não lhe dou moça.»

Não consultes diccionarios. \emph{Casmurro} não está aqui no sentido
que elles lhe dão, mas no que lhe poz o vulgo de homem calado e mettido
comsigo. \emph{Dom} veiu por ironia, para attribuir-me fumos de fidalgo.
Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor titulo para a minha
narração; se não tiver outro d'aqui até ao fim do livro, vae este mesmo.
O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com
pequeno esforço, sendo o titulo seu, poderá cuidar que a obra é sua. Ha
livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.




\chapt{II}{Do livro.}

Agora que expliquei o titulo, passo a escrever o livro. Antes disso,
porém, digamos os motivos que me põem a penna na mão.

Vivo só, com um creado. A casa em que moro é propria; fil-a construir
de proposito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimil-o,
mas vá lá. Um dia, ha bastantes annos, lembrou-me reproduzir no Engenho
Novo a casa em que me criei na antiga rua de Matacavallos, dando-lhe o
mesmo aspecto e economia daquella outra, que desappareceu. Constructor
e pintor entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o mesmo predio
assobradado, tres janellas de frente, varanda ao fundo, as mesmas
alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do tecto e das paredes
é mais ou menos egual, umas grinaldas de flores miudas e grandes
passaros que as tomam nos bicos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos
do tecto as figuras das estações, e ao centro das paredes os medalhões
de Cesar, Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo... Nao
alcanço a razão de taes personagens. Quando fomos para a casa de
Matacavallos, já ella estava assim decorada; vinha do decennio anterior.
Naturalmente era gosto do tempo metter sabor classico e figuras antigas
em pinturas americanas. O mais é também analogo e parecido. Tenho
chacarinha, flôres, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro. Uso
louça velha e mobilia velha. Emfim, agora, como outr'ora, ha aqui o
mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior, que é
ruidosa.

O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na
velhice a adolescencia. Pois, senhor, não consegui recompôr o que foi
nem o que fui. Em tudo, se o rosto é egual, a physionomia é differente.
Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das
pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui
está é, mal comparando, semelhante á pintura que se põe na barba e nos
cabellos, e que apenas conserva o habito externo, como se diz nas
autopsias; o interno não aguenta tinta. Uma certidão que me désse vinte
annos de edade poderia enganar os extranhos, como todos os documentos
falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente;
todos os antigos foram estudar a geologia dos campos santos. Quanto ás
amigas, algumas datam de quinze annos, outras de menos, e quasi todas
creem na mocidade. Duas ou tres fariam crer nella aos outros, mas a
lingua que falam obriga muita vez a consultar os diccionarios, e tal
frequencia é cançativa.

Entretanto, vida differente não quer dizer vida peor; é outra cousa. A
certos respeitos, aquella vida antiga apparece-me despida de muitos
encantos que lhe achei; mas é tambem exacto que perdeu muito espinho
que a fez molesta, e, de memoria, conservo alguma recordação doce e
feiticeira. Em verdade, pouco appareço e menos falo. Distracções raras.
O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar e ler; como bem e não durmo
mal.

Ora, como tudo cança, esta monotonia acabou por exhaurir-me também.
Quiz variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudencia,
philosophia e politica acudiram-me, mas não me acudiram as forças
necessarias. Depois, pensei em fazer uma \emph{Historia dos Suburbios},
menos secca que as memorias do padre Luiz Gonçalves dos Santos,
relativas á cidade; era obra modesta, mas exigia documentos e datas,
como preliminares, tudo arido e longo. Foi então que os bustos pintados
nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que elles não
alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da penna e contasse
alguns. Talvez a narração me désse a illusão, e as sombras viessem
perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do \emph{Fausto}:
\emph{Ahi vindes outra vez, inquietas sombras...}?

Fiquei tão alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a penna na
mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande Cesar, que me incitas
a fazer os meus commentarios, agradeço-vos o conselho, e vou deitar ao
papel as reminiscencias que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que
vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior tomo. Eia, comecemos
a evocação por uma celebre tarde de Novembro, que nunca me esqueceu.
Tive outras muitas, melhores, e peores, mas aquella nunca se me apagou
do espirito. É o que vás entender, lendo.




\chapt{III}{A denuncia.}

Ia a entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e
escondi-me atraz da porta. A casa era a da rua de Matacavallos, o mez
Novembro, o anno é que é um tanto remoto, mas eu não hei de trocar as
datas á minha vida só para agradar ás pessoas que não amam historias
velhas; o anno era de 1857.

--- D.~Gloria, a senhora persiste na ideia de metter o nosso Bentinho
no seminario? É mais que tempo, e já agora póde haver uma difficuldade.

--- Que difficuldade?

--- Uma grande difficuldade.

Minha mãe quiz saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes
de concentração, veiu ver se havia alguem no corredor; não deu por mim,
voltou e, abafando a voz, disse que a difficuldade estava na casa ao pé,
a gente do Padua.

--- A gente do Padua?

--- Ha algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não
me parece bonito que o nosso Bentinho ande mettido nos cantos com a
filha do \emph{Tartaruga}, e esta é a difficuldade, porque se elles
pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separal-os.

--- Não acho. Mettidos nos cantos?

--- É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quasi
que não sae de lá. A pequena é uma desmiolada; o pae faz que não vê;
tomara elle que as cousas corressem de maneira, que... Comprehendo o
seu gesto; a senhora não crê em taes calculos, parece-lhe que todos têm
a alma candida...

--- Mas, Sr.~José Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi
nada que faça desconfiar. Basta a edade; Bentinho mal tem quinze annos.
Capitú fez quatorze á semana passada; são dous creançolas. Não se
esqueça que foram criados juntos, desde aquella grande enchente, ha dez
annos, em que a familia Padua perdeu tanta cousa; d'ahi vieram as
nossas relações. Pois eu hei de crer...? Mano Cosme, você que acha?

Tio Cosme respondeu com um «Ora!» que. traduzido em vulgar, queria
dizer: «São imaginações do José Dias; os pequenos divertem-se, eu
divirto-me; onde está o gamão?»

--- Sim, creio que o senhor está enganado.

--- Póde ser, minha senhora. Oxalá tenham razão; mas creia que não
falei senão depois de muito examinar...

--- Em todo caso, vae sendo tempo, interrompeu minha mãe; vou tratar de
mettel-o no seminario quanto antes.

--- Bem, uma vez que não perdeu a ideia de o fazer padre, tem-se ganho
o principal. Bentinho ha de satisfazer os desejos de sua mãe. E depois
a egreja brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que um bispo
presidiu a Constituinte, e que o padre Feijó governou o imperio...

--- Governou como a cara d'elle! atalhou tio Cosme, cedendo a antigos
rancores politicos.

--- Perdão, doutor, não estou defendendo ninguem, estou citando. O que
eu quero é dizer que o clero ainda tem grande papel no Brasil.

--- Você o que quer é um capote; ande, vá buscar o gamão. Quanto ao
pequeno, se tem de ser padre, realmente é melhor que não comece a dizer
missa atraz das portas. Mas, olhe cá, mana Gloria, ha mesmo necessidade
de fazel-o padre?

--- É promessa, ha de cumprir-se.

--- Sei que você fez promessa... mas, uma promessa assim... não sei...
Creio que, bem pensado... Você que acha, prima Justina?

--- Eu?

--- Verdade é que cada um sabe melhor de si, continuou tio Cosme; Deus
é que sabe de todos. Comtudo, uma promessa de tantos annos... Mas, que
é isso, mana Gloria? Está chorando? Ora esta! Pois isto é cousa de
lagrimas?

Minha mãe assoou-se sem responder. Prima Justina creio que se levantou
e foi ter com ella. Seguiu-se um alto silencio, durante o qual estive a
pique de entrar na sala, mas outra força maior, outra emoção... Não
pude ouvir as palavras que tio Cosme entrou a dizer. Prima Justina
exhortava: «Prima Gloria! prima Gloria!» José Dias desculpava-se: «Se
soubesse, não teria falado, mas falei pela veneração, pela estima, pelo
affecto, para cumprir um dever amargo, um dever amarissimo...»




\chapt{IV}{Um dever amarissimo!}

José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental
ás ideias; não as havendo, serviam a prolongar as phrases. Levantou-se
para ir buscar o gamão, que estava no interior da casa. Cosi-me muito á
parede, e vi-o passar com as suas calças brancas engommadas, presilhas,
rodaque e gravata de mola. Foi dos ultimos que usaram presilhas no Rio
de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças curtas para que lhe
ficassem bem esticadas. A gravata de setim preto, com um aro de aço por
dentro, immobilisava-lhe o pescoço; era então moda. O rodaque de chita,
veste caseira e leve, parecia nelle uma casaca de cerimonia. Era magro,
chupado, com um principio de calva; teria os seus cincoenta e cinco
annos. Levantou-se com o passo vagaroso do costume, não aquelle vagar
arrastado dos preguiçosos, mas um vagar calculado e deduzido, um
syllogismo completo, a premissa antes da consequencia, a consequencia
antes da conclusão. Um dever amarissimo!




\chapt{V}{O aggregado.}

Nem sempre ia naquelle passo vagaroso e rigido. Também se descompunha
em accionados, era muita vez rapido e lepido nos movimentos, tão
natural nesta como naquella maneira. Outrosim, ria largo, se era
preciso, de um grande riso sem vontade, mas communicativo, a tal ponto
as bochechas, os dentes, os olhos, toda a cara, toda a pessoa, todo o
mundo pareciam rir nelle. Nos lances graves, gravissimo.

Era nosso aggregado desde muitos annos; meu pae ainda estava na antiga
fazenda de Itaguahy, e eu acabava de nascer. Um dia appareceu alli
vendendo-se por medico homeopatha; levava um \emph{Manual} e uma botica.
Havia então um andaço de febres; José Dias curou o feitor e uma escrava,
e não quiz receber nenhuma remuneração. Então meu pae propoz-lhe ficar
alli vivendo, com pequeno ordenado. José Dias recusou, dizendo que era
justo levar a saude á casa de sapé do pobre.

--- Quem lhe impede que vá a outras partes? Va aonde quizer, mas fique
morando comnosco.

--- Voltarei daqui a tres mezes.

Voltou dalli a duas semanas, acceitou casa e comida sem outro
estipendio, salvo o que quizessem dar por festas. Quando meu pae foi
eleito deputado e veiu para o Rio de Janeiro com a familia, elle veiu
tambem, e teve o seu quarto ao fundo da chacara. Um dia, reinando outra
vez febres em Itaguahy, disse-lhe meu pae que fosse ver a nossa
escravatura. José Dias deixou-se estar calado, suspirou e acabou
confessando que não era medico. Tomára este titulo para ajudar a
propaganda da nova escola, e não o fez sem estudar muito e muito; mas a
consciencia não lhe permittia acceitar mais doentes.

--- Mas, você curou das outras vezes.

--- Creio que sim; o mais acertado, porém, é dizer que foram os
remedios indicados nos livros. Elles, sim, elles, abaixo de Deus. Eu
era um charlatão... Não negue; os motivos do meu procedimento podiam
ser e eram dignos; a homeopathia é a verdade, e, para servir á verdade,
menti; mas é tempo de restabelecer tudo.

Não foi despedido, como pedia então; meu pae já não podia dispensal-o.
Tinha o dom de se fazer acceito e necessario; dava-se por falta delle,
como de pessoa de familia. Quando meu pae morreu, a dôr que o pungiu
foi enorme, disseram-me, não me lembra. Minha mãe ficou-lhe muito grata,
e não consentiu que elle deixasse o quarto da chacara; ao setimo dia,
depois da missa, elle foi despedir-se della.

--- Fique, José Dias.

--- Obedeço, minha senhora.

Teve um pequeno legado no testamento, uma apolice e quatro palavras de
louvor. Copiou as palavras, encaixilhou-as e pendurou-as no quarto, por
cima da cama. «Esta é a melhor apolice», dizia elle muita vez. Com o
tempo, adquiriu certa autoridade na familia, certa audiencia, ao menos;
não abusava, e sabia opinar obedecendo. Ao cabo, era amigo, não direi
optimo, mas nem tudo é optimo neste mundo. E não lhe supponhas alma
subalterna; as cortezias que fizesse vinham antes do calculo que da
indole. A roupa durava-lhe muito; ao contrario das pessoas que
enxovalham depressa o vestido novo, elle trazia o velho escovado e liso,
cirzido, abotoado, de uma elegancia pobre e modesta. Era lido, posto
que de atropello, o bastante para divertir ao serão e á sobremesa, ou
explicar algum phenomeno, falar dos effeitos do calor e do frio, dos
polos e de Robespierre. Contava muita vez uma viagem que fizera á
Europa, e confessava que a não sermos nós, já teria voltado para lá;
tinha amigos em Lisboa, mas a nossa familia, dizia elle, abaixo de Deus,
era tudo.

--- Abaixo ou acima? perguntou-lhe tio Cosme um dia.

--- Abaixo, repetiu José Dias cheio de veneração.

E minha mãe, que era religiosa, gostou de ver que elle punha Deus no
devido logar, e sorriu approvando. José Dias agradeceu de cabeça. Minha
mãe dava-lhe de quando em quando alguns cobres. Tio Cosme, que era
advogado, confiava-lhe a copia de papeis de autos.




\chapt{VI}{Tio Cosme.}

Tio Cosme vivia com minha mãe, desde que ella enviuvou. Já então era
viuvo, como prima Justina; era a casa dos tres viuvos.

A fortuna troca muita vez as mãos á natureza. Formado para as serenas
funcções do capitalismo, tio Cosme não enriquecia no fôro: ia comendo.
Tinha o escriptorio na antiga rua das Violas, perto do jury, que era no
extincto Aljube. Trabalhava no crime. José Dias não perdia as defesas
oraes de tio Cosme. Era quem lhe vestia e despia a toga, com muitos
comprimentos no fim. Em casa, referia os debates. Tio Cosme, por mais
modesto que quizesse ser, sorria de persuasão.

Era gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos.
Uma das minhas recordações mais antigas era vel-o montar todas as
manhãs a besta (que minha mãe lhe deu e que o levava ao escriptorio. O
preto que a tinha ido buscar á cocheira, segurava o freio, emquanto
elle erguia o pé e pousava no estribo; a isto seguia-se um minuto de
descanço ou reflexão. Depois, dava um impulso, o primeiro, o corpo
ameaçava subir, mas não subia; segundo impulso, egual effeito. Emfim,
após alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as forças
physicas e moraes, dava o ultimo surto da terra, e desta vez caía em
cima do selim. Raramente a besta deixava de mostrar por um gesto que
acabava de receber o mundo. Tio Cosme accommodava as carnes, e a besta
partia a trote.

Tambem não me esqueceu o que elle me fez uma tarde. Posto que nascido
na roça (donde vim com dous annos) e apezar dos costumes do tempo, eu
não sabia montar, e tinha medo ao cavallo. Tio Cosme pegou em mim e
escanchou-me em cima da besta. Quando me vi no alto (tinha nove annos),
sósinho e desamparado, o chão lá embaixo, entrei a gritar
desesperadamente: «Mamãe! mamãe!» Ella acudiu pallida e tremula, cuidou
que me estivessem matando, apeou-me, affagou-me, emquanto o irmão
perguntava:

--- Mana Gloria, pois um tamanhão destes tem medo de besta mansa?

--- Não está acostumado.

--- Deve acostumar-se. Padre que seja, se fôr vigario na roça, é
preciso que monte a cavallo; e, aqui mesmo, ainda não sendo padre, se
quizer florear como os outros rapazes, e não souber, ha de queixar-se
de você, mana Gloria.

--- Pois que se queixe; tenho medo.

--- Medo! Ora, medo!

A verdade é que eu só vim a apprender equitação mais tarde, menos por
gosto que por vergonha de dizer que não sabia montar. «Agora é que elle
vae namorar devéras», disseram quando eu comecei as licções. Não se
diria o mesmo de tio Cosme. Nelle era velho costume e necessidade. Já
não dava para namoros. Contam que, em rapaz, foi acceito de muitas
damas, além de partidario exaltado; mas os annos levaram-lhe o mais do
ardor politico e sexual, e a gordura acabou com o resto de ideias
publicas e especificas. Agora só cumpria as obrigações do officio e sem
amor. Nas horas de lazer vivia olhando ou jogava. Uma ou outra vez
dizia pilherias.




\chapt{VII}{D.~Gloria.}

Minha mãe era boa creatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de
Albuquerque Santiago, contava trinta e um annos de edade, e podia
voltar para Itaguahy. Não quiz; preferiu ficar perto da egreja em que
meu pae fôra sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou
alguns que pôz ao ganho ou alugou, uma duzia de predios, certo numero
de apolices, e deixou-se estar na casa de Matacavallos, onde vivera os
dous ultimos annos de casada. Era filha de uma senhora mineira,
descendente de outra paulista, a familia Fernandes.

Ora, pois, naquelle anno da graça de 1857, D.~Maria da Gloria Fernandes
Santiago contava quarenta e dous annos de edade. Era ainda bonita e
moça, mas teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a
natureza quizesse preserval-a da acção do tempo. Vivia mettida em um
eterno vestido escuro, sem adornos, com um chale preto, dobrado em
triangulo e abrochado ao peito por um camafeu. Os cabellos, em bandós,
eram apanhados sobre a nuca por um velho pente de tartaruga; alguma vez
trazia touca branca de fólhos. Lidava assim, com os seus sapatos de
cordavão rasos e surdos, a um lado e outro, vendo e guiando os serviços
todos da casa inteira, desde manhã até á noite.

Tenho alli na parede o retrato delia, ao lado do do marido, taes quaes
na outra casa. A pintura escureceu muito, mas ainda dá ideia de ambos.
Não me lembra nada delle, a não ser vagamente que era alto e usava
cabelleira grande; o retrato mostra uns olhos redondos, que me
acompanham para todos os lados, effeito da pintura que me assombrava em
pequeno. O pescoço sae de uma gravata preta de muitas voltas, a cara é
toda rapada, salvo um trechosinho pegado ás orelhas. O de minha mãe
mostra que era linda. Contava então vinte annos, e tinha uma flôr entre
os dedos. No painel parece offerecer a flôr ao marido. O que se lê na
cara de ambos é que, se a felicidade conjugai póde ser comparada á
sorte grande, elles a tiraram no bilhete comprado de sociedade.

Concluo que não se devem abolir as loterias. Nenhum premiado as accusou
ainda de immoraes, como ninguem tachou de má a boceta de Pandora, por
lhe ter ficado a esperança no fundo; em alguma parte ha de ella ficar.
Aqui os tenho aos dous bem casados de outr'ora, os bem-amados, os
bem-aventurados, que se foram desta para a outra vida, continuar um
sonho provavelmente. Quando a loteria e Pandora me aborrecem, ergo os
olhos para elles, e esqueço os bilhetes brancos e a boceta fatidica.
São retratos que valem por originaes. O de minha mãe, estendendo a flôr
ao marido, parece dizer: «Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!» O de meu
pae, olhando para a gente, faz este commentario: «Vejam como esta moça
me quer...» Se padeceram molestias, não sei, como não sei se tiveram
desgostos: era creança e comecei por não ser nascido. Depois da morte
delle, lembra-me que ella chorou muito; mas aqui estão os retratos de
ambos, sem que o encardido do tempo lhes tirasse a primeira expressão.
São como photographias instantaneas da felicidade.




\chapt{VIII}{É tempo!}

Mas é tempo de tornar áquella tarde de Novembro, uma tarde clara e
fresca, socegada como a nossa casa e o trecho da rua em que moravamos.
Verdadeiramente foi o principio da minha vida; tudo o que succedera
antes foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em
scena, o accender das luzes, o preparo das rabecas, a symphonia...
Agora é que eu ia começar a minha opera. «A vida é uma opera,» dizia-me
um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu... E explicou-me um dia
a definição, em tal maneira que me fez crer nella. Talvez valha a pena
dal-a; é só um capitulo.




\chapt{IX}{A opera.}

Já não tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. «O desuso é que me
faz mal», accrescentava. Sempre que uma companhia nova chegava da
Europa, ia ao empresario e expunha-lhe todas as injustiças da terra e
do ceu; o empresario commettia mais uma, e elle saía a bradar contra a
iniquidade. Trazia ainda os bigodes dos seus papeis. Quando andava,
apezar de velho, parecia cortejar uma princeza de Babylonia. Ás vezes,
cantarolava, sem abrir a bocca, algum trecho ainda mais edoso que elle
ou tanto; vozes assim abafadas são sempre possiveis. Vinha aqui jantar
commigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a
definição do costume, e como eu lhe dissesse que a vida tanto podia ser
uma opera, como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabeça e
replicou:

--- A vida é uma opera e uma grande opera. O tenor e o barytono lutam
pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimarios, quando não são o
soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo
e dos mesmos comprimarios. Ha córos numerosos, muitos bailados, e a
orchestração é excellente...

--- Mas, meu caro Marcolini...

--- Quê...?

E, depois de beber um gole de licor, pousou o calix, e expoz-me a
historia da creação, com palavras que vou resumir.

Deus é o poeta. A musica é de Satanaz, joven maestro de muito futuro,
que apprendeu no conservatorio do ceu. Rival de Miguel, Raphael e
Gabriel, não tolerava a precedencia que elles tinham na distribuição
dos premios. Póde ser tambem que a musica em demasia doce e mystica
daquelles outros condiscipulos fosse aborrecivel ao seu genio
essencialmente tragico. Tramou uma rebellião que foi descoberta a tempo,
e elle expulso do conservatorio. Tudo se teria passado sem mais nada,
se Deus não houvesse escripto um libretto de opera, do qual abrira mão,
por entender que tal genero de recreio era improprio da sua eternidade.
Satanaz levou o manuscripto comsigo para o inferno. Com o fim de
mostrar que valia mais que os outros, --- e acaso para reconciliar-se
com o ceu --- compoz a partitura, e logo que a acabou foi leval-a ao
Padre Eterno.

--- Senhor, não desapprendi as licções recebidas, disse-lhe. Aqui
tendes a partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a
achardes digna das alturas, admitti-me com ella a vossos pés...

--- Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada.

--- Mas, Senhor...

--- Nada! nada!

Satanaz supplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cançado e
cheio de misericordia, consentiu em que a opera fosse executada, mas
fóra do ceu. Creou um theatro especial, este planeta, e inventou uma
companhia inteira, com todas as partes, primarias e comprimarias, córos
e bailarinos.

--- Ouvi agora alguns ensaios!

--- Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libretto;
estou prompto a dividir comtigo os direitos de autor.

Foi talvez um mal esta recusa; della resultaram alguns desconcertos que
a audiencia prévia e a collaboração amiga teriam evitado. Com effeito,
ha logares em que o verso vae para a direita e a musica para a esquerda.
Não falta quem diga que nisso mesmo está a belleza da composição,
fugindo á monotonia, e assim explicam o tercetto do Eden, a aria de
Abel, os córos da guilhotina e da escravidão. Não é raro que os mesmos
lances se reproduzam, sem razão sufficiente. Certos motivos cançam á
força de repetição. Tambem ha obscuridades; o maestro abusa das massas
choraes, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As partes
orchestraes são aliás tratadas com grande pericia. Tal é a opinião dos
imparciaes.

Os amigos do maestro querem que difficilmente se possa achar obra tão
bem acabada. Um ou outro admitte certas rudezas e taes ou quaes lacunas,
mas com o andar da opera é provavel que estas sejam preenchidas ou
explicadas, e aquellas desappareçam inteiramente, não se negando o
maestro a emendar a obra onde achar que não responde de todo ao
pensamento sublime do poeta. Já não dizem o mesmo os amigos deste.
Juram que o libretto foi sacrificado, que a partitura corrompeu o
sentido da lettra, e, posto seja bonita em alguns logares, e trabalhada
com arte em outros, é absolutamente diversa e até contraria ao drama. O
grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma excrescencia
para imitar as \emph{Mulheres patuscas de Windsor}. Este ponto é
contestado pelos satanistas com alguma apparencia de razão. Dizem elles
que, ao tempo em que o joven Satanaz compoz a grande opera, nem essa
farça nem Shakespeare eram nascidos. Chegam a affirmar que o poeta
inglez não teve outro genio senão transcrever a lettra da opera, com
tal arte e fidelidade, que parece elle proprio o autor da composição;
mas, evidentemente, é um plagiario.

--- Esta peça, concluiu o velho tenor, durará emquanto durar o theatro,
não se podendo calcular em que tempo será elle demolido por utilidade
astronomica. O exito é crescente. Poeta e musico recebem pontualmente
os seus direitos autoraes, que não são os mesmos, porque a regra da
divisão é aquillo da Escriptura: «Muitos são os chamados, poucos os
escolhidos.» Deus recebe em ouro, Satanaz em papel.

--- Tem graça...

--- Graça? bradou elle com furia; mas aquietou-se logo, e replicou:
Caro Santiago, eu não tenho graça, eu tenho horror á graça. Isto que
digo é a verdade pura e ultima. Um dia, quando todos os livros forem
queimados por inuteis, ha de haver alguem, póde ser que tenor, e talvez
italiano, que ensine esta verdade aos homens. Tudo é musica, meu amigo.
No principio era o \emph{dó}, e o \emph{dó} fez-se \emph{ré}, etc.~.
Este calix (e enchia-o novamente) este calix é um breve estribilho. Não
se ouve? Tambem não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma
opera...




\chapt{X}{Acceito a theoria.}

Que é demasiada melaphysica para um só tenor, não ha duvida; mas a
perda da voz explica tudo, e ha philosophos que são, em resumo, tenores
desempregados. Eu, leitor amigo, acceito a theoria do meu velho
Marcolini, não só pela verosimilhança, que é muita vez toda a verdade,
mas porque a minha vida se casa bem á definição. Cantei um \emph{duo}
ternissimo, depois um \emph{trio}, depois um \emph{quatuor}... Mas não
adeantemos; vamos á primeira tarde, em que eu vim a saber que já
cantava, porque a denuncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada
principalmente a mim. A mim é que elle me denunciou.




\chapt{XI}{A promessa.}

Tão depressa vi desapparecer o aggregado no corredor, deixei o
esconderijo, e corri á varanda do fundo. Não quiz saber de lagrimas nem
da causa que as fazia verter a minha mãe. A causa eram provavelmente os
seus projectos ecclesiasticos, e a occasião destes é a que vou dizer,
por ser já então historia velha; datava de dezeseis annos.

Os projectos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido
morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo
vingasse, promettendo, se fosse varão, mettel-o na egreja. Talvez
esperasse uma menina. Não disse nada a meu pae. nem antes, nem depois
de me dar á luz; contava fazel-o quando eu entrasse para a escola, mas
enviuvou antes disso. Viuva, sentiu o terror de separar-se de mim; mas
era tão devota, tão temente a Deus, que buscou testemunhas da obrigação,
confiando a promessa a parentes e familiares. Unicamente, para que nos
separassemos o mais tarde possivel, fez-me apprender em casa primeiras
lettras, latim e doutrina, por aquelle padre Cabral, velho amigo do tio
Cosme, que ia lá jogar ás noites.

Prazos largos são faceis de subscrever; a imaginação os faz infinitos.
Minha mãe esperou que os annos viessem vindo. Entretanto, ia-me
affeiçoando á ideia da egreja; brincos de creança, livros devotos,
imagens de santos, conversações de casa, tudo convergia para o altar.
Quando iamos á missa, dizia-me sempre que era para apprender a ser
padre, e que reparasse no padre, não tirasse os olhos do padre. Em casa,
brincava de missa, --- um tanto ás escondidas, porque minha mãe dizia
que missa não era cousa de brincadeira. Arranjavamos um altar, Capitú e
eu. Ella servia de sacristão, e alteravamos o ritual, no sentido de
dividirmos a hostia entre nós; a hostia era sempre um doce. No tempo em
que brincavamos assim, era muito commum ouvir á minha visinha: «Hoje ha
missa?» Eu já sabia o que isto queria dizer, respondia affirmativamente,
e ia pedir hostia por outro nome. Voltava com ella, arranjavamos o
altar, engrolavamos o latim e precipitavamos as cerimonias. \emph{Dominus,
non sum dignus}... Isto, que eu devia dizer tres vezes, penso que só
dizia uma, tal era a golodice do padre e do sacristão. Não bebiamos
vinho nem agua; não tinhamos o primeiro, e a segunda viria tirar-nos o
gosto do sacrificio.

Ultimamente não me falavam já do seminario, a tal ponto que eu suppunha
ser negocio findo. Quinze annos, não havendo vocação, pediam antes o
seminario do mundo que o de S.~José. Minha mãe ficava muita vez a olhar
para mim, como alma perdida, ou pegava-me na mão, a pretexto de nada,
para apertal-a muito.




\chapt{XII}{Na varanda.}

Parei na varanda; ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coração
parecendo querer sair-me pela bocca fóra. Não me atrevia a descer á
chacara, e passar ao quintal visinho. Comecei a andar de um lado para
outro, estacando para amparar-me, e andava outra vez e estacava. Vozes
confusas repeliam o discurso do José Dias:

«Sempre juntos...»

«Em segredinhos...»

«Se elles pegam de namoro...»

Tijolos que pisei e repisei naquella tarde, columnas amarelladas que me
passastes á direita ou á esquerda, segundo eu ia ou vinha, em vós me
ficou a melhor parte da crise, a sensação de um goso novo, que me
envolvia em mim mesmo, e logo me dispersava, e me trazia arrepios, e me
derramava não sei que balsamo interior. Ás vezes dava por mim, sorrindo,
um ar de riso de satisfação, que desmentia a abominação do meu peccado.
E as vozes repetiam-se confusas:

«Em segredinhos...»

«Sempre juntos...»

«Se elles pegam de namoro...»

Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmurou de cima
de si que não era feio que os meninos de quinze annos andassem nos
cantos com as meninas de quatorze; ao contrario, os adolescentes
daquella edade não tinham outro oflicio, nem os cantos outra utilidade.
Era um coqueiro velho, e eu cria nos coqueiros velhos, mais ainda que
nos velhos livros. Passaros, borboletas, uma cigarra que ensaiava o
estio, toda a gente viva do ar era da mesma opinião.

Com que então eu amava Capitú, e Capitú a mim? Realmente, andava cosido
ás saias della, mas não me occorria nada entre nós que fosse devéras
secreto. Antes della ir para o collegio, eram tudo travessuras de
creança; depois que saiu do collegio, é certo que não restabelecemos
logo a antiga intimidade, mas esta voltou pouco a pouco, e no ultimo
anno era completa. Entretanto, a materia das nossas conversações era a
de sempre. Capitú chamava-me ás vezes bonito, mocetão, uma flôr; outras
pegava-me nas mãos para contar-me os dedos. E comecei a recordar esses
e outros gestos e palavras, o prazer que sentia quando ella me passava
a mão pelos cabellos, dizendo que os achava lindissimos. Eu, sem fazer
o mesmo aos della, dizia que os della eram muito mais lindos que os
meus. Então Capitú abanava a cabeça com uma grande expressão de
desengano e melancolia, tanto mais de espantar quanto que tinha os
cabellos realmente admiraveis; mas eu retorquia chamando-lhe maluca.
Quando me perguntava se sonhára com ella na vespera, e eu dizia que não,
ouvia-lhe contar que sonhára commigo, e eram aventuras extraordinarias,
que subiamos ao Corcovado pelo ar, que dansavamos na lua, ou então que
os anjos vinham perguntar-nos pelos nomes, afim de os dar a outros
anjos que acabavam de nascer. Em todos esses sonhos andavamos unidinhos.
Os que eu tinha com ella não eram assim, apenas reproduziam a nossa
familiaridade, e muita vez não passavam da simples repetição do dia,
alguma phrase, algum gesto. Tambem eu os contava. Capitú um dia notou a
differença, dizendo que os della eram mais bonitos que os meus; eu,
depois de certa hesitação, disse-lhe que eram como a pessoa que sonhava...
Fez-se côr de pitanga.

Pois, francamente, só agora entendia a emoção que me davam essas e
outras confidencias. A emoção era doce e nova, mas a causa della
fugia-me, sem que eu a buscasse nem suspeitasse. Os silencios dos
ultimos dias, que me não descobriam nada, agora os sentia como signaes
de alguma cousa, e assim as meias palavras, as perguntas curiosas, as
respostas vagas, os cuidados, o gosto de recordar a infancia. Tambem
adverti que era phenomeno recente accordar com o pensamento em Capitú,
e escutal-a de memoria, e estremecer quando lhe ouvia os passos. Se se
falava nella, em minha casa, prestava mais atenção que d'antes, e,
segundo era louvor ou critica, assim me trazia gosto ou desgosto mais
intensos que outr'ora, quando eramos somente companheiros de
travessuras. Cheguei a pensar nella durante as missas daquelle mez, com
intervallos, é verdade, mas com exclusivismo tambem.

Tudo isto me era agora apresentado pela bocca de José Dias, que me
denunciára a mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, o
mal que fizera, e o que pudesse vir de um e de outro. Naquelle instante,
a eterna Verdade não valeria mais que elle, nem a eterna Bondade, nem
as demais Virtudes eternas. Eu amava Capitú! Capitú amava-me! E as
minhas pernas andavam, desandavam, estacavam, tremulas e crentes de
abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essa revelação da
consciencia a si propria, nunca mais me esqueceu, nem achei que lhe
fosse comparavel qualquer outra sensação da mesma especie. Naturalmente
por ser minha. Naturalmente tambem por ser a primeira.




\chapt{XIII}{Capitú.}

De repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao pé:

--- Capitú!

E no quintal:

--- Mamãe!

E outra vez na casa:

--- Vem cá!

Não me pude ter. As pernas desceram-me os tres degraus que davam para a
chacara, e caminharam para o quintal visinho. Era costume dellas, ás
tardes, e ás manhãs tambem. Que as pernas tambem são pessoas, apenas
inferiores aos braços, e valem de si mesmas, quando a cabeça não as
rege por meio de ideias. As minhas chegaram ao pé do muro. Havia alli
uma porta de communicação mandada rasgar por minha mãe, quando Capitú e
eu eramos pequenos. A porta não tinha chave nem taramela, abria-se
empurrando de um lado ou puxando de outro, e fechava-se ao peso de uma
pedra pendente de uma corda. Era quasi que exclusivamente nossa. Em
creanças, faziamos visita batendo de um lado, e sendo recebidos do
outro com muitas mesuras. Quando as bonecas de Capitú adoeciam, o
medico era eu. Entrava no quintal della com um pau debaixo do braço,
para imitar o bengalão do doutor João da Costa; tomava o pulso á doente,
e pedia-lhe que mostrasse a lingua. «É surda, coitada!» exclamava
Capitú. Então eu cocava o queixo, como o doutor, e acabava mandando
applicar-lhe umas sanguesugas ou dar-lhe um vomitorio: era a
therapeutica habitual do medico.

--- Capitú!

--- Mamãe!

--- Deixa de estar esburacando o muro; vem cá.

A voz da mãe era agora mais perto, como so viesse já da porta dos
fundos. Quiz passar ao quintal, mas as pernas, ha pouco tão andarilhas,
pareciam agora presas ao chão. Afinal fiz um esforço, empurrei a porta,
e entrei. Capitú estava ao pé do muro fronteiro, voltada para elle,
riscando com um prego. O rumor da porta fel-a olhar para traz; ao dar
commigo, encostou-se ao muro, como se quizesse esconder alguma cousa.
Caminhei para ella; naturalmente levava o gesto mudado, porque ella
veiu a mim, e perguntou-me inquieta:

--- Que é que você tem?

--- Eu? Nada.

--- Nada, não; você tem alguma cousa.

Quiz insistir que nada, mas não achei lingua. Todo eu era olhos e
coração, um coração que desta vez ia sair, com certeza, pela bocca fóra.
Não podia tirar os olhos daquella creatura de quatorze annos, alta,
forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os
cabellos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma á
outra, á moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros
e grandes, nariz recto e comprido, tinha a bocca fina e o queixo largo.
As mãos, a despeito de alguns officios rudes, eram curadas com amor;
não cheiravam a sabões finos nem aguas de toucador, mas com agua do
poço e sabão commum trazia-as sem macula. Calçava sapatos de duraque,
rasos e velhos, a que ella mesma dera alguns pontos.

--- Que é que você tem? repetiu.

--- Não é nada, balbuciei finalmente.

E emendei logo:

--- É uma noticia.

--- Noticia de quê?

Pensei em dizer-lhe que ia entrar para o seminario e espreitar a
impressão que lhe faria. Se a consternasse é que realmente gostava de
mim; se não, é que não gostava. Mas todo esse calculo foi obscuro e
rapido; senti que não poderia falar claramente, tinha agora a vista não
sei como...

--- Então?

--- Você sabe...

Nisto olhei para o muro, o logar em que ella estivera riscando,
escrevendo ou esburacando, como dissera a mãe. Vi uns riscos abertos, e
lembrou-me o gesto que ella fizera para cobril-os. Então quiz vel-os de
perto, e dei um passo. Capitú agarrou-me, mas, ou por temer que eu
acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu adeante e
apagou o escripto. Foi o mesmo que accender em mim o desejo de ler o
que era.




\chapt{XIV}{A inscripção.}

Tudo o que contei no fim do outro capitulo foi obra de um instante. O
que se lhe seguiu foi ainda mais rapido. Dei um pulo, e antes que ella
raspasse o muro, li estes dous nomes, abertos ao prego, e assim
dispostos:

BENTO

CAPITOLINA

Voltei-me para ella; Capitú tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo,
devagar, e ficámos a olhar um para o outro... Confissão de creanças, tu
valias bem duas ou tres paginas, mas quero ser poupado. Em verdade, não
falámos nada; o muro falou por nós. Não nos movemos, as mãos é que se
estenderam pouco a pouco, todas quatro, pegando-se, apertando-se,
fundindo-se. Não marquei a hora exacta daquelle gesto. Devia tel-a
marcado; sinto a falta de uma nota escripta naquella mesma noite, e que
eu poria aqui com os erros de orthographia que trouxesse, mas não
traria nenhum, tal era a differença entre o estudante e o adolescente.
Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias
de latim e era virgem de mulheres.

Não soltámos as mãos, nem ellas se deixaram cair de cançadas ou de
esquecidas. Os olhos fitavam-se e desfilavam-se, e depois de vagarem ao
perto, tornavam a metter-se uns pelos outros... Padre futuro, estava
assim deante della como de um altar, sendo uma das faces a Epistola e a
outra o Evangelho. A bocca podia ser o calix, os labios a patena.
Faltava dizer a missa nova, por um latim que ninguem apprende, e é a
lingua catholica dos homens. Não me tenhas por sacrilego, leitora minha
devota; a limpeza da intenção lava o que puder haver menos curial no
estylo. Estavamos alli com o ceu em nós. As mãos, unindo os nervos,
faziam das duas creaturas uma só, mas uma só creatura seraphica. Os
olhos continuaram a dizer cousas infinitas, as palavras de bocca é que
nem tentavam sair, tornavam ao coração caladas como vinham...




\chapt{XV}{Outra voz repentina.}

Outra voz repentina, mas desta vez uma voz de homem:

--- Vocês estão jogando o siso?

Era o pae de Capitú, que estava á porta dos fundos, ao pé da mulher.
Soltámos as mãos depressa, e ficámos atrapalhados. Capitú foi ao muro,
e, com o prego, disfarçadamente, apagou os nossos nomes escriplos.

--- Capitú!

--- Papae!

--- Não me estragues o reboco do muro.

Capitú riscava sobre o riscado, para apagar bem o escripto. Padua saiu
ao quintal, a ver o que era, mas já a filha tinha começado outra cousa,
um perfil, que disse ser o retrato delle, e tanto podia ser delle como
da mãe; fel-o rir, era o essencial. De resto, elle chegou sem colera,
todo meigo, apezar do gesto duvidoso ou menos que duvidoso em que nos
apanhou. Era um homem baixo e grosso, pernas e braços curtos, costas
abahuladas, donde lhe veiu a alcunha de Tartaruga, que José Dias lhe
poz. Ninguem lhe chamava assim lá em casa; era só o aggregado.

--- Vocês estavam jogando o siso? perguntou.

Olhei para um pé de sabugueiro que ficava perto; Capitú respondeu por
ambos.

--- Estavamos, sim, senhor, mas Bentinho ri logo, não aguenta.

--- Quando eu cheguei á porta, não ria.

--- Já tinha rido das outras vezes; não póde. Papae quer ver?

E seria, fitou em mim os olhos, convidando-me ao jogo. O susto é
naturalmente serio; eu estava ainda sob a acção do que trouxe a entrada
de Padua, e não fui capaz de rir, por mais que devesse fazel-o, para
legitimar a resposta de Capitú. Esta, cançada de esperar, desviou o
rosto, dizendo que eu não ria daquella vez por estar ao pé do pae. E
nem assim ri. Ha cousas que só se apprendem tarde; é mister nascer com
ellas para fazel-as cedo. E melhor é naturalmente cedo que
artificialmente tarde. Capitú, após duas voltas, foi ter com a mãe, que
continuava á porta da casa, deixando-nos a mim e ao pae encantados
della; o pae, olhando para ella e para mim, dizia-me, cheio de ternura:

--- Quem dirá que esta pequena tem quatorze annos? Parece dezesete.
Mamãe está boa? continuou voltando-se inteiramente para mim.

--- Está.

--- Ha muitos dias que não a vejo. Estou com vontade de dar um capote
ao doutor, mas não tenho podido, ando com trabalhos da repartição, em
casa; escrevo todas as noites que é um desespero; negocio de relatorio.
Você já viu o meu gaturamo? Está alli no fundo. Ia agora mesmo buscar a
gaiola; ande ver.

Que o meu desejo era nenhum, crê-se facilmente, sem ser preciso jurar
pelo ceu nem pela terra. Meu desejo era ir atraz de Capitú e falar-lhe
agora do mal que nos esperava, mas o pae era o pae, e demais amava
particularmente os passarinhos. Tinha-os de varia especie, côr e
tamanho. A área que havia no centro da casa era cercada de gaiolas de
canarios, que faziam cantando um barulho de todos os diabos. Trocava
passaros com outros amadores, comprava-os, apanhava alguns, no proprio
quintal, armando alçapões. Tambem, se adoeciam, tratava delles como se
fossem gente.




\chapt{XVI}{O administrador interino.}

Padua era empregado em repartição dependente do ministerio da guerra.
Não ganhava muito, mas a mulher gastava pouco, e a vida era barata.
Demais, a casa em que morava, assobradada como a nossa, posto que menor,
era propriedade delle. Comprou-a com a sorte grande que lhe saiu n'um
meio bilhete de loteria, dez contos de reis. A primeira ideia do Padua,
quando lhe saiu o premio, foi comprar um cavallo do Cabo, um adereço de
brilhantes para a mulher, uma sepultura perpetua de familia, mandar vir
da Europa alguns passaros, etc.~; mas a mulher, esta D.~Fortunata que
alli está á porta dos fundos da casa, em pé, falando á filha, alta,
forte, cheia, como a filha, a mesma cabeça, os mesmos olhos claros, a
mulher é que lhe disse que o melhor era comprar a casa, e guardar o que
sobrasse para acudir ás molestias grandes. Padua hesitou muito; afinal,
teve de ceder aos conselhos de minha mãe, a quem D.~Fortunata pediu
auxilio. Nem foi só nessa occasião que minha mãe lhes valeu; um dia
chegou a salvar a vida ao Padua. Escutai; a anecdota é curta.

O administrador da repartição em que Padua trabalhava teve de ir ao
Norte, em commissão. Padua, ou por ordem regulamentar, ou por especial
designação, ficou substituindo o administrador com os respectivos
honorarios. Esta mudança de fortuna trouxe-lhe certa vertigem; era
antes dos dez contos. Não se contentou de reformar a roupa e a copa,
atirou-se ás despezas superfluas, deu joias á mulher, nos dias de festa
matava um leitão, era visto em theatros, chegou aos sapatos de verniz.
Viveu assim vinte e dous mezes na supposição de uma eterna interinidade.
Uma tarde entrou em nossa casa, afflicto e desvairado, ia perder o
logar, porque chegára o effectivo naquella manhã. Pediu a minha mãe que
velasse pelas infelizes que deixava; não podia soffrer a desgraça,
matava-se. Minha mãe falou-lhe com bondade, mas elle não allendia a
cousa nenhuma.

--- Não, minha senhora, não consentirei em tal vergonha! Fazer descer a
familia, tornar atraz... Já disse, mato-me! Não hei de confessar a
minha gente esta miseria. E os outros? Que dirão os visinhos? E os
amigos? E o publico?

--- Que publico, Sr.~Padua? Deixe-se disso; seja homem Lembre-se que
sua mulher não tem outra pessoa... e que ha de fazer? Pois um homem...
Seja homem, ande.

Padua enxugou os olhos e foi para casa, onde viveu prostrado alguns
dias, mudo, fechado na alcova, --- ou então no quintal, ao pé do poço,
como se a ideia da morte teimasse nelle. D.~Fortunata ralhava:

--- Joãosinho, você é creança?

Mas, tanto lhe ouviu falar em morte que teve medo, e um dia correu a
pedir a minha mãe que lhe fizesse o favor de ver se lhe salvava o
marido que se queria matar. Minha mãe foi achal-o á beira do poço, e
intimou-lhe que vivesse. Que maluquice era aquella de parecer que ia
ficar desgraçado, por causa de uma gratificação menos, e perder um
emprego interino? Não, senhor, devia ser homem, pae de familia, imitar
a mulher e a filha... Padua obedeceu; confessou que acharia forças para
cumprir a vontade de minha mãe.

--- Vontade minha, não; é obrigação sua.

--- Pois seja obrigação; não desconheço que é assim mesmo.

Nos dias seguintes, continuou a entrar e sair de casa, cosido á parede,
cara no chão. Não era o mesmo homem que estragava o chapéo em cortejar
a visinhança, risonho, olhos no ar, antes mesmo da administração
interina. Vieram as semanas, a ferida foi sarando. Padua começou a
interessar-se pelos negocios domesticos, a cuidar dos passarinhos, a
dormir tranquillo as noites e as tardes, a conversar e dar noticias da
rua. A serenidade regressou; atraz della veiu a alegria, um domingo, na
figura de dous amigos, que iam jogar o solo, a tentos. Já elle ria, já
brincava, tinha o ar do costume; a ferida sarou de todo.

Com o tempo veiu um phenomeno interessante. Padua começou a falar da
administração interina, não sómente sem as saudades dos honorarios, nem
o vexame da perda, mas até com desvanecimento e orgulho. A
administração ficou sendo a hegyra, donde elle contava para deante e
para traz.

--- No tempo em que eu era administrador...

Ou então:

--- Ah! sim, lembra-me, foi antes da minha administração, um ou dous
mezes antes... Ora espere; a minha administração começou... É isto, mez
e meio antes; foi mez e meio antes, não foi mais.

Ou ainda:

--- Justamente; havia já seis mezes que eu administrava...

Tal é o sabor posthumo das glorias interinas. José Dias bradava que era
a vaidade sobrevivente; mas o padre Cabral, que levava tudo para a
Escriptura, dizia que com o visinho Padua se dava a licção de Eliphaz a
Job: «Não desprezes a correcção do Senhor; elle fere e cura.»




\chapt{XVII}{Os vermes.}

«Elle fere e cura!» Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de
Achilles tambem curou uma ferida que fez, tive taes ou quaes
velleidades de escrever uma dissertação a este proposito. Cheguei a
pegar em livros velhos, livros mortos, livros enterrados, a abril-os, a
comparal-os, catando o texto e o sentido, para achar a origem commum do
oraculo pagão e do pensamento israelita. Catei os proprios vermes dos
livros, para que me dissessem o que havia nos textos roidos por elles.

--- Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos
absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos,
nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos.

Não lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado
palavra, repetiam a mesma cantilena. Talvez esse discreto silencio
sobre os textos roidos, fosse ainda um modo de roer o roido.




\chapt{XVIII}{Um plano.}

Pae nem mãe foram ter comnosco, quando Capitú e eu, na sala de visitas,
falavamos do seminario. Com os olhos em mim, Capitú queria saber que
noticia era a que me affligia tanto. Quando lhe disse o que era, fez-se
côr de cera.

--- Mas eu não quero, acudi logo, não quero entrar em seminarios; não
entro, é excusado teimarem commigo, não entro.

Capitú, a principio não disse nada. Recolheu os olhos, metteu-os em si
e deixou-se estar com as pupillas vagas e surdas, a bocca entre-aberta,
toda parada. Então eu, para dar força ás affirmações, comecei a jurar
que não seria padre. Naquelle tempo jurava muito e rijo, pela vida e
pela morte. Jurei pela hora da morte. Que a luz me faltasse na hora da
morte se fosse para o seminario. Capitú não parecia crer nem descrer,
não parecia sequer ouvir; era uma figura de pau. Quiz chamal-a,
sacudil-a, mas faltou-me animo. Essa creatura que brincára commigo, que
pulára, dansára, creio até que dormira commigo, deixava-me agora com os
braços atados e medrosos. Emfim, tornou a si, mas tinha a cara livida,
e rompeu nestas palavras furiosas:

--- Beata! carola! papa-missas!

Fiquei aturdido. Capitú gostava tanto de minha mãe, e minha mãe della,
que eu não podia entender tamanha explosão. É verdade que tambem
gostava de mim, e naturalmente mais, ou melhor, ou de outra maneira,
cousa bastante a explicar o despeito que lhe trazia a ameaça da
separação; mas os improperios, como entender que lhe chamasse nomes tão
feios, e principalmente para deprimir costumes religiosos, que eram os
seus? Que ella tambem ia á missa, e tres ou quatro vezes minha mãe é
que a levou, na nossa velha sege. Tambem lhe dera um rosario, uma cruz
de ouro e um livro de \emph{Horas}... Quiz defendel-a, mas Capitú não
me deixou, continuou a chamar-lhe beata e carola, em voz tão alta que
tive medo fosse ouvida dos paes. Nunca a vi tão irritada como então;
parecia disposta a dizer tudo a todos. Cerrava os dentes, abanava a
cabeça... Eu, assustado, não sabia que fizesse; repetia os juramentos,
promettia ir naquella mesma noite declarar em casa que, por nada neste
mundo, entraria no seminario.

--- Você? Você entra.

--- Não entro.

--- Você verá se entra ou não.

Calou-se outra vez. Quando tornou a falar, tinha mudado; não era ainda
a Capitú do costume, mas quasi. Estava seria, sem afflicção, falava
baixo. Quiz saber a conversação da minha casa; eu contei-lh'a toda,
menos a parte que lhe dizia respeito.

--- E que interesse tem José Dias em lembrar isto? perguntou-me no fim.

--- Acho que nenhum; foi só para fazer mal. É um sujeito muito ruim;
mas, deixe estar que me ha de pagar. Quando eu fôr dono da casa, quem
vae para a rua é elle, você verá; não me fica um instante. Mamãe é boa
de mais; dá-lhe attenção de mais. Parece até que chorou.

--- José Dias?

--- Não, mamãe.

--- Chorou porque?

--- Não sei; ouvi só dizer que ella não chorasse, que não era cousa de
choro... Elle chegou a mostrar-se arrependido, e saiu; eu então, para
não ser apanhado, deixei o canto e corri para a varanda. Mas, deixe
estar, que elle me paga!

Disse isto fechando o punho, e proferi outras ameaças. Ao relembral-as,
não me acho ridiculo; a adolescencia e a infancia não são, neste ponto,
ridiculas; é um dos seus privilegios. Este mal ou este perigo começa na
mocidade, cresce na madureza e attinge o maior gráo na velhice. Aos
quinze annos, ha até certa graça em ameaçar muito e não executar nada.

Capitú reflectia. A reflexão não era cousa rara nella, e conheciam-se
as occasiões pelo apertado dos olhos. Pediu-me algumas circumstancias
mais, as proprias palavras de uns e de outros, e o tom dellas. Como eu
não queria dizer o ponto inicial da conversa, que era ella mesma, não
lhe pude dar toda a significação. A attenção de Capitú estava agora
particularmente nas lagrimas de minha mãe; não acabava de entendel-as.
Em meio disto, confessou que certamente não era por mal que minha mãe
me queria fazer padre; era a promessa antiga, que ella, temente a Deus,
não podia deixar de cumprir. Fiquei tão satisfeito de ver que assim
espontaneamente reparava as injurias que lhe sairam do peito, pouco
antes, que peguei da mão della e apertei-a muito. Capitú deixou-se ir,
rindo; depois a conversa entrou a cochilar e dormir. Tinhamos chegado á
janella; um preto, que, desde algum tempo, vinha apregoando cocadas,
parou em frente e perguntou:

--- Sinhásinha, qué cocada hoje?

--- Não, respondeu Capitú.

--- Cocadinha tá boa.

--- Va-se embora, replicou ella sem rispidez.

--- Dê cá! disse eu descendo o braço para receber duas.

Comprei-as, mas tive de as comer sósinho; Capitú recusou. Vi que, em
meio da crise, eu conservava um canto para as cocadas, o que tanto póde
ser perfeição como imperfeição, mas o momento não é para definições
taes; fiquemos em que a minha amiga, apezar de equilibrada e lucida,
não quiz saber de doce, e gostava muito de doce. Ao contrario, o prégão
que o preto foi cantando, o prégão das velhas tardes, tão sabido do
bairro e da nossa infancia:

Chora, menina, chora, Chora, porque não tem Vintem,

a modo que lhe deixára uma impressão aborrecida. Da toada não era; ella
a sabia de cór e de longe, usava repetil-a nos nossos jogos da puericia,
rindo, saltando, trocando os papeis commigo, ora vendendo, ora
comprando um doce ausente. Creio que a lettra, destinada a picar a
vaidade das crianças, foi que a enojou agora, porque logo depois me
disse:

--- Se eu fosse rica, você fugia, mettia-se no paquete e ia para a
Europa.

Dito isto, espreitou-me os olhos, mas creio que elles não lhe disseram
nada, ou só agradeceram a boa intenção. Com effeito, o sentimento era
tão amigo que eu podia excusar o extraordinario da aventura.

Como vês, Capitú, aos quatorze annos, tinha já ideias atrevidas, muito
menos que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na
pratica faziam-se habeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto,
não de salto, mas aos saltinhos. Não sei se me explico bem. Supponde
uma concepção grande excecutada por meios pequenos. Assim, para não
sair do desejo vago e hypothetico de me mandar para a Europa, Capitú,
se pudesse cumpril-o, não me faria embarcar no paquete e fugir;
estenderia uma fila de canoas daqui até lá, por onde eu, parecendo ir á
fortaleza da Lage em ponte movediça, iria realmente até Bordéos,
deixando minha mãe na praia, á espera. Tal era a feição particular do
caracter da minha amiga; pelo que, não admira que, combatendo os meus
projectos de resistencia franca, fosse antes pelos meios brandos, pela
acção do empenho, da palavra, da persuasão lenta e diuturna, e
examinasse antes as pessoas com quem podiamos contar. Rejeitou tio
Cosme; era um «boa-vida»; se não approvava a minha ordenação, não era
capaz de dar um passo para suspendel-a. Prima Justina era melhor que
elle, e melhor que os dous seria o padre Cabral, pela autoridade, mas o
padre não havia de trabalhar contra a egreja; só se eu lhe confessasse
que não tinha vocação....

--- Posso confessar?

--- Pois, sim, mas seria apparecor francamente, e o melhor é outra
cousa. José Dias....

--- Que tem José Dias?

--- Póde ser um bom empenho.

--- Mas se foi elle mesmo que falou....

--- Não importa, continuou Capitú; dirá agora outra cousa. Elle gosta
muito de você. Não lhe fale acanhado. Tudo é que você não tenha medo,
mostre que ha de vir a ser dono da casa, mostre que quer e que póde.
Dê-lhe bem a entender que não é favor. Faça-lhe tambem elogios; elle
gosta muito de ser elogiado. D.~Gloria presta-lhe attençao; mas o
principal não é isso; é que elle, tendo de servir a você, falará com
muito mais calor que outra pessoa.

--- Não acho, não, Capitú.

--- Então vá para o seminario.

--- Isso não.

--- Mas que se perde em experimentar? Experimentemos; faça o que lhe
digo. D.~Gloria póde ser que mude de resolução; se não mudar, faz-se
outra cousa, mette-se então o padre Cabral. Você não se lembra como é
que foi ao theatro pela primeira vez, ha dous mezes? D.~Gloria não
queria, e bastava isso para que José Dias não teimasse; mas elle queria
ir, e fez um discurso, lembra-se?

--- Lembra-me; disse que o theatro era uma escola de costumes.

--- Justo; tanto falou que sua mãe acabou consentindo, e pagou a
entrada aos dous.... Ande, peça, mande. Olhe; diga-lhe que está prompto
a ir estudar leis em S.~Paulo.

Estremeci de prazer. S.~Paulo era um fragil biombo, destinado a ser
arredado um dia, em vez da grossa parede espiritual e eterna. Promettí
falar a José Dias nos termos propostos. Capitú repetiu-os, accentuando
alguns, como principaes; e inquiria-me depois sobre elles, a ver se
entendera bem, se não trocára uns por outros. E insistia em que pedisse
com boa cara, mas assim como quem pede um copo de agua a pessoa que tem
obrigação de o trazer. Conto estas minucias para que melhor se entenda
aquella manhã da minha amiga: logo virá a tarde, e da manhã e da tarde
se fará o primeiro dia, como no Genesis, onde se fizeram
successivamente sete.




\chapt{XIX}{Sem falta.}

Quando voltei a casa era noite. Vim depressa, não tanto, porém, que não
pensasse nos termos em que falaria ao aggregado. Formulei o pedido de
cabeça, escolhendo as palavras que diria e o tom dellas, entre secco e
benevolo. Na chacara, antes de entrar em casa, repeti-as commigo,
depois em voz alta, para ver se eram adequadas e se obedeciam ás
recommendações de Capitú: «Preciso falar-lhe, \emph{sem falta}, amanhã;
escolha o logar e diga-me.» Proferi-as lentamente, e mais lentamente
ainda as palavras \emph{sem falta}, como para sublinhal-as. Repeti-as
ainda, e então achei-as seccas de mais, quasi rispidas, e, francamente,
improprias de um creançola para um homem maduro. Cuidei de escolher
outras, e parei.

Afinal disse commigo que as palavras podiam servir, tudo era dizel-as
em tom que não offendesse. E a prova é que, repetindo-as novamente,
sairam-me quasi supplices. Bastava não carregar tanto, nem adoçar muito,
um meio termo. «E Capitú tem razão, pensei, a casa é minha, elle é um
simples aggregado.... Geitoso é, póde muito bem trabalhar por mim, e
desfazer o plano de mamãe.»




\chapt{XX}{Mil padre-nossos e mil ave-marias.}

Levantei os olhos ao ceu, que começava a embruscar-se, mas não foi para
vel-o coberto ou descoberto. Era ao outro ceu que eu erguia a minha
alma; era ao meu refugio, ao meu amigo. E então disse de mim para mim:

--- Prometto rezar mil padre-nossos e mil ave-marias, se José Dias
arranjar que eu não vá para o seminario.

A somma era enorme. A razão é que eu andava carregado de promessas não
cumpridas. A ultima foi de duzentos padre-nossos e duzentas ave-marias,
se não chovesse em certa tarde de passeio a Santa Theresa. Não choveu,
mas eu não rezei as orações. Desde pequenino acostumára-me a pedir ao
ceu os seus favores, mediante orações que diria, se elles viessem.
Disse as primeiras, as outras foram adiadas, e á medida que se
amontoavam iam sendo esquecidas. Assim cheguei aos numeros vinte,
trinta, cincoenta. Entrei nas centenas e agora no milhar, Era um modo
de peitar a vontade divina pela quantia das orações; alem disso, cada
promessa nova era feita e jurada no sentido de pagar a divida antiga.
Mas vão lá matar a preguiça de uma alma que a trazia do berço e não a
sentia attenuada pela vida! O ceu fazia-me o favor, eu adiava a paga.
Afinal perdi-me nas contas.

--- Mil, mil, repeti commigo.

Realmente, a materia do beneficio era agora immensa, não menos que a
salvação ou o naufragio da minha existencia inteira. Mil, mil, mil. Era
preciso uma somma que pagasse os atrazados todos. Deus podia muito bem,
irritado com os esquecimentos, negar-se a ouvir-me sem muito dinheiro....
Homem grave, é possivel que estas agitações de menino te enfadem, se é
que não as achas ridiculas. Sublimes não eram. Cogitei muito no modo de
resgatar a divida espiritual. Não achava outra especie em que, mediante
a intenção, tudo se cumprisse, fechando a escripturação da minha
consciencia moral sem \emph{deficit}. Mandar dizer cem missas, ou subir
de joelhos a ladeira da Gloria para ouvir uma, ir á Terra-Santa, tudo o
que as velhas escravas me contavam de promessas celebres, tudo me
acudia sem se fixar de vez no espirito. Era muito duro subir uma
ladeira de joelhos; devia feril-os por força. A Terra-Santa ficava
muito longe. As missas eram numerosas, podiam empenhar-me outra vez a
alma....




\chapt{XXI}{Prima Justina.}

Na varanda achei prima Justina, passeando de um lado para outro. Veiu
ao patamar e perguntou-me onde estivera.

--- Estive aqui ao pé, conversando com D.~Fortunata, e distraí-me. É
tarde, não é? Mamãe perguntou por mim?

--- Perguntou, mas eu disse que você já tinha vindo.

A mentira espantou-me, não menos que a franqueza da noticia. Não é que
prima Justina fosse de biocos; dizia francamente a Pedro o mal que
pensava de Paulo, e a Paulo o que pensava de Pedro; mas, confessar que
mentira é que me pareceu novidade. Era quadragenaria, magra e pallida,
bocca fina e olhos curiosos. Vivia comnosco por favor de minha mãe, e
tambem por interesse; minha mãe queria ter uma senhora intima ao pé de
si, e antes parenta que extranha.

Passeámos alguns minutos na varanda, alumiada por um lampião. Quiz
saber se eu não esquecera os projectos ecclesiasticos de minha mãe, e
dizendo-lhe eu que não, inquiriu-me sobre o gosto que eu tinha á vida
de padre. Respondi esquivo:

--- Vida de padre é muito bonita.

--- Sim, é bonita; mas o que pergunto é se você gostaria de ser padre,
explicou rindo.

--- Eu gósto do que mamãe quizer.

--- Prima Gloria deseja muito que você se ordene, mas ainda que não
desejasse, ha cá em casa quem lhe metta isso na cabeça.

--- Quem é?

--- Ora, quem! Quem é que ha de ser? Primo Cosme não é, que não se
importa com isso; eu tambem não.

--- José Dias? conclui.

--- Naturalmente.

Enruguei a testa interrogativamente, como se não soubesse nada. Prima
Justina completou a noticia dizendo que ainda naquella tarde José Dias
lembrára a minha mãe a promessa antiga.

--- Prima Gloria póde ser que, em passando os dias, vá esquecendo a
promessa; mas como ha de esquecer se uma pessoa estiver sempre, nos
ouvidos, zás que darás, falando do seminario? E os discursos que elle
faz, os elogios da egreja, e que a vida de padre é isto e aquillo, tudo
com aquellas palavras que só elle conhece, e aquella affectação... Note
que é só para fazer mal, porque elle é tão religioso, como este lampião.
Pois é verdade, ainda hoje. Você não se dê por achado... Hoje de tarde
falou como você não imagina.

--- Mas falou á tôa? perguntei, a ver se ella contava a denuncia do meu
namoro com a visinha.

Não contou: fez apenas um gesto como indicando que havia outra cousa
que não podia dizer. Novamente me recommendou que não me désse por
achado, e recapitulou todo o mal que pensava de José Dias, e não era
pouco, um intrigante, um bajulador, um especulador, e, apezar da casca
de polidez, um grosseirão. Eu, passados alguns instantes, disse:

--- Prima Justina, a senhora era capaz de uma cousa?

--- De quê?

--- Era capaz de... Supponha que eu não gostasse de ser padre... a
senhora podia pedir a mamãe...

--- Isso não, atalhou promplamente; prima Gloria tem este negocio firme
na cabeça, e não ha nada no mundo que a faça mudar de resolução; só o
tempo. Você ainda era pequenino, já ella contava isto a todas as
pessoas da nossa amizade, ou só conhecidas. Lá avivar-lhe a memoria,
não, que eu não trabalho para a desgraça dos outros; mas tambem, pedir
outra cousa, não peço. Se ella me consultasse, bem; se ella me dissesse:
«Prima Justina, você que acha?» a minha resposta era: «Prima Gloria, eu
penso que, se elle gosta de ser padre, póde ir; mas, se não gosta, o
melhor é ficar.» É o que eu diria e direi se ella me consultar algum
dia. Agora, ir falar-lhe sem ser chamada, não faço.




\chapt{XXII}{Sensações alheias.}

Não alcancei mais nada, e para o fim arrependi-me do pedido: devia ter
seguido o conselho de Capitú. Então, como eu quizesse ir para dentro,
prima Justina reteve-me alguns minutos, falando do calor e da proxima
festa da Conceição, dos meus velhos oratorios, e finalmente de Capitú.
Não disse mal della; ao contrario insinuou-me que podia vir a ser uma
moça bonita. Eu, que já a achava lindissima, bradaria que era a mais
bella creatura do mundo, se o receio me não fizesse discreto.
Entretanto, como prima Justina se mettesse a elogiar-lhe os modos, a
gravidade, os costumes, o trabalhar para os seus, o amor que tinha a
minha mãe, tudo isto me accendeu a ponto de elogial-a tambem. Quando
não era com palavras, era com o gesto de approvação que dava a cada uma
das assersões da outra, e certamente com a felicidade que devia
illuminar-me a cara. Não adverti que assim confirmava a denuncia de
José Dias, ouvida por ella, á tarde, na sala de visitas, se é que
tambem ella não desconfiava já. Só pensei nisso na cama. Só então senti
que os olhos de prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me,
ouvir-me, cheirar-me, gostar-me, fazer o officio de todos os sentidos.
Ciumes não podiam ser; entre um pirralho da minha edade e uma viuva
quarentona não havia logar para ciumes. É certo que, após algum tempo,
modificou os elogios a Capitú, e até lhe fez algumas criticas, disse-me
que era um pouco trefega e olhava por baixo; mas ainda assim, não creio
que fossem ciumes. Creio antes... sim... sim, creio isto. Creio que
prima Justina achou no espectaculo das sensações alheias uma
resurreição vaga das proprias. Tambem se goza por influição dos labios
que narram.




\chapt{XXIII}{Prazo dado.}

--- Preciso falar-lhe amanhã, sem falta; escolha o logar e diga-me.

Creio que José Dias achou desusado este meu falar. O tom não me sairia
tão imperativo como eu receiava, mas as palavras o eram, e o não
interrogar, não pedir, não hesitar, como era proprio da creança e do
meu estylo habitual, certamente lhe deu ideia de uma pessoa nova e de
uma nova situação. Foi no corredor, quando iamos para o chá; José Dias
vinha andando cheio da leitura de Walter Scott que fizera a minha mãe e
a prima Justina. Lia cantado e compassado. Os castellos e os parques
saíam maiores da bocca delle, os lagos tinham mais agua e a «abobada
celeste» contava alguns milhares mais de estrellas centelhantes. Nos
dialogos, alternava o som das vozes, que eram levemente grossas ou
finas, conforme o sexo dos interlocutores, e reproduziam com moderação
a ternura e a colera.

Ao despedir-se de mim, na varanda, disse-me elle:

--- Amanhã, na rua. Tenho umas compras que fazer, você póde ir commigo,
pedirei a mamãe. É dia de licção?

--- A licção foi hoje.

--- Perfeitamente. Não lhe pergunto o que é; affirmo desde já que é
materia grave e pura.

--- Sim, senhor.

--- Até amanhã.

Fez-se tudo o melhor possivel. Houve só uma alteração: minha mãe achou
o dia quente e não consentiu que eu fosse a pé; entrámos no omnibus, á
porta de casa.

--- Não importa, disse-me José Dias; podemos apear-nos á porta do
Passeio Publico.




\chapt{XXIV}{De mãe e de servo.}

José Dias tratava-me com extremos de mãe e attenções de servo. A
primeira cousa que conseguiu logo que comecei a andar fóra, foi
dispensar-me o pagem; fez-se pagem, ia commigo á rua. Cuidava dos meus
arranjos em casa, dos meus livros, dos meus sapatos, da minha hygiene e
da minha prosodia. Aos oito annos os meus pluraes careciam, alguma vez,
da desinencia exacta, elle a corrigia, meio serio para dar autoridade á
licção, meio risonho para obter o perdão da emenda. Ajudava assim o
mestre de primeiras lettras. Mais tarde, quando o padre Cabral me
ensinava latim, doutrina e historia sagrada, elle assistia ás licções,
fazia reflexões ecclesiasticas, e, no fim, perguntava ao padre: «Não é
verdade que o nosso joven amigo caminha depressa?» Chamava-me «um
prodigio»; dizia a minha mãe ter conhecido outr'ora meninos muito
intelligentes, mas que eu excedia a todos esses, sem contar que, para a
minha edade, possuia já certo numero de qualidades moraes solidas. Eu,
posto não avaliasse todo o valor deste outro elogio, gostava do elogio;
era um elogio.




\chapt{XXV}{No Passeio Publico.}

Entrámos no Passeio Publico. Algumas caras velhas, outras doentes ou só
vadias espalhavam-se melancolicamente no caminho que vae da porta ao
terraço. Seguimos para o terraço. Andando, para me dar animo, falei do
jardim:

--- Ha muito tempo que não venho aqui, talvez um anno.

--- Perdôe-me, atalhou elle, não ha tres mezes que esteve aqui com o
nosso visinho Padua; não se lembra?

--- É verdade, mas foi tão de passagem...

--- Elle pediu a sua mãe que o deixasse trazer comsigo, e ella, que é
boa como a mãe de Deus, consentiu; mas ouça-me, já que falamos nisto,
não é bonito que você ande com o Padua na rua.

--- Mas eu andei algumas vezes...

--- Quando era mais joven; em creança, era natural, elle podia passar
por creado. Mas você está ficando moço, e elle vae tomando confiança.
D.~Gloria, afinal, não póde gostar disto. A gente Padua não é de todo
má. Capitú, apesar daquelles olhos que o diabo lhe deu... Você já
reparou nos olhos della? São assim de cigana obliqua e dissimulada.
Pois, apesar delles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a
adulação. Oh! a adulação! D.~Fortunata merece estima, e elle não nego
que seja honesto, tem um bom emprego, possue a casa em que mora, mas
honestidade e estima não bastam, e as outras qualidades perdem muito de
valor com as más companhias em que elle anda. Padua tem uma tendencia
para gente reles. Em lhe cheirando a homem chulo é com elle. Não digo
isto por odio, nem por que elle fale mal de mim e se ria, como se riu,
ha dias, dos meus sapatos acalcanhados...

--- Perdão, interrompi suspendendo o passo, nunca ouvi que falasse mal
do senhor; pelo contrario, um dia, não ha muito tempo, disse elle a um
sujeito, em minha presença, que o senhor era «um homem de capacidade e
sabia falar como um deputado nas camaras.»

José Dias sorriu deliciosamente, mas fez um esforço grande e fechou
outra vez o rosto; depois replicou:

--- Não lhe agradeço nada. Outros, de melhor sangue, me tem feito o
favor de juizos altos. E nada disso impede que elle seja o que lhe digo.

Tinhamos outra vez andado, subimos ao terraço, e olhámos para o mar.

--- Vejo que o senhor não quer senão o meu beneficio, disse eu depois
de alguns instantes.

--- Pois que outra cousa, Bentinho?

--- Neste caso, peço-lhe um favor.

--- Um favor? Mande, ordene, que é?

--- Mamãe...

Durante algum tempo não pude dizer o resto, que era pouco, e vinha de
cór. José Dias tornou a perguntar o que era, sacudia-me com brandura,
levantava-me o queixo e espetava os olhos em mim, ancioso tambem, como
a prima Justina na vespera.

--- Mamãe quê? Que é que tem mamãe?

--- Mamãe quer que eu seja padre, mas eu não posso ser padre, disse
finalmente.

José Dias endireitou-se pasmado.

--- Não posso, continuei eu, não menos pasmado que elle, não tenho
geito, não gósto da vida de padre. Estou por tudo o que ella quizer;
mamãe sabe que eu faço tudo o que ella manda; estou prompto a ser o que
fôr do seu agrado, até cocheiro de omnibus. Padre, não; não posso ser
padre. A carreira é bonita, mas não é para mim.

Todo esse discurso não me saiu assim, de vez, enfiado naturalmente,
peremptorio, como póde parecer do texto, mas aos pedaços, mastigado, em
voz um pouco surda e timida. Não obstante, José Dias ouvira-o espantado.
Não contava certamente com a resistencia, por mais acanhada que fosse;
mas o que ainda mais o assombrou foi esta conclusão:

--- Conto com o senhor para salvar-me.

Os olhos do aggregado escancararam-se, as sobrancelhas arquearam-se, e
o prazer que eu contava dar-lhe com a escolha da protecção não se
mostrou em nenhum dos musculos. Toda a cara delle era pouca para a
estupefacção. Realmente, a materia do discurso revelára em mim uma alma
nova; eu proprio não me conhecia. Mas a palavra final é que trouxe um
vigor unico. José Dias ficou aturdido. Quando os olhos tornaram ás
dimensões ordinarias:

----- Mas que posso eu fazer? perguntou.

--- Póde muito. O senhor sabe que, em nossa casa, todos o apreciam.
Mamãe pede muita vez os seus conselhos, não é? Tio Cosme diz que o
senhor é pessoa de talento...

--- São bondados, retorquiu lisonjeado. São favores de pessoas dignas,
que merecem tudo... Ahi está! nunca ninguem me ha de ouvir dizer nada
de pessoas taes; porque? porque são illustres e virtuosas. Sua mãe é
uma santa, seu tio é um cavalheiro perfeitissimo. Tenho conhecido
familias distinctas; nenhuma poderá vencer a sua em nobreza de
sentimentos. O talento que seu tio acha em mim confesso que o tenho,
mas é só um, --- é o talento de saber o que é bom e digno de admiração
e de apreço.

--- Ha de ter tambem o de proteger os amigos, como eu.

--- Em que lhe posso valer, anjo do ceu? Não hei de dissuadir sua mãe
de um projecto que é, alem de promessa, a ambição e o sonho de longos
annos. Quando pudesse, é tarde. Ainda hontem fez-me o favor de dizer: «José
Dias, preciso metter Bentinho no seminario.»

Timidez não é tão ruim moeda, como parece. Se eu fosso destemido, é
provavel que, com a indignação que experimentei, rompesse a chamar-lhe
mentiroso, mas então seria preciso confessar-lhe que estivera á escuta,
atraz da porta, e uma acção valia outra. Contentei-me de responder que
não era tarde.

--- Não é tarde, ainda é tempo, se o senhor quizer.

--- Se eu quizer? Mas que outra cousa quero eu, senão servil-o? Que
desejo, senão que seja feliz, como merece?

--- Pois ainda é tempo. Olhe, não é por vadiação. Estou prompto para
tudo; se ella quizer que eu estude leis, vou para S.~Paulo...




\chapt{XXVI}{As leis são bellas.}

Pela cara de José Dias passou algo parecido com o reflexo de uma ideia,
--- uma ideia que o alegrou extraordinariamente. Calou-se alguns
instantes; eu tinha os olhos nelle, elle voltára os seus para o lado da
barra. Como insistisse:

--- É tarde, disse elle; mas, para lhe provar que não ha falta de
vontade, irei falar a sua mãe. Não prometto vencer, mas lutar;
trabalharei com alma. Devéras, não quer ser padre? As leis são bellas,
meu querido... Póde ir a S.~Paulo, a Pernambuco, ou ainda mais longe.
Ha boas universidades por esse mundo fóra. Vá para as leis, se tal é a
sua vocação. Vou falar a D.~Gloria, mas não conte só commigo; fale
tambem a seu tio.

--- Hei de falar.

--- Pegue-se tambem com Deus, --- com Deus e a Virgem Santissima,
concluiu apontando para o ceu.

O ceu estava meio enfarruscado. No ar, perto da praia, grandes passaros
negros faziam giros, avançando ou pairando, e desciam a roçar os pés,
na agua, e tornavam a erguer-se para descer novamente. Mas nem as
sombras do ceu, nem as dansas fantasticas dos passaros me desviavam o
espirito de meu interlocutor. Depois de lhe responder que sim,
emendei-me:

--- Deus fará o que o senhor quizer.

--- Não blaspheme. Deus é dono de tudo; elle é, só por si, a terra e o
ceu, o passado, o presente e o futuro. Peça-lhe a sua felicidade, que
eu não faço outra cousa... Uma vez que você não póde ser padre, e
prefere as leis... As leis são bellas, sem desfazer na theologia, que é
melhor que tudo, como a vida ecclesiastica é a mais santa... Porque não
ha de ir estudar leis fóra daqui? Melhor é ir logo para alguma
universidade, e ao mesmo tempo que estuda, viaja. Podemos ir juntos;
veremos as terras estranjeiras, ouviremos inglez, francez, italiano,
hespanhol, russo e até sueco. D.~Gloria provavelmente não poderá
acompanhal-o; ainda que possa e vá, não quererá guiar os negocios,
papeis, matriculas, e cuidar de hospedadas, e andar com você de um lado
para outro... Oh! as leis são bellissimas!

--- Está dito, pede a mamãe que me não metta no seminario?

--- Pedir, peço, mas pedir não é alcançar. Anjo do meu coração, se
vontade de servir é poder de mandar, estamos aqui, estamos a bordo. Ah!
você não imagina o que é a Europa; oh! a Europa... Levantou a perna e
fez uma pirueta. Uma das suas ambições era tornar á Europa, falava
della muitas vezes, sem acabar de tentar minha mãe nem tio Cosme, por
mais que louvasse os ares e as bellezas... Não contava com esta
possibilidade de ir commigo, e lá ficar durante a eternidade dos meus
estudos.

--- Estamos a bordo, Bentinho, estamos a bordo!




\chapt{XXVII}{Ao portão.}

Ao portão do Passeio, um mendigo estendeu-nos a mão. José Dias passou
adiante, mas eu pensei em Capitú e no seminario, tirei dous vinténs do
bolso e dei-os ao mendigo. Este beijou a moeda; eu pedi-lhe que rogasse
a Deus por mim, afim de que eu pudesse satisfazer todos os meus desejos.

--- Sim, meu devoto!

--- Chamo-me Bento, accrescentei para esclarecel-o.




\chapt{XXVIII}{Na rua.}

José Dias ia tão contente que trocou o homem dos momentos graves, como
era á rua, pelo homem dobradiço e inquieto. Mexia-se todo, falava de
tudo, fazia-me parar a cada passo deante de um mostrador ou de um
cartaz de theatro. Contava-me o enredo de algumas peças, recitava
monologos em verso. Fez os recados todos, pagou contas, recebeu
alugueis de casa; para si comprou um vigesimo de loteria. Afinal, o
homem tezo rendeu o flexivel, e passou a falar pausado, com
superlativos. Não vi que a mudança era natural; temi que houvesse
mudado a resolução assentada, e entrei a tratal-o com palavras e gestos
carinhosos, até entrarmos no omnibus.




\chapt{XXIX}{O imperador.}

Em caminho, encontrámos o imperador, que vinha da Escola de Medicina. O
omnibus em que iamos parou, como todos os vehiculos; os passageiros
desceram á rua e tiraram o chapéo, até que o coche imperial passasse.
Quando tornei ao meu logar, trazia uma ideia fantastica, a ideia de ir
ter com o imperador, contar-lhe tudo e pedir-lhe a intervenção. Não
confiaria esta ideia a Capitú. «Sua Majestade pedindo, mamãe cede,»
pensei commigo.

Vi então o imperador escutando-me, reflectindo e acabando por dizer que
sim, que iria falar a minha mãe; eu beijava-lhe a mão, com lagrimas, E
logo me achei em casa, á espera, até que ouvi os batedores e o piquete
de cavallaria; é o imperador! é o imperador! toda a gente chegava ás
janellas para vel-o passar, mas não passava, o coche parava á nossa
porta, o imperador apeava-se e entrava. Grande alvoroço na visinhança:
«O imperador entrou em casa de D.~Gloria! Que será? Que não será?» A
nossa familia saía a recebel-o; minha mãe era a primeira que lhe
beijava a mão. Então o imperador, todo risonho, sem entrar na sala ou
entrando, --- não me lembra bem, os sonhos são muita vez confusos, ---
pedia a minha mãe que me não fizesse padre, --- e ella, lisongeada e
obediente, promettia que não.

--- A medicina, --- porque lhe não manda ensinar medicina?

--- Uma vez que é do agrado de Vossa Majestade...

--- Mande ensinar-lhe medicina; é uma bonita carreira, e nós temos aqui
bons professores. Nunca foi á nossa Escola? É uma bella Escola. Já
temos medicos de primeira ordem, que pódem hombrear com os melhores de
outras terras. A medicina é uma grande sciencia; basta só isto de dar a
saude aos outros, conhecer as molestias, combatel-as, vencel-as... A
senhora mesma ha de ter visto milagres. Seu marido morreu, mas a doença
era fatal, e elle não tinha cuidado em si... É uma bonita carreira;
mande-o para a nossa Escola. Faça isso por mim, sim? Você quer,
Bentinho?

--- Mamãe querendo.

--- Quero, meu filho. Sua Majestade manda.

Então o imperador dava outra vez a mão a beijar, e saía, acompanhado de
todos nós, a rua cheia de gente, as janellas atopetadas, um silencio de
assombro; o imperador entrava no coche, inclinava-se e fazia um gesto
de adeus, dizendo ainda: «A medicina, a nossa Escola.» E o coche partia
entre invejas e agradecimentos.

Tudo isso vi e ouvi. Não, a imaginação de Ariosto não é mais fertil que
a das creanças e dos namorados, nem a visão do impossivel precisa mais
que de um recanto de omnibus. Consolei-me por instantes, digamos
minutos, até destruir-se o plano e voltar-me para as caras sem sonhos
dos meus companheiros.




\chapt{XXX}{O Santissimo.}

Terás entendido que aquella lembrança do imperador acerca da medicina
não era mais que a suggestão da minha pouca vontade de sair do Rio de
Janeiro. Os sonhos do accordado são como os outros sonhos, tecem-se
pelo desenho das nossas inclinações e das nossas recordações. Vá que
fosse para S.~Paulo, mas a Europa... Era muito longe, muito mar e muito
tempo. Viva a medicina! Iria contar estas esperanças a Capitú.

--- Parece que vae sair o Santissimo, disse alguem no omnibus. Ouço um
sino; é, creio que é em Santo Antonio dos Pobres. Pare, Sr.~recebedor!

O recebedor das passagens puxou a correia que ia ter ao braço do
cocheiro, o omnibus parou, e o homem desceu. José Dias deu duas voltas
rapidas á cabeça, pegou-me no braço e fez-me descer comsigo. Iriamos
tambem acompanhar o Santissimo.

Effectivaniente, o sino chamava os fieis áquelle serviço da ultima hora.
Já havia algumas pessoas na sacristia. Era a primeira vez que me achava
em momento tão grave; obedeci, a principio constrangido, mas logo
depois satisfeito, menos pela caridade do serviço que por me dar um
officio de homem. Quando o sacristão começou a distribuir as opas,
entrou um sujeito esbaforido; era o meu visinho Padua, que tambem ia
acompanhar o Santissimo. Deu comnosco, veiu comprimentar-nos. José Dias
fez um gesto de aborrecido, e apenas lhe respondeu com uma palavra
secca, olhando para o padre, que lavava as mãos. Depois, como Padua
falasse ao sacristão, baixinho, approximou-se delles; eu fiz a mesma
cousa. Padua solicitava do sacristão uma das varas do pallio. José Dias
pediu uma para si.

--- Ha só uma disponivel, disse o sacristão.

--- Pois essa, disse José Dias.

--- Mas eu tinha pedido primeiro, aventurou Padua.

--- Pediu primeiro, mas entrou tarde, retorquiu José Dias; eu já cá
estava. Leve uma tocha.

Padua, apesar do medo que tinha ao outro, teimava em querer a vara,
tudo isto em voz baixa e surda. O sacristão achou meio de conciliar a
rivalidade, tomando a si obter de um dos outros seguradores do palio
que cedesse a vara ao Padua, conhecido na parochia, como José Dias.
Assim fez; mas José Dias transtornou ainda esta combinação. Não, uma
vez que tinhamos outra vara disponivel, pedia-a para mim, «joven
seminarista», a quem esta distincção cabia mais direitamente. Padua
ficou pallido, como as tochas. Era pôr á prova o coração de um pae. O
sacristão, que me conhecia de me ver alli com minha mãe, aos domingos,
perguntou de curioso se eu era devéras seminarista.

--- Ainda não, mas vae sel-o, respondeu José Dias piscando o olho
esquerdo para mim, que, apesar do aviso, fiquei zangado.

--- Bem, cedo ao nosso Bentinho, suspirou o pae de Capitú.

Pela minha parte, quiz ceder-lhe a vara; lembrou-me que elle costumava
acompanhar o Santissimo Sacramento aos moribundos, levando uma tocha,
mas que a ultima vez conseguira uma vara do pallio. A distincção
especial do pallio vinha de cobrir o vigario e o sacramento; para tocha
qualquer pessoa servia. Foi elle mesmo que me contou e explicou isto,
cheio de uma gloria pia e risonha. Assim fica entendido o alvoroço com
que entrára na egreja; era a segunda vez do pallio, tanto que cuidou
logo de ir pedil-o. E nada! E tornava á tocha commum, outra vez a
interinidade interrompida; o administrador regressava ao antigo cargo...
Quiz ceder-lhe a vara; o aggregado tolheu-me esse acto de generosidade,
e pediu ao sacristão que nos puzesse, a elle e a mim, com as duas varas
da frente, rompendo a marcha do pallio.

Opas enfiadas, tochas distribuidas e accesas, padre e ciborio promptos,
o sacristão de hyssope e campainha nas mãos, saiu o prestito á rua.
Quando me vi com uma das varas, passando pelos fieis, que se ajoelhavam,
fiquei commovido. Padua roía a tocha amargamente. É uma metaphora, não
acho outra fórma mais viva de dizer a dôr e a humilhação do meu visinho.
De resto, não pude miral-o por muito tempo, nem ao aggregado, que,
parallelamente a mim, erguia a cabeça com o ar de ser elle proprio o
Deus dos exercitos. Com pouco, senti-me cançado; os braços caíam-me,
felizmente a casa era perto, na rua do Senado.

A enferma era uma senhora viuva, tisica, tinha uma filha de quinze ou
dezeseis annos, que estava chorando á porta do quarto. A moça não era
formosa, talvez nem tivesse graça; os cabellos caíam despenteados, e as
lagrimas faziam-lhe encarquilhar os olhos. Não obstante, o total falava
e captivava o coração. O vigario confessou a doente, deu-lhe a
communhão e os santos oleos. O pranto da moça redobrou tanto que senti
os meus olhos molhados e fugi. Vim para perto de uma janella. Pobre
creatura! A dôr era communicativa em si mesma; complicada da lembrança
de minha mãe, doeu-me mais, e, quando enfim pensei em Capitú, senti um
impeto de soluçar tambem, enfiei pelo corredor, e ouvi alguem dizer-me:

--- Não chore assim!

A imagem de Capitú ia commigo, e a minha imaginação, assim como lhe
attribuira lagrimas, ha pouco, assim lhe encheu a bocca de riso agora;
vi-a escrever no muro, falar-me, andar á volta, com os braços no ar;
ouvi distinctamente o meu nome, de uma doçura que me embriagou, e a voz
era della. As tochas accesas, tão lugubres na occasião, tinham-me ares
de um lustre nupcial... Que era lustre nupcial? Não sei; era alguma
cousa contraria á morte, e não vejo outra mais que bodas. Esta nova
sensação me dominou tanto que José Dias veiu a mim, e me disse ao
ouvido, em voz baixa:

--- Não ria assim!

Fiquei serio depressa. Era o momento da saida. Peguei da minha vara; e,
como já conhecia a distancia, e agora voltavamos para a egreja, o que
fazia a distancia menor, --- o peso da vara era mui pequeno. Demais, o
sol cá fóra, a animação da rua, os rapazes da minha edade que me
fitavam cheios de inveja, as devotas que chegavam ás janellas ou
entravam nos corredores e se ajoelhavam á nossa passagem, tudo me
enchia a alma de lepidez nova.

Padua, ao contrario, ia mais humilhado. Apesar de substituido por mim,
não acabava de se consolar da tocha, da miseravel tocha. E comtudo
havia outros que tambem traziam tocha, e apenas mostravam a compostura
do acto; não iam garridos, mas tambem não iam tristes. Via-se que
caminhavam com honra.




\chapt{XXXI}{As curiosidades de Capitú.}

Capitú preferia tudo ao seminario. Em vez de ficar abatida com a ameaça
da larga separação, se vingasse a ideia da Europa, mostrou-se
satisfeita. E quando eu lhe contei o meu sonho imperial:

--- Não, Bentinho, deixemos o imperador socegado, replicou; fiquemos
por ora com a promessa de José Dias. Quando é que elle disse que
falaria a sua mãe?

--- Não marcou dia; prometteu que ia ver, que falaria logo que pudesse,
e que me pegasse com Deus.

Capitú quiz que lhe repetisse as respostas todas do aggregado, as
alterações do gesto e até a pirueta, que apenas lhe contára. Pedia o
som das palavras. Era minuciosa e allenta; a narração e o dialogo, tudo
parecia remoer comsigo. Tambem se póde dizer que conferia, rotulava e
pregava na memoria a minha exposição. Esta imagem é por ventura melhor
que a outra, mas a optima dellas é nenhuma. Capitú era Capitú, isto é,
uma creatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda
o não disse, ahi fica. Se disse, fica tambem. Ha conceitos que se devem
incutir na alma do leitor, á força de repetição.

Era tambem mais curiosa. As curiosidades de Capitú dão para um capitulo.
Eram de varia especie, explicaveis e inexplicaveis, assim uteis como
inuteis, umas graves, outras frivolas; gostava de saber tudo. No
collegio onde, desde os sete annos, apprendera a ler, escrever e contar,
francez, doutrina e obras de agulha, não apprendeu, por exemplo, a
fazer renda; por isso mesmo, quiz que prima Justina lh'o ensinasse. Se
não estudou latim com o padre Cabral foi porque o padre, depois de lh'o
propôr gracejando, acabou dizendo que latim não era lingua de meninas.
Capitú confessou-me um dia que esta razão accendeu nella o desejo de o
saber. Em compensação, quiz apprender inglez com um velho professor
amigo do pae e parceiro deste ao sólo, mas não foi adeante. Tio Cosme
ensinou-lhe gamão.

--- Anda apanhar um capotinho, Capitú, dizia-lhe elle.

Capitú obedecia e jogava com facilidade, com attenção, não sei se diga
com amor. Um dia fui achal-a desenhando a lapis um retrato; dava os
ultimos rasgos, e pediu-me que esperasse para ver se estava parecido.
Era o de meu pae, copiado da tela que minha mãe tinha na sala e que
ainda agora está commigo. Perfeição não era; ao contrario, os olhos
sairam esbogalhados, e os cabellos eram pequenos circulos uns sobre
outros. Mas, não tendo ella rudimento algum de arte, e havendo feito
aquillo de memoria em poucos minutos, achei que era obra de muito
merecimento; descontai-me a edade e a sympathia. Ainda assim, estou que
apprenderia facilmente pintura, como apprendeu musica mais tarde. Já
então namorava o piano da nossa casa, velho traste inutil, apenas de
estimação. Lia os nossos romances, folheava os nossos livros de
gravuras, querendo saber das ruinas, das pessoas, das campanhas, o nome,
a historia, o logar. José Dias dava-lhe essas noticias com certo
orgulho de erudito. A erudição deste não avultava muito mais que a sua
homeopathia de Cantagallo.

Um dia, Capitú quiz saber o que eram as figuras da sala de visitas. O
aggregado disse-lh'o summariamente, demorando-se um pouco mais em Cesar,
com exclamações e latins:

--- Cesar! Julio Cesar! Grande homem! \emph{Tu quoque, Brute?}

Capitú não achava bonito o perfil de Cesar, mas as acções citadas por
José Dias davam-lhe gestos de admiração. Ficou muito tempo com a cara
virada para elle. Um homem que podia tudo! que fazia tudo! Um homem que
dava a uma senhora uma perola do valor de seis milhões de sestercios!

--- E quanto valia cada sestercio?

José Dias, não tendo presente o valor do sestercio, respondeu
enthusiasmado:

--- É o maior homem da historia!

A perola de Cesar accendia os olhos de Capitú. Foi nessa occasião que
ella perguntou a minha mãe porque é que já não usava as joias do
retrato; referia-se ao que estava na sala, com o de meu pae; tinha um
grande collar, um diadema e brincos.

--- São joias viuvas, como eu, Capitú.

--- Quando é que botou estas?

--- Foi pelas festas da Coroação.

--- Oh! conte-me as festas da Coroação!

Sabia já o que os paes lhe haviam dito, mas naturalmente tinha para si
que elles pouco mais conheceriam do que o que se passou nas ruas.
Queria a noticia das tribunas da Capella Imperial e dos salões dos
bailes. Nascera muito depois daquellas festas celebres. Ouvindo falar
varias vezes da Maioridade, teimou um dia em saber o que fôra este
acontecimento; disseram-lh'o, e achou que o imperador fizera muito bem
em querer subir ao throno aos quinze annos. Tudo era materia ás
curiosidades de Capitú, mobilias antigas, alfaias velhas, costumes,
noticias de Itaguahy, a infancia e a mocidade de minha mãe, um dito
daqui, uma lembrança dalli, um adagio d'acolá...




\chapt{XXXII}{Olhos de ressaca.}

Tudo era materia ás curiosidades de Capitú. Caso houve, porém, no qual
não sei se apprendeu ou ensinou, ou se fez ambas as cousas, como eu. É
o que contarei no outro capitulo. Neste direi somente que, passados
alguns dias do ajuste com o aggregado, fui ver a minha amiga; eram dez
horas da manhã. D.~Fortunata, que estava no quintal, nem esperou que eu
lhe perguntasse pela filha.

--- Está na sala penteando o cabello, disse-me; vá devagarzinho para
lhe pregar um susto. Fui devagar, mas ou o pé ou o espelho traiu-me.
Este póde ser que não fosse; era um espelhinho de pataca (perdoai a
barateza), comprado a um mascate italiano, moldura tosca, argolinha de
latão, pendente da parede, entre as duas janellas. Se não foi elle, foi
o pé. Um ou outro, a verdade é que, apenas entrei na sala, pente,
cabellos, toda ella voou pelos ares, e só lhe ouvi esta pergunta:

--- Ha alguma cousa?

--- Não ha nada, respondi; vim ver você antes que o padre Cabral chegue
para a licção. Como passou a noite?

--- Eu bem. José Dias ainda não falou?

--- Parece que não.

--- Mas então quando fala?

--- Disse-me que hoje ou amanhã pretende tocar no assumpto; não vae
logo de pancada, falará assim por alto e por longe, um toque. Depois,
entrará em materia. Quer primeiro ver se mamãe tem a resolução feita...

--- Que tem, tem, interrompeu Capitú. E se não fosse preciso alguem
para vencer já, e de todo, não se lhe falaria. Eu já nem sei se José
Dias poderá influir tanto; acho que fará tudo, se sentir que você
realmente não quer ser padre, mas poderá alcançar...? Elle é attendido;
se, porém... É um inferno isto! Você teime com elle, Bentinho.

--- Teimo; hoje mesmo elle ha de falar.

--- Você jura?

--- Juro! Deixe ver os olhos, Capitú.

Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera delles, «olhos de
cigana obliqua e dissimulada.» Eu não sabia o que era obliqua, mas
dissimulada sabia, e queria ver se se podiam chamar assim. Capitú
deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os
vira; eu nada achei extraordinario; a côr e a doçura eram minhas
conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra ideia do
meu intento; imaginou que era um pretexto para miral-os mais de perto,
com os meus olhos longos, constantes, enfiados nelles, e a isto
altribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal
expressão que...

Rhetorica dos namorados, dá-me uma comparação exacta e poetica para
dizer o que foram aquelles olhos de Capitú. Não me acode imagem capaz
de dizer, sem quebra da dignidade do estylo, o que elles foram e me
fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquella
feição nova. Traziam não sei que fluido mysterioso e energico, uma
força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia,
nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me ás outras
partes visinhas, ás orelhas, aos braços, aos cabellos espalhados pelos
hombros; mas tão depressa buscava as pupillas, a onda que saia dellas
vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e
tragar-me. Quantos minutos gastámos naquelle jogo? Só os relogios do
ceu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas
pendulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das
felicidades e dos supplicios. Ha de dobrar o gozo aos bemaventurados do
ceu conhecer a somma dos tormentos que já lerao padecido no inferno os
seus inimigos; assim tambem a quantidade das delicias que terão gozado
no ceu os seus desafectos augmentará as dôres aos condemnados do
inferno. Este outro supplicio escapou ao divino Dante; mas eu não estou
aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo
não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabellos de Capitú, mas
então com as mãos, e disse-lhe, --- para dizer alguma cousa, --- que
era capaz de os pentear, se quizesse.

--- Você?

--- Eu mesmo.

--- Vae embaraçar-me o cabello todo, isso, sim.

--- Se embaraçar, você desembaraça depois.

--- Vamos ver.




\chapt{XXXIII}{O penteado.}

Capitú deu-me as costas, voltando-se para o espelhinho. Peguei-lhe dos
cabellos, colhi-os todos e entrei a alisal-os com o pente, desde a
testa até as ultimas pontas, que lhe desciam á cintura. Em pé não dava
geito: não esquecestes que ella era um nadinha mais alta que eu, mas
ainda que fosse da mesma altura. Pedi-lhe que se sentasse.

--- Senta aqui, é melhor.

Sentou-se. «Vamos ver o grande cabelleireiro.», disse-me rindo.
Continuei a alisar os cabellos, com muito cuidado, e dividi-os em duas
porções eguaes, para compor as duas tranças. Não as fiz logo, nem assim
depressa, como pódem suppôr os cabelleireiros de officio, mas devagar,
devagarinho, saboreando pelo tacto aquelles fios grossos, que eram
parte della. O trabalho era atrapalhado, ás vezes por desaso, outras de
proposito, para desfazer o feito e refazel-o. Os dedos roçavam na nuca
da pequena ou nas espaduas vestidas de chita, e a sensação era um
deleite. Mas, emfim, os cabellos iam acabando, por mais que eu os
quizesse interminaveis. Não pedi ao ceu que elles fossem tão longos
como os da Aurora, porque não conhecia ainda esta divindade que os
velhos poetas me apresentaram depois; mas, desejei penteal-os por todos
os seculos dos seculos, tecer duas tranças que pudessem envolver o
infinito por um numero innominavel de vezes. Se isto vos parecer
emphatico, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca
puzestes as mãos adolescentes na joven cabeça de uma nympha... Uma
nympha! Todo eu estou mythologico. Ainda ha pouco, falando dos seus
olhos de ressaca, cheguei a escrever Thetis; risquei Thetis, risquemos
nympha; digamos somente uma creatura amada, palavra que envolve todas
as potencias christãs e pagãs. Emfim, acabei as duas tranças. Onde
estava a fita para atar-lhes as pontas? Em cima da mesa, um triste
pedaço de fita enxovalhada. Juntei as pontas das tranças, uni-as por um
laço, retoquei a obra, alargando aqui, achatando alli, até que exclamei:

--- Prompto!

--- Estará bom?

--- Veja no espelho.

Em vez de ir ao espelho, que pensaes que fez Capitú? Não vos esqueçaes
que estava sentada, de costas para mim. Capitú derreou a cabeça, a tal
ponto que me foi preciso acudir com as mãos e amparal-a; o espaldar da
cadeira era baixo. Inclinei-me depois sobre ella, rosto a rosto, mas
trocados, os olhos de um na linha da bocca do outro. Pedi-lhe que
levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a
dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razão a moveu.

--- Levanta, Capitú!

Não quiz, não levantou a cabeça, e ficámos assim a olhar um para o
outro, até que ella abrochou os labios, eu desci os meus, e...

Grande foi a sensação do beijo; Capitú ergueu-se, rapida, eu recuei até
á parede com uma especie de vertigem, sem fala, os olhos escuros.
Quando elles me clarearam, vi que Capitú tinha os seus no chão. Não me
atrevi a dizer nada; ainda que quizesse, faltava-me lingua. Preso,
atordoado, não achava gesto nem impeto que me descolasse da parede e me
atirasse a ella com mil palavras cabidas e mimosas... Não mofes dos
meus quinze annos, leitor precoce. Com dezesete, Des Grieux (e mais era
Des Grieux) não pensava ainda na differença dos sexos.




\chapt{XXXIV}{Sou homem!}

Ouvimos passos no corredor; era D.~Fortunata. Capitú compoz-se depressa,
tão depressa que, quando a mãe apontou á porta, ella abanava a cabeça e
ria. Nenhum laivo amarello, nenhuma contracção de acanhamento, um riso
espontaneo e claro, que ella explicou por estas palavras alegres:

--- Mamãe, olhe como este senhor cabelleireiro me penteou; pediu-me
para acabar o penteado, e fez isto. Veja que tranças!

--- Que tem? acudiu a mãe, transbordando de benevolencia. Está muito
bem, ninguem dirá que é de pessoa que não sabe pentear.

--- O que, mamãe? Isto? redarguiu Capitú desfazendo as tranças. Ora,
mamãe!

E com um enfadamento gracioso e voluntario que ás vezes tinha, pegou do
pente e alisou os cabellos para renovar o penteado. D.~Fortunata
chamou-lhe tonta, e disse-me que não fizesse caso, não era nada,
maluquices da filha. Olhava com ternura para mim e para ella. Depois,
parece-me que desconfiou. Vendo-me calado, enfiado, cosido á parede,
achou talvez que houvera entre nós algo mais que penteado, e sorriu por
dissimulação...

Como eu quizesse falar tambem para disfarçar o meu estado, chamei
algumas palavras cá de dentro, e ellas acudiram de prompto, mas de
atropello, e encheram-me a bocca sem poder sair nenhuma. O beijo de
Capitú fechava-me os labios. Uma exclamação, um simples artigo, por
mais que investissem com força, não logravam romper de dentro. E todas
as palavras recolheram-se ao coração, murmurando: «Eis aqui um que não
fará grande carreira no mundo, por menos que as emoções o dominem...»

Assim, apanhados pela mãe, eramos dous e contrarios, ella encobrindo
com a palavra o que eu publicava pelo silencio. D.~Fortunata tirou-me
daquella hesitação, dizendo que minha mãe me mandára chamar para a
licção de latim; o padre Cabral estava á minha espera. Era uma saida;
despedi-me e enfiei pelo corredor. Andando, ouvi que a mãe censurava as
maneiras da filha, mas a filha não dizia nada.

Corri ao meu quarto, peguei dos livros, mas não passei á sala da licção;
sentei-me na cama, recordando o penteado e o resto. Tinha estremeções,
tinha uns esquecimentos em que perdia a consciencia de mim e das cousas
que me rodeavam, para viver não sei onde nem como. E tornava a mim, e
via a cama, as paredes, os livros, o chão, ouvia algum som de fóra,
vago, proximo ou remoto, e logo perdia tudo para sentir somente os
beiços de Capitú... Sentia-os estirados, embaixo dos meus, egualmente
esticados para os della, e unindo-se uns aos outros. De repente, sem
querer, sem pensar, saiu-me da boca esta palavra de orgulho:

--- Sou homem!

Suppuz que me tivessem ouvido, porque a palavra saiu em voz alta, e
corri á porta da alcova. Não havia ninguem fóra. Voltei para dentro, e,
baixinho, repeti que era homem. Ainda agora tenho o echo aos meus
ouvidos. O gosto que isto me deu foi enorme. Colombo não o teve maior,
descobrindo a America, e perdoai a banalidade em favor do cabimento;
com effeito, ha em cada adolescente um mundo encoberto, um almirante e
um sol de Outubro. Fiz outros achados mais tarde; nenhum me deslumbrou
tanto. A denuncia de José Dias alvoroçára-me, a licção do velho
coqueiro tambem, a vista dos nossos nomes abertos por ella no muro do
quintal deu-me grande abalo, como vistes; nada disso valeu a sensação
do beijo. Podiam ser mentira ou illusão. Sendo verdade, eram os ossos
da verdade, não eram a carne e o sangue della. As proprias mãos tocadas,
apertadas, como que fundidas, não podiam dizer tudo.

--- Sou homem!

Quando repeti isto, pela terceira vez, pensei no seminario, mas como se
pensa em perigo que passou, um mal abortado, um pesadelo extincto;
todos os meus nervos me disseram que homens não são padres. O sangue
era da mesma opinião. Outra vez senti os beiços de Capitú. Talvez abuso
um pouco das reminiscencias osculares; mas a saudade é isto mesmo; é o
passar e repassar das memorias antigas. Ora, de todas as daquelle tempo
creio que a mais doce é esta, a mais nova, a mais comprehensiva, a que
inteiramente me revelou a mim mesmo. Outras tenho, vastas e numerosas,
doces tambem, de varia especie, muitas inlellectuaes, egualmente
intensas. Grande homem que fosse, a recordação era menor que esta.




\chapt{XXXV}{O protonotario apostolico.}

Emfim, peguei dos livros e corri á licção. Não corri precisamente; a
meio caminho parei, advertindo que devia ser muito tarde, e podiam
ler-me no semblante alguma cousa. Tive ideia de mentir, allegar uma
vertigem que me houvesse deitado ao chão; mas o susto que causaria a
minha mãe fez-me rejeital-a. Pensei em prometter algumas dezenas de
padre-nossos; tinha, porém, outra promessa em aberto e outro favor
pendente... Não, vamos ver; fui andando, ouvi vozes alegres,
conversavam ruidosamente. Quando entrei na sala, ninguem ralhou commigo.

O padre Cabral recebera na vespera um recado do internuncio; foi ter
com elle, e soube que, por decreto pontificio, acabava de ser nomeado
protonotario apostolico. Esta distincção do papa dera-lhe grande
contentamento e a todos os nossos. Tio Cosme e prima Justina repetiam o
titulo com admiração; era a primeira vez que elle soava aos nossos
ouvidos, acostumados a conegos, monsenhores, bispos, nuncios, e
internuncios; mas que era protonotario apostolico? O padre Cabral
explicou que não era propriamente o cargo da curia, mas as honras delle.
Tio Cosme viu exalçar-se no parceiro de voltarete, e repetia:

--- Protonotario apostolico!

E voltando-se para mim:

--- Prepara-te, Bentinho; tu podes vir a ser protonotario apostolico.

Cabral ouvia com gosto a repetição do titulo. Estava em pé, dava alguns
passos, sorria ou tamborilava na tampa da boceta. O tamanho do titulo
como que lhe dobrava a magnificencia, posto que, para ligal-o ao nome,
era demasiado comprido; esta segunda reflexão foi tio Cosme que a fez.
Padre Cabral acudiu que não era preciso dizel-o todo, bastava que lhe
chamassem o protonotario Cabral. Subentendia-se apostolico.

--- Protonotario Cabral.

--- Sim, tem razão; protonotario Cabral.

--- Mas, Sr.~protonotario, --- acudiu prima Justina para se ir
acostumando ao uso do titulo, --- isto o obriga a ir a Roma?

--- Não, D.~Justina.

--- Não, são só as honras, observou minha mãe.

--- Agora, não impede, --- disse Cabral, que continuava a reflectir, ---
não impede que nos casos de maior formalidade, actos publicos, cartas
de cerimonia, etc.~, se empregue o titulo inteiro: protonotario
apostolico. No uso commum, basta protonotario.

--- Justamente, assentiram todos.

José Dias, que entrou pouco depois de mim, applaudiu a distincção, e
recordou, a proposito, os primeiros actos politicos de Pio IX, grandes
esperanças da Italia; mas ninguem pegou do assumpto; o principal da
hora e do logar era o meu velho mestre de latim. Eu, voltando a mim do
receio, entendi que devia comprimental-o tambem, e este applauso não
lhe foi menos ao coração que os outros. Bateu-me na bochecha
paternalmente, e acabou dando-me férias. Era muita felicidade para uma
só hora. Um beijo e férias! Creio que o meu rosto disse isto mesmo,
porque tio Cosme, sacudindo a barriga, chamou-me peralta; mas José Dias
corrigiu a alegria

--- Não tem que festejar a vadiação; o latim sempre lhe ha de ser
preciso, \emph{ainda que não venha a ser padre}.

Conheci aqui o meu homem. Era a primeira palavra, a semente lançada á
terra, assim de passagem, como para acostumar os ouvidos da familia.
Minha mãe sorriu para mim, cheia de amor e de tristeza, mas respondeu
logo:

--- Ha de ser padre, e padre bonito.

--- Não esqueça, mana Gloria, e protonotario tambem. Protonotario
apostolico.

--- O protonotario Santiago, accentuou Cabral.

Se a intenção do meu mestre de latim era ir acostumando ao uso do
titulo com o nome, não sei bem; o que sei é que quando ouvi o meu nome
ligado a tal titulo, deu-me vontade de dizer um desaforo. Mas a vontade
aqui foi antes uma ideia, uma ideia sem lingua, que se deixou ficar
quieta e muda, tal como d'ahi a pouco outras ideias... Mas essas pedem
um capitulo especial. Rematemos este dizendo que o mestre de latim
falou algum tempo da minha ordenação ecclesiastica, ainda que sem
grande interesse. Elle buscava um assumpto alheio para se mostrar
esquecido da propria gloria, mas era esta que o deslumbrava na occasião.
Era um velho magro, sereno, dotado de qualidades boas. Alguns defeitos
tinha; o mais excelso delles era ser guloso, não propriamente glotão;
comia pouco, mas estimava o fino e o raro, e a nossa cosinha, se era
simples, era menos pobre que a delle. Assim, quando minha mãe lhe disse
que viesse jantar, afim de se lhe fazer uma saude, os olhos com que
acceitou seriam de protonotario, mas não eram apostolicos. E para
agradar a minha mãe novamente pegou em mim, descrevendo o meu futuro
ecclesiastico, e queria saber se ia para o seminario agora, no anno
proximo, e offerecia-se a falar ao «senhor bispo», tudo marchetado do «protonotario
Santiago.»




\chapt{XXXVI}{Ideia sem pernas e ideia sem braços.}

Deixei-os, a pretexto de brincar, e fui-me outra vez a pensar na
aventura da manhã. Era o que melhor podia fazer, sem latim, e até com
latim. Ao cabo de cinco minutos, lembrou-me ir correndo á casa visinha,
agarrar Capitú, desfazer-lhe as tranças, refazel-as e concluil-as
daquella maneira particular, bocca sobre bocca. É isto, vamos, é isto...
Ideia só! ideia sem pernas! As outras pernas não queriam correr nem
andar. Muito depois é que sairam vagarosamente e levaram-me á casa de
Capitú. Quando alli cheguei, dei com ella na sala, na mesma sala,
sentada na marqueza, almofada no regaço, cosendo em paz. Não me olhou
de rosto, mas a furto e a medo, ou, se preferes a phraseologia do
aggregado, obliqua e dissimulada. As mãos pararam, depois de encravada
a agulha no panno. Eu, do lado opposto da mesa, não sabia que fizesse;
e outra vez me fugiram as palavras que trazia. Assim gastámos alguns
minutos compridos, até que ella deixou inteiramente a costura,
ergueu-se e esperou-me. Fui ter com ella, e perguntei se a mãe havia
dito alguma cousa; respondeu-me que não. A bocca com que respondeu era
tal que cuido haver-me provocado um gesto de approximação. Certo é que
Capitú recuou um pouco.

Era occasião de pegal-a, puxal-a e beijal-a... Ideia só! ideia sem
braços! Os meus ficaram caidos e mortos. Não conhecia nada da
Escriptura. Se conhecesse, é provavel que o espirito de Satanaz me
fizesse dar á lingua mystica do \emph{Cantico} um sentido directo e
natural. Então obedeceria ao primeiro versiculo; «Applique elle os
labios, dando-me o osculo da sua bocca.» E pelo que respeita aos braços,
que tinha inertes, bastaria cumprir o vers.~6.~° do cap.~II: «A sua mão
esquerda se pôz já debaixo da minha cabeça, e a sua mão direita me
abraçará depois.» Vedes ahi a chronologia dos gestos. Era só executal-a;
mas ainda que eu conhecesse o texto, as attitudes de Capitú eram agora
tão retrahidas, que não sei se não continuaria parado. Foi ella
entretanto, que me tirou daquella situação.




\chapt{XXXVII}{A alma é cheia de mysterios.}

--- Padre Cabral estava esperando ha muito tempo?

--- Hoje não dei licção; tive férias.

Expliquei-lhe o motivo das férias. Contei-lhe tambem que o padre Cabral
falára da minha entrada no seminario, apoiando a resolução de minha mãe,
e disse delle cousas feias e duras. Capitú reflectiu algum tempo, e
acabou perguntando-me se podia ir comprimentar o padre, á tarde, em
minha casa.

--- Póde, mas para que?

--- Papae naturalmente ha de querer ir tambem, mas é melhor que elle vá
á casa do padre; é mais bonito. Eu não, que já sou meia moça, concluiu
rindo.

O riso animou-me. As palavras pareciam ser uma troça comsigo mesma, uma
vez que, desde manhã, era mulher, como eu era homem. Achei-lhe graça, e,
para dizer tudo, quiz provar-lhe que era moça inteira. Peguei-lhe
levemente na mão direita, depois na esquerda, e fiquei assim pasmado e
tremulo. Era a ideia com mãos. Quiz puxar as de Capitú, para obrigal-a
a vir atraz dellas, mas ainda agora a acção não respondeu á intenção.
Comtudo, achei-me forte e atrevido. Não imitava ninguem; não vivia com
rapazes, que me ensinassem anecdotas de amor. Não conhecia a violação
de Lucrecia. Dos romanos apenas sabia que falavam pela artinha do padre
Pereira e eram patricios de Poncio Pilatos. Não nego que o final do
penteado da manhã era um grande passo no caminho da movimentação
amorosa, mas o gesto de então foi justamente o contrario deste. De
manhã, ella derreou a cabeça, agora fugia-me; nem é só nisso que os
lances differiam; em outro ponto, parecendo haver repetição, houve
contraste.

Penso que ameacei puxal-a a mim. Não juro, começava a estar tão
alvoroçado, que não pude ter toda a consciencia dos meus actos; mas
concluo que sim, porque ella recuou e quiz tirar as mãos das minhas;
depois, talvez por não poder recuar mais, collocou um dos pés adeante e
o outro atraz, e fugiu com o busto. Foi este gesto que me obrigou a
reter-lhe as mãos com força. O busto afinal cançou e cedeu, mas a
cabeça não quiz ceder tambem, e, caída para traz, inutilisava todos os
meus esforços, porque eu já fazia esforços, leitor amigo. Não
conhecendo a licção do \emph{Cantico}, não me acudiu estender a mão
esquerda por baixo da cabeça della; demais, este gesto suppõe um
accordo de vontades, e Capitú, que me resistia agora, aproveitaria o
gesto para arrancar-se á outra mão e fugir-me inteiramente. Ficámos
naquella luta, sem estrepito, porque apesar do ataque e da defesa, não
perdiamos a cautela necessaria para não sermos ouvidos lá de dentro; a
alma é cheia de mysterios. Agora sei que a puxava; a cabeça continuou a
recuar, até que cançou; mas então foi a vez da bocca. A bocca de Capitú
iniciou um movimento inverso, relativamente á minha, indo para um lado,
quando eu a buscava do lado opposto. Naquelle desencontro estivemos,
sem que ousasse um pouco mais, e bastaria um pouco mais...

Nisto ouvimos bater á porta e falar no corredor. Era o pae de Capitú,
que voltava da repartição um pouco mais cedo, como usava ás vezes. «Abre,
Nanata! Capitú, abre!» Apparentemente era o mesmo lance da manhã,
quando a mãe deu comnosco, mas só apparentemente; em verdade, era outro.
Considerei que de manhã tudo estava acabado, e o passo de D.~Fortunata
foi um aviso para que nos compuzessemos. Agora lutavamos com as mãos
presas, e nada estava sequer começado.

Ouvimos o ferrolho da porta que dava para o corredor interno; era a mãe
que abria. Eu, uma vez que confesso tudo, digo aqui que não tive tempo
de soltar as mãos da minha amiga; pensei nisso, cheguei a tental-o, mas
Capitú, antes que o pae acabasse de entrar, fez um gesto inesperado,
pousou a bocca na minha bocca, e deu de vontade o que estava a recusar
á força. Repito, a alma é cheia de mysterios.




\chapt{XXXVIII}{Que susto, meu Deus!}

Quando Padua, vindo pelo interior, entrou na sala de visitas, Capitú,
em pé, de costas para mim, inclinada sobre a costura, como a recolhel-a,
perguntava em voz alta:

--- Mas, Bentinho, que é protonotario apostolico?

--- Ora, vivam! exclamou o pae.

--- Que susto, meu Deus!

Agora é que o lance é o mesmo; mas se conto aqui, taes quaes, os dous
lances de ha quarenta annos, é para mostrar que Capitú não se dominava
só em presença da mãe; o pae não lhe metteu mais medo. No meio de uma
situação que me atava a lingua, usava da palavra com a maior
ingenuidade deste mundo. A minha persuasão é que o coração não lhe
batia nem mais nem menos. Allegou susto, e deu á cara um ar meio
enfiado; mas eu, que sabia tudo, vi que era mentira e fiquei com inveja.
Foi logo falar ao pae, que apertou a minha mão, e quiz saber porque a
filha falava em protonotario apostolico. Capitú repetiu-lhe o que
ouvira de mim, e opinou logo que o pae devia ir cumprimentar o padre em
casa delle; ella iria á minha. E colligindo os petrechos da costura,
enfiou pelo corredor, bradando infantilmente:

--- Mamãe, jantar, papae chegou!




\chapt{XXXIX}{A vocação.}

Padre Cabral estava naquella primeira hora das honras em que as minimas
congratulações valem por odes. Tempo chega em que os dignificados
recebem os louvores como um tributo usual, cara morta, sem
agradecimentos. O alvoroço da primeira hora é melhor; esse estado da
alma que vê na inclinação do arbusto, tocado do vento, um parabem da
flora universal, traz sensações mais intimas e finas que qualquer outro.
Cabral ouviu as palavras de Capitú com infinito prazer.

--- Obrigado, Capitú, muito obrigado; estimo que você goste tambem.
Papae está bom? E mamãe? A você não se pergunta; essa cara é mesmo de
quem vende saude. E como vamos de rezas?

A todas as perguntas, Capitú ia respondendo promplamente e bem. Trazia
um vestidinho melhor e os sapatos de sair. Não entrou com a
familiaridade do costume, deteve-se um instante á porta da sala, antes
de ir beijar a mão a minha mãe e ao padre. Como désse a este, duas
vezes em cinco minutos, o titulo de protonotario, José Dias, para se
desforrar da concorrencia, fez um pequeno discurso em honra «ao coração
paternal e augustissimo de Pio IX.»

--- Você é um grande \emph{prosa}, disse tio Cosme, quando elle acabou.

José Dias sorriu sem vexame. Padre Cabral confirmou os louvores do
aggregado, sem os seus superlativos; ao que este accrescentou que o
cardeal Mastai evidentemente fôra talhado para a tiára desde o
principio dos tempos. E, piscando-me o olho, concluiu:

--- A vocação é tudo. O estado ecclesiastico é perfeitissimo, comtanto
que o sacerdote venha já destinado do berço. Não havendo vocação, falo
de vocação sincera e real, um joven póde muito bem estudar as lettras
humanas, que tambem são uteis e honradas.

Padre Cabral retorquia:

--- A vocação é muito, mas o poder de Deus é soberano. Um homem póde
não ter gosto á egreja e até perseguil-a, e um dia a voz de Deus lhe
fala, e elle sae apostolo; veja S.~Paulo.

--- Não contesto, mas o que eu digo é outra cousa. O que eu digo é que
se póde muito bem servir a Deus sem ser padre, cá fóra; póde-se ou não
se póde?

--- Póde-se.

--- Pois então! exclamou José Dias triumphalmente, olhando em volta de
si. Sem vocação é que não ha bom padre, e em qualquer profissão liberal
se serve a Deus, como todos devemos.

--- Perfeitamente, mas vocação não é só do berço que se traz.

--- Homem, é a melhor.

--- Um moço sem gosto nenhum á vida ecclesiastica póde acabar por ser
muito bom padre; tudo é que Deus o determine. Não me quero dar por
modelo, mas aqui estou eu que nasci com a vocação da medicina; meu
padrinho, que era coadjutor de Santa Rita, teimou com meu pae para que
me mettesse no seminario; meu pae cedeu. Pois, senhor, tomei tal gosto
aos estudos e á companhia dos padres, que acabei ordenando-me. Mas,
supponha que não acontecia assim, e que eu não mudava de vocação, o que
é que acontecia? Tinha estudado no seminario algumas materias que é bom
saber, e são sempre melhor ensinadas naquellas casas.

Prima Justina interveiu:

--- Como? Então póde-se entrar para o seminario e não sair padre?

Padre Cabral respondeu que sim, que se podia, e, voltando-se para mim,
falou da minha vocação, que era manifesta; os meus brinquedos foram
sempre de egreja, e eu adorava os officios divinos. A prova não provava;
todas as creanças do meu tempo eram devotas. Cabral accrescentou que o
reitor de S.~José, a quem contára ultimamente a promessa de minha mãe,
tinha o meu nascimento por milagre; elle era da mesma opinião. Capitú,
cosida ás saias de minha mãe, não attendia aos olhos anciosos que eu
lhe mandava; tambem não parecia escutar a conversação sobre o seminario
e suas consequencias, e, aliás, decorou o principal, como vim a saber
depois. Duas vezes fui á janella, esperando que ella fosse tambem, e
ficassemos á vontade, sósinhos, até acabar o mundo, se acabasse, mas
Capitú não me appareceu. Não deixou minha mãe, senão para ir embora.
Eram ave-marias, despediu-se.

--- Vae com ella, Bentinho, disse minha mãe.

--- Não precisa, não, D.~Gloria, acudiu ella rindo, eu sei o caminho.
Adeus, Sr.~protonotario...

--- Adeus, Capitú.

Tendo dado um passo no sentido de atravessar a sala, é claro que o meu
dever, o meu gosto, todos os impulsos da edade e da occasião eram
atravessal-a de todo, seguir a visinha corredor fóra, descer á chacara,
entrar no quintal, dar-lhe terceiro beijo, e despedir-me. Não me
importou a recusa, que cuidei simulada, e enfiei pelo corredor; mas,
Capitú que ia depressa, estacou e fez-me signal que voltasse. Não
obedeci; cheguei-me a ella.

--- Não venha, não; amanhã falaremos.

--- Mas eu queria dizer a você...

--- Amanhã.

--- Escuta!

--- Fica!

Falava baixinho; pegou-me na mão, e poz o dedo na bocca. Uma preta, que
veiu de dentro accender o lampião do corredor, vendo-nos naquella
attitude, quasi ás escuras, riu de sympathia e murmurou em tom que
ouvissemos alguma cousa que não entendi bem nem mal. Capitú segredou-me
que a escrava desconfiára, e ia talvez contar ás outras. Novamente me
intimou que ficasse, e retirou-se; eu deixei-me estar parado, pregado,
agarrado ao chão.




\chapt{XL}{Uma egua.}

Ficando só, reflecti algum tempo, e tive uma fantasia. Já conheceis as
minhas fantasias. Contei-vos a da visita imperial; disse-vos a desta
casa do Engenho Novo, reproduzindo a de Matacavallos... A imaginação
foi a companheira de toda a minha existencia, viva, rapida, inquieta,
alguma vez timida e amiga de empacar, as mais dellas capaz de engolir
campanhas e campanhas, correndo. Creio haver lido em Tacito que as
eguas iberas concebiam pelo vento; se não foi nelle, foi n'outro autor
antigo, que entendeu guardar essa crendice nos seus livros. Neste
particular, a minha imaginação era uma grande egua ibera; a menor brisa
lhe dava um potro, que saía logo cavallo de Alexandre; mas deixemos
metaphoras atrevidas e improprias dos meus quinze annos. Digamos o caso
simplesmente. A fantasia daquella hora foi confessar a minha mãe os
meus amores para lhe dizer que não tinha vocação ecclesiastica. A
conversa sobre vocação tornava-me agora toda inteira, e, ao passo que
me assustava, abria-me uma porta de saida. «Sim, é isto, pensei; vou
dizer a mamãe que não tenho vocação, e confesso o nosso namoro; se ella
duvidar, conto-lhe o que se passou outro dia, o penteado e o resto...»




\chapt{XLI}{A audiencia secreta.}

O resto fez-me ficar mais algum tempo, no corredor, pensando. Vi entrar
o doutor João da Costa, e preparou-se logo o voltarete do costume.
Minha mãe saiu da sala, e, dando commigo, perguntou se acompanhára
Capitú.

--- Não, senhora, ella foi só.

E quasi investindo para ella:

--- Mamãe, eu queria dizer-lhe uma cousa.

--- Que é?

Toda assustada, quiz saber o que é que me doia, se a cabeça, se o peito,
se o estomago, e apalpava-me a testa para ver se tinha febre.

--- Não tenho nada, não, senhora.

--- Mas então que é?

--- É uma cousa, mamãe... Mas, escute, olhe, é melhor depois do chá;
logo... Não é nada mau; mamãe assusta-se por tudo; não é cousa de
cuidado.

--- Não é molestia?

--- Não, senhora.

--- É, isso é volta de constipação. Disfarças para não tomar suadouro,
mas tu estás constipado; conhece-se pela voz.

Tentei rir, para mostrar que não tinha nada. Nem por isso permittiu
adiar a confidencia, pegou em mim, levou-me ao quarto della, accendeu
vela, e ordenou-me que lhe dissesse tudo. Então eu perguntei-lhe, para
principiar, quando é que ia para o seminario.

--- Agora só para o anno, depois das férias.

--- Vou... para ficar?

--- Como ficar?

--- Não volto para casa?

--- Voltas aos sabbados e pelas férias; é melhor. Quando te ordenares
padre, vens morar commigo.

Enxuguei os olhos e o nariz. Ella afagou-me, depois quiz reprehender-me,
mas creio que a voz lhe tremia, e pareceu-me que tinha os olhos humidos.
Disse-lhe que tambem sentia a nossa separação. Negou que fosse
separação; era só alguma ausencia, por causa dos estudos; só os
primeiros dias. Em pouco tempo eu me acostumaria aos companheiros e aos
mestres, e acabaria gostando de viver com elles.

--- Eu só gósto de mamãe.

Não houve calculo nesta palavra, mas estimei dizel-a, por fazer crer
que ella era a minha unica affeição; desviava as suspeitas de cima de
Capitú. Quantas intenções viciosas ha assim que embarcam, a meio
caminho, numa phrase innocente e pura! Chega a fazer suspeitar que a
mentira é, muita vez, tão involuntaria como a transpiração. Por outro
lado, leitor amigo, nota que eu queria desviar as suspeitas de cima de
Capitú, quando havia chamado minha mãe justamente para confirmal-as;
mas as contradicções são deste mundo. A verdade é que minha mãe era
candida como a primeira aurora, anterior ao primeiro peccado; nem por
simples intuição era capaz de deduzir uma cousa de outra, isto é, não
concluiria da minha repentina opposição que eu andasse em segredinhos
com Capitú, como lhe dissera José Dias. Calou-se durante alguns
instantes; depois replicou-me sem imposição nem autoridade, o que me
veiu animando á resistencia. D'ahi o falar-lhe na vocação que se
discutira naquella tarde, e que eu confessei não sentir em mim.

--- Mas tu gostavas tanto de ser padre, disse ella; não te lembras que
até pedias para ir ver sair os seminaristas de S.~José, com as suas
batinas? Em casa, quando José Dias te chamava Reverendissimo, tu rias
com tanto gosto! Como é que agora...? Não creio, não, Bentinho. E
depois... Vocação? Mas a vocação vem com o costume, continuou repetindo
as reflexões que ouvira ao meu professor de latim.

Como eu buscasse contestal-a, reprehendeu-me sem aspereza, mas com
alguma força, e eu tornei ao filho submisso que era. Depois, ainda
falou gravemente e longamente sobre a promessa que fizera; não me disse
as circumstancias, nem a occasião, nem os motivos della, cousas que só
vim a saber mais tarde. Affirmou o principal, isto é, que a havia de
cumprir, em pagamento a Deus.

--- Nosso Senhor me acudiu, salvando a tua existencia, não lhe hei de
mentir nem faltar, Bentinho; são cousas que não se fazem sem peccado, e
Deus que é grande e poderoso, não me deixaria assim, não, Bentinho; eu
sei que seria castigada e bem castigada. Ser padre é bom e santo; você
conhece muitos, como o padre Cabral, que vive tão feliz com a irmã; um
tio meu tambem foi padre, e escapou de ser bispo, dizem... Deixa de
manha, Bentinho.

Creio que os olhos que lhe deitei foram tão queixosos, que ella emendou
logo a palavra; manha, não, não podia ser manha, sabia muito bem que eu
era amigo della, e não seria capaz de fingir um sentimento que não
tivesse. Molleza é o que queria dizer, que me deixasse de molleza, que
me fizesse homem e obedecesse ao que cumpria, em beneficio della e para
bem da minha alma. Todas essas cousas e outras foram ditas um pouco
atropelladamente, e a voz não lhe saía clara, mas velada e esganada. Vi
que a emoção della era outra vez grande, mas não recuava dos seus
propositos, e aventurei-me a perguntar-lhe:

--- E se mamãe pedisse a Deus que a dispensasse da promessa?

--- Não, não peço. Estás tonto, Bentinho? E como havia de saber que
Deus me dispensava?

--- Talvez em sonho; eu sonho ás vezes com anjos e santos.

--- Tambem eu, meu filho; mas é inutil... Vamos, é tarde; vamos para a
sala. Está entendido: no primeiro ou no segundo mez do anno que vem,
irás para o seminario. O que eu quero é que saibas bem os livros que
estás estudando; é bonito, não só para ti, como para o padre Cabral. No
seminario ha interesse em conhecer-te, porque o padre Cabral fala de ti
com enthusiasmo.

Caminhou para a porta, saimos ambos. Antes de sair, voltou-se para mim,
e quasi a vi saltar-me ao collo e dizer-me que não seria padre. Este
era já o seu desejo intimo, á proporção que se approximava o tempo.
Quizera um modo de pagar a divida contrahida, outra moeda, que valesse
tanto ou mais, e não achava nenhuma.




\chapt{XLII}{Capitú reflectindo.}

No dia seguinte fui á casa visinha, logo que pude. Capitú despedia-se
de duas amigas que tinham ido visital-a, Paula e Sancha, companheiras
de collegio, aquella de quinze, esta de desesete annos, a primeira
filha de um medico, a segunda de um commerciante de objectos americanos.
Estava abatida, trazia um lenço atado na cabeça; a mãe contou-me que
fôra excesso de leitura na vespera, antes e depois do chá, na sala e na
cama, até muito depois da meia noite, e com lamparina...

--- Se eu accendesse vela, mamãe zangava-se. Já estou boa.

E como desatasse o lenço, a mãe disse-lhe timidamente que era melhor
atal-o, mas Capitú respondeu que não era preciso, estava boa.

Ficámos sós na sala; Capitú confirmou a narração da mãe, accrescentando
que passára mal por causa do que ouvira em minha casa. Tambem eu lhe
contei o que se dera commigo, a entrevista com minha mãe, as minhas
supplicas, as lagrimas della, e por fim as ultimas respostas decisivas:
dentro de dous ou tres mezes iria para o seminario. Que fariamos agora?
Capitú ouvia-me com attenção sofrega, depois sombria; quando acabei,
respirava a custo, como prestes a estalar de colera, mas conteve-se.

Ha tanto tempo que isto succedeu que não posso dizer com segurança se
chorou devéras, ou se somente enxugou os olhos; cuido que os enxugou
somente. Vendo-lhe o gesto, peguei-lhe na mão para animal-a, mas tambem
eu precisava ser animado. Caimos no canapé, e ficámos a olhar para o ar,
Minto; ella olhava para o chão. Fiz o mesmo, logo que a vi assim... Mas
eu creio que Capitú olhava para dentro de si mesma, emquanto que eu
fitava devéras o chão, o roido das tendas, duas moscas andando e um pé
de cadeira lascado. Era pouco, mas distraía-me da afflicção. Quando
tornei a olhar para Capitú, vi que não se mexia, e fiquei com tal medo
que a sacudi brandamente. Capitú tornou cá para fóra e pediu-me que
outra vez lhe contasse o que se passára com minha mãe. Satisfil-a,
attenuando o texto desta vez, para não amofinal-a. Não me chames
dissimulado, chama-me compassivo; é certo que receiava perder Capitú,
se lhe morressem as esperanças todas, mas doia-me vel-a padecer. Agora,
a verdade ultima, a verdade das verdades, é que já me arrependia de
haver falado a minha mãe, antes de qualquer trabalho effectivo por
parte de José Dias; examinando bem, não quizera ter ouvido um desengano
que eu reputava certo, ainda que demorado. Capitú reflectia, reflectia,
reflectia...




\chapt{XLIII}{Você tem medo?}

De repente, cessando a reflexão, fitou em mim os olhos de ressaca, e
perguntou-me se tinha medo.

--- Medo?

--- Sim, pergunto se você tem medo.

--- Medo de que?

--- Medo de apanhar, de ser preso, de brigar, de andar, de trabalhar...

Não entendi. Se ella me tem dito simplesmente: «Vamos embora!» póde ser
que eu obedecesse ou não; em todo caso, entenderia. Mas aquella
pergunta assim, vaga e solta, não pude atinar o que era.

--- Mas... não entendo. De apanhar?

--- Sim.

--- Apanhar de quem? Quem é que me dá pancada?

Capitú fez um gesto de impaciencia, Os olhos de ressaca não se mexiam e
pareciam crescer. Sem saber de mim, e, não querendo interrogal-a
novamente, entrei a cogitar d'onde me viriam pancadas, e porque, e
tambem porque é que seria preso, e quem é que me havia de prender.
Valha-me Deus! vi de imaginação o aljube, uma casa escura e infecta.
Tambem vi a presiganga, o quartel dos Barbonos e a Casa de Correcção.
Todas essas bellas instituições sociaes me envolviam no seu mysterio,
sem que os olhos de ressaca de Capitú deixassem de crescer para mim, a
tal ponto que as fizeram esquecer de todo. O erro de Capitú foi não
deixal-os crescer infinitamente, antes diminuir até ás dimensões
normaes, e dar-lhes o movimento do costume. Capitú tornou ao que era,
disse-me que estava brincando, não precisava affligir-me, e, com um
gesto cheio de graça, bateu-me na cara sorrindo, e disse:

--- Medroso!

--- Eu? Mas...

--- Não é nada, Bentinho. Pois quem é que ha de dar pancada ou prender
você? Desculpe que eu hoje estou meia maluca; quero brincar, e...

--- Não, Capitú; você não está brincando; nesta occasião, nenhum de nós
tem vontade de brincar.

--- Tem razão, foi só maluquice; até logo.

--- Como até logo?

--- Está-me voltando a dôr de cabeça; vou bolar uma rodella de limão
nas fontes.

Fez o que disse, e atou o lenço outra vez na testa. Em seguida,
acompanhou-me ao quintal para se despedir de mim; mas, ainda ahi nos
detivemos por alguns minutos, sentados sobre a borda do poço. Ventava,
o ceu estava coberto. Capitú falou novamente da nossa separação, como
de um facto certo e definitivo, por mais que eu, receioso disso mesmo,
buscasse agora razões para animal-a. Capitú, quando não falava, riscava
no chão, com um pedaço de taquara, narizes e perfis. Desde que se
mettera a desenhar, era uma das suas diversões; tudo lhe servia de
papel e lapis. Como me lembrassem os nossos nomes abertos por ella no
muro, quiz fazer o mesmo no chão, e pedi-lhe a taquara. Não me ouviu ou
não me attendeu.




\chapt{XLIV}{O primeiro filho.}

--- Dê cá, deixe escrever uma cousa.

Capitú olhou para mim, mas de um modo que me fez lembrar a definição de
José Dias, obliquo e dissimulado; levantou o olhar, sem levantar os
olhos. A voz, um tanto sumida, perguntou-me:

--- Diga-me uma cousa, mas fale verdade, não quero disfarce; ha de
responder com o coração na mão.

--- Que é? Diga.

--- Se você tivesse de escolher entre mim e sua mãe, a quem é que
escolhia?

--- Eu?

Fez-me signal que sim.

--- Eu escolhia... mas para que escolher? Mamãe não é capaz de me
perguntar isso.

--- Pois, sim, mas eu pergunto. Supponha você que está no seminario e
recebe a noticia de que eu, vou morrer...

--- Não diga isso!

---... Ou que me mato de saudades, se você não vier logo, e sua mãe não
quizer que você venha, diga-me, você vem?

--- Venho.

--- Contra a ordem de sua mãe?

--- Contra a ordem de mamãe.

--- Você deixa seminario, deixa sua mãe, deixa tudo, para me ver morrer?

--- Não fale em morrer, Capitú!

Capitú teve um risinho descorado e incredulo, e com a taquara escreveu
uma palavra no chão; inclinei-me e li: \emph{mentiroso}.

Era tão extranho tudo aquillo, que não achei resposta. Não atinava com
a razão do escripto, como não atinava com a do falado. Se me acudisse
alli uma injuria grande ou pequena, é possivel que a escrevesse tambem,
com a mesma taquara, mas não me lembrava nada. Tinha a cabeça vazia. Ao
mesmo tempo tomei-me de receio de que alguem nos pudesse ouvir ou ver.
Quem, se eramos sós? D.~Fortunata chegára uma vez á porta da casa, mas
entrou logo depois. A solidão era completa. Lembra-me que umas
andorinhas passaram por cima do quintal e foram para os lados do morro
de Santa Theresa; ninguem mais. Ao longe, vozes vagas e confusas, na
rua um tropel de bestas, do lado da casa o chilrear dos passarinhos do
Padua. Nada mais, ou somente este phenomeno curioso, que o nome
escripto por ella, não só me espiava do chão com gesto escarninho, mas
até me pareceu que repercutia no ar. Tive então uma ideia ruim;
disse-lhe que, afinal de contas, a vida de padre não era má, e eu podia
acceital-a sem grande pena. Como desforço, era pueril; mas eu sentia a
secreta esperança de vel-a atirar-se a mim lavada em lagrimas. Capitú
limitou-se a arregalar muito os olhos, e acabou por dizer:

--- Padre é bom, não ha duvida; melhor que padre só conego, por causa
das meias roxas. O roxo é côr muito bonita. Pensando bem, é melhor
conego.

--- Mas não se póde ser conego sem ser primeiramente padre, disse-lhe
eu mordendo os beiços.

--- Bem; comece pelas meias pretas, depois virão as roxas. O que eu não
quero perder é a sua missa nova; avise-me a tempo para fazer um vestido
á moda, saia balão e babados grandes... Mas talvez nesse tempo a moda
seja outra. A egreja ha de ser grande, Carmo ou S.~Francisco.

--- Ou Candelaria.

--- Candelaria tambem. Qualquer serve, comtanto que eu ouça a missa
nova. Hei de fazer um figurão. Muita gente ha de perguntar: «Quem é
aquella moça faceira que alli está com um vestido tão bonito?» --- «Aquella
é D.~Capitolina, uma moça que morou na rua de Matacavallos...»

--- Que morou? Você vae mudar-se?

--- Quem sabe onde é que ha de morar amanhã? disse ella com um tom leve
de melancolia; mas tornando logo ao sarcasmo: E você no altar, mettido
na alva, com a capa de ouro por cima, cantando... \emph{Pater noster}...

Ah! como eu sinto não ser um poeta romantico para dizer que isto era um
duello de ironias! Contaria os meus botes e os della, a graça de um e a
promptidão de outro, e o sangue correndo, e o furor na alma, até ao meu
golpe final que foi este:

--- Pois, sim, Capitú, você ouvirá a minha missa nova, mas com uma
condição.

Ao que ella respondeu:

--- Vossa Reverendissima póde falar.

--- Promette uma cousa?

--- Que é?

--- Diga se promette.

--- Não sabendo o que é, não prometto.

--- A falar verdade são duas cousas, continuei eu, por haver-me acudido
outra ideia.

--- Duas? Diga quaes são.

--- A primeira é que só se ha de confessar commigo, para eu lhe dar a
penitencia e a absolvição. A segunda é que...

--- A primeira está promettida, disse ella vendo-me hesitar, e
accrescentou que esperava a segunda.

Palavra que me custou, e antes não me chegasse a sair da boca; não
ouviria o que ouvi, e não escreveria aqui uma cousa que vae talvez
achar incredulos.

--- A segunda... sim... é que... Promette-me que seja eu o padre que
case você?

--- Que me case? disse ella um tanto commovida.

Logo depois fez descair os labios, e abanou a cabeça.

--- Não, Bentinho, disse, seria esperar muito tempo; você não vae ser
padre já amanhã, leva muitos annos... Olhe, prometto outra cousa;
prometto que ha de baptisar o meu primeiro filho.




\chapt{XLV}{Abane a cabeça, leitor.}

Abane a cabeça, leitor; faça todos os gestos de incredulidade. Chegue a
deitar fóra este livro, se o tedio já o não obrigou a isso antes; tudo
é possivel, Mas, se o não fez antes e só agora, fio que torne a pegar
do livro e que o abra na mesma pagina, sem crer por isso na veracidade
do autor. Todavia, não ha nada mais exacto. Foi assim mesmo que Capitú
falou, com taes palavras e maneiras. Falou do primeiro filho, como se
fosse a primeira boneca.

Quanto ao meu espanto, se tambem foi grande, veiu de mistura com uma
sensação exquisita. Percorreu-me um fluido. Aquella ameaça de um
primeiro filho, o primeiro filho de Capitú, o casamento della com outro,
portanto, a separação absoluta, a perda, a anniquilação, tudo isso
produzia um tal effeito, que não achei palavra nem gesto; fiquei
estupido. Capitú sorria; eu via o primeiro filho brincando no chão...




\chapt{XLVI}{As pazes.}

As pazes fizeram-se como a guerra, depressa. Buscasse eu neste livro a
minha gloria, eu diria que as negociações partiram de mim; mas não, foi
ella que as iniciou. Alguns instantes depois, como eu estivesse
cabisbaixo, ella abaixou tambem a cabeça, mas voltando os olhos para
cima afim de ver os meus. Fiz-me de rogado; depois quiz levantar-me
para ir embora, mas nem me levantei, nem sei se iria. Capitú fitou-me
uns olhos tão ternos, e a posição os fazia tão supplices, que me deixei
ficar, passei-lhe o braço pela cintura, ella pegou-me na ponta dos
dedos, e...

Outra vez D.~Fortunata appareceu á porta da casa; não sei para quê, se
nem me deixou tempo de puxar o braço; desappareceu logo. Podia ser um
simples descargo de consciencia, uma cerimonia, como as rezas de
obrigação, sem devoção, que se dizem de tropel; a não ser que fosse
para certificar aos proprios olhos a realidade que o coração lhe dizia...

Fosse o que fosse, o meu braço continuou a apertar a cintura da filha,
e foi assim que nos pacificámos. O bonito é que cada um de nós queria
agora as culpas para si, e pediamos reciprocamente perdão. Capitú
allegava a insomnia, a dôr de cabeça, o abatimento do espirito, e
finalmente «os seus calundús.» Eu, que era muito chorão por esse tempo,
sentia os olhos molhados... Era amor puro, era effeito dos padecimentos
da amiguinha, era a ternura da reconciliação.




\chapt{XLVII}{ «A senhora saiu.»}

--- Está bom, acabou, disse eu finalmente; mas, explique-me só uma
cousa, porque é que você me perguntou se eu tinha medo de apanhar?

--- Não foi por nada, respondeu Capitú, depois de alguma hesitação...
Para que bolir nisso?

--- Diga sempre. Foi por causa do seminario?

--- Foi; ouvi dizer que lá dão pancada... Não? Eu tambem não creio.

A explicação agradou-me; não tinha outra. Se, como penso, Capitú não
disse a verdade, força é reconhecer que não podia dizel-a, e a mentira
é dessas creadas que se dão pressa em responder ás visitas que «a
senhora saiu», quando a senhora não quer falar a ninguem. Ha nessa
cumplicidade um gosto particular; o peccado em commum eguala por
instantes a condição das pessoas, não contando o prazer que dá a cara
das visitas enganadas, e as costas com que ellas descem... A verdade
não saiu, ficou em casa, no coração de Capitú, cochilando o seu
arrependimento. E eu não desci triste nem zangado; achei a creada
galante, appetecivel, melhor que a ama.

As andorinhas vinham agora em sentido contrario, ou não seriam as
mesmas. Nós é que eramos os mesmos; alli ficámos sommando as nossas
illusões, os nossos temores, começando já a sommar as nossas saudades.




\chapt{XLVIII}{Juramento do poço.}

--- Não! exclamei de repente.

--- Não quê?

Tinha havido alguns minutos de silencio, durante os quaes reflecti
muito e acabei por uma ideia; o tom da exclamação, porém, foi tão alto
que espantou a minha visinha.

--- Não ha de ser assim, continuei. Dizem que não estamos em edade de
casar, que somos creanças, creançolas, --- já ouvi dizer creançolas.
Bem; mas dous ou tres annos passam depressa. Você jura uma cousa? Jura
que só ha de casar commigo? Capitú não hesitou em jurar, e até lhe vi
as faces vermelhas de prazer. Jurou duas vezes e uma terceira:

--- Ainda que você case com outra, cumprirei o meu juramento, não
casando nunca.

--- Que eu case com outra?

--- Tudo póde ser, Bentinho. Você póde achar outra moça que lhe queira,
apaixonar-se por ella e casar. Quem sou eu para você lembrar-se de mim
nessa occasião?

--- Mas eu tambem juro! Juro, Capitú, juro por Deus Nosso Senhor que só
me casarei com você. Basta isto?

--- Devia bastar, disse ella; eu não me atrevo a pedir mais. Sim, você
jura... Mas juremos por outro modo; juremos que nos havemos de casar um
com outro, haja o que houver.

Comprehendeis a differença; era mais que a eleição do conjuge, era a
affirmação do matrimonio. A cabeça da minha amiga sabia pensar claro e
depressa. Realmente, a formula anterior era limitada, apenas exclusiva.
Podiamos acabar solteirões, como o sol e a lua, sem mentir ao juramento
do poço. Esta formula era melhor, e tinha a vantagem de me fortalecer o
coração contra a investidura ecclesiastica. Jurámos pela segunda
formula, e ficámos tão felizes que todo receio de perigo desappareceu.
Eramos religiosos, tinhamos o ceu por testemunha. Eu nem já temia o
seminario.

--- Se teimarem muito, irei; mas faço de conta que é um collegio
qualquer; não tomo ordens.

Capitú temia a nossa separação, mas acabou acceitando este alvitre, que
era o melhor. Não affligiamos minha mãe, e o tempo correria até o ponto
em que o casamento pudesse fazer-se. Ao contrario, qualquer resistencia
ao seminario confirmaria a denuncia de José Dias. Esta reflexão não foi
minha, mas della..




\chapt{XLIX}{Uma vela aos sabbados.}

Eis aqui como, após tantas canceiras, tocavamos o porto a que nos
deviamos ter abrigado logo. Não nos censures, piloto de má morte, não
se navegam, corações como os outros mares deste mundo. Estavamos
contentes, entrámos a falar do futuro. Eu promettia á minha esposa uma
vida socegada e bella, na roça ou fóra da cidade. Viriamos aqui uma vez
por anno. Se fosse em arrabalde, seria longe, onde ninguem nos fosse
aborrecer. A casa, na minha opinião, não devia ser grande nem pequena,
um meio termo; plantei-lhe flôres, escolhi moveis, uma sege e um
oratorio. Sim, haviamos de ter um oratorio bonito, alto, de jacarandá,
com a imagem de Nossa Senhora da Conceição. Demorei-me mais nisto que
no resto, em parte porque eramos religiosos, em parte para compensar a
batina que eu ia deitar ás ortigas; mas ainda restava uma parte que
attribuo ao intuito secreto e inconsciente de captar a protecção do ceu.
Haviamos de accender uma vela aos sabbabos...




\chapt{L}{Um meio termo.}

Mezes depois fui para o seminario de S.~José. Se eu pudesse contar as
lagrimas que chorei na vespera e na manhã, sommaria mais que todas as
vertidas desde Adão e Eva. Ha nisto alguma exageração; mas é bom ser
emphatico, uma ou outra vez, para compensar este escrupulo de exactidão
que me afflige. Entretanto, se eu me ativer só á lembrança da sensação,
não fico longe da verdade; aos quinze annos, tudo é infinito. Bealmente,
por mais preparado que estivesse, padeci muito. Minha mãe tambem
padeceu, mas soffria com alma e coração; demais, o padre Cabral achára
um meio termo, experimentar-me a vocação; se no fim de dous annos, eu
não revelasse vocação ecclesiastica, seguiria outra carreira.

--- As promessas devem ser cumpridas conforme Deus quer. Supponha que
Nosso Senhor nega disposição a seu filho, e que o costume do seminario
não lhe dá o gosto que me concedeu a mim, é que a vontade divina é
outra. A senhora não podia pôr em seu filho, antes de nascido, uma
vocação que Nosso Senhor lhe recusou...

Era uma concessão do padre. Dava a minha mãe um perdão antecipado,
fazendo vir do credor a relevação da divida. Os olhos della brilharam,
mas a bocca disse que não. José Dias, não tendo alcançado ir commigo
para a Europa, agarrou-se ao mais proximo, e apoiou o «alvitre do Sr.~protonotario»;
só lhe parecia que um anno era bastante.

--- Estou certo, disse elle, piscando-me o olho, que dentro de um anno
a vocação ecclesiastica do nosso Bentinho se manifesta clara e decisiva.
Ha de dar um padre de mão cheia. Tambem se não vier em um anno...

E a mim, mais tarde, em particular:

--- Vá por um anno; um anno passa depressa. Se não sentir gosto nenhum,
é que Deus não quer, como diz o padre, e nesse caso, meu amiguinho, o
melhor remedio é a Europa.

Capitú deu-me egual conselho, quando minha mãe lhe annunciou a minha
ida definitiva para o seminario:

--- Minha filha, você vae perder o seu companheiro de creança...

Fez-lhe tão bem este tratamento de \emph{filha} (era a primeira vez que
minha mãe lh'o dava), que nem teve tempo de ficar triste; beijou-lhe a
mão, e disse-lhe que já sabia disso por mim mesmo. Em particular
animou-me a supportar tudo com paciencia; no fim de um anno as cousas
estariam mudadas, e um anno andava depressa. Não foi ainda a nossa
despedida; esta fez-se na vespera, por um modo que pede capitulo
especial. O que unicamente digo aqui é que, ao passo que nos prendiamos
um ao outro, ella ia prendendo minha mãe, fez-se mais assidua e terna,
vivia ao pé della, com os olhos nella. Minha mãe era de natural
sympathico, e egualmente sensivel; tanto se doía como se aprazia de
qualquer cousa. Entrou a achar em Capitú uma porção de graças novas, de
dotes finos e raros; deu-lhe um anel dos seus e algumas galanterias.
Não consentiu em photographar-se, como a pequena lhe pedia, para lhe
dar um retrato; mas tinha uma miniatura, feita aos vinte e cinco annos,
e, depois de algumas hesitações, resolveu dar-lh'a. Os olhos de Capitú,
quando recebeu o mimo, não se descrevem; não eram obliquos, nem de
ressaca, eram direitos, claros, lucidos. Beijou o retrato com paixão,
minha mãe fez-lhe a mesma cousa a ella. Tudo isto me lembra a nossa
despedida.




\chapt{LI}{Entre luz e fusco.}

Entre luz e fusco, tudo ha de ser breve como esse instante. Nem durou
muito a nossa despedida, foi o mais que pôde, em casa della, na sala de
visitas, antes do accender das velas; ahi é que nos despedimos de uma
vez. Jurámos novamente que haviamos de casar um com outro, e não foi só
o aperto de mão que sellou o contracto, como no quintal, foi a
conjuncção das nossas boccas amorosas... Talvez risque isto na
impressão, se até lá não pensar de outra maneira; se pensar, fica. E
desde já fica, porque, em verdade, é a nossa defesa. O que o mandamento
divino quer é que não juremos \emph{em vão} pelo santo nome de Deus. Eu
não ia mentir ao seminario, uma vez que levava um contracto feito no
proprio cartorio do ceu. Quanto ao sello, Deus, como fez as mãos limpas,
assim fez os labios limpos, e a malicia está antes na tua cabeça
perversa que na daquelle casal de adolescentes... Oh! minha doce
companheira da meninice, eu era puro, e puro fiquei, e puro entrei na
aula de S.~José, a buscar de apparencia a investidura sacerdotal, e
antes della a vocação. Mas a vocação eras tu, a investidura eras tu.




\chapt{LII}{O velho Padua.}

Já agora conto tambem os adeuses do velho Padua. Logo cedo veiu á nossa
casa. Minha mãe disse-lhe que fosse falar-me ao quarto.

--- Dá licença? perguntou mettendo a cabeça pela porta.

Fui apertar-lhe a mão; elle abraçou-me com ternura.

--- Seja feliz! disse-me. A mim e a toda a minha gente creia que ficam
muitas saudades. Todos nós estimamos muito o senhor, como merece. Se
lhe disserem outra cousa, não acredite. Sao intrigas. Tambem eu, quando
me casei, fui victima de intrigas; desfizeram-se. Deus é grande e
descobre a verdade. Se algum dia perder sua mãe e seu tio, --- cousa
que eu, por esta luz que me allumia, não desejo, porque são boas
pessoas, excedentes pessoas, e eu sou grato ás finezas recebidas... Não,
eu não sou como outros, certos parasitas, vindos de fóra para desunião
das familias, aduladores baixos, não; eu sou de outra especie; não vivo
papando os jantares nem morando em casa alheia... Emfim, são os mais
felizes!

--- Porque falará assim? pensei. Naturalmente sabe que José Dias diz
mal delle.

--- Mas, como ia dizendo, se algum dia perder os seus parentes, póde
contar com a nossa companhia. Não é sufticiente em importancia, mas a
affeição é immensa, creia. Padre que seja, a nossa casa está ás suas
ordens. Quero só que me não esqueça; não esqueça o velho Padua...

Suspirou e continuou:

--- Não esqueça o seu velho Padua, e, se tem algum trapinho que me
deixe em lembrança, um caderno latino, qualquer cousa, um botão de
collete, cousa que já lhe não preste para nada. O valor é a lembrança.

Tive um sobresalto. Havia embrulhado em um papel um cacho dos meus
cabellos, tão grandes e tão bonitos, cortados na vespera. A intenção
era leval-os a Capitú, ao sair; mas tive ideia de dal-o ao pae, a filha
saberia tomal-o e guardal-o. Peguei do embrulho e dei-lh'o.

--- Aqui está, guarde.

--- Um cachinho dos seus cabellos! exclamou Padua abrindo e fechando o
embrulho. Oh! obrigado! obrigado por mim e pela minha gente! Vou dal-o
á velha, para guardal-o, ou á pequena, que é mais cuidadosa que a mãe.
Que lindos que são! Como é que se corta uma belleza destas? Dê cá um
abraço! outro! mais outro! adeus!

Tinha os olhos humidos devéras; levava a cara dos desenganados, como
quem empregou em um só bilhete todas as suas economias de esperanças e
vê sair branco o maldito numero, --- um numero tão bonito!




\chapt{LIII}{A caminho!}

Fui para o seminario. Poupa-me as outras despedidas. Minha mãe
apertava-me ao peito. Prima Justina suspirava. Talvez chorasse mal ou
nada. Ha pessoas a quem as lagrimas não acodem logo nem nunca; diz-se
que padecem mais que as outras. Prima Justina disfarçava naturalmente
os seus padecimentos intimos, emendando os descuidos de minha mãe,
fazendo-me recommendações, dando ordens. Tio Cosme, quando eu lhe
beijei a mão em despedida, disse-me rindo:

--- Anda lá, rapaz, volta-me papa!

José Dias, composto e grave, não dizia nada a principio; tinhamos
falado na vespera, no quarto delle, onde fui ver se era ainda possivel
evitar o seminario. Já não era, mas deu-me esperanças e principalmente
animou-me muito. Antes de um anno estariamos a bordo. Como eu achasse
muito breve, explicou-se.

--- Dizem que não é bom tempo de atravessar o Atlantico, vou indagar;
se não fôr, iremos em Março ou Abril.

--- Posso estudar medicina aqui mesmo.

José Dias correu os dedos pelos suspensorios com um gesto de
impaciencia, apertou os beiços, até que formalmente rejeitou o alvitre.

--- Não duvidaria approvar a ideia, disse elle, se na Escola de
Medicina não ensinassem, exclusivamente, a podridão allopatha. A
allopathia é o erro dos seculos, e vae morrer; é o assassinato, é a
mentira, é a illusão. Se lhe disserem que póde apprender na Escola de
Medicina aquella parte da sciencia commum a todos os systemas, é
verdade; a allopathia é erro na therapeutica. Physiologia, anatomia,
pathologia, não sao allopathicas nem homeopathicas, mas é melhor
apprender logo tudo de uma vez, por livros e por lingua de homens
cultores da verdade...

Assim falára na vespera e no quarto. Agora não dizia nada, ou proferia
algum aphorismo sobre a religião e a familia; lembro-me deste: «Dividil-o
com Deus é ainda possuil-o.» Quando minha mãe me deu o ultimo beijo: «Quadro
amantissimo!» suspirou elle. Era manhã de um lindo dia. Os moleques
cochichavam; as escravas tomavam a benção: «Benção, nhô Bentinho! não
se esqueça de sua Joanna! Sua Miquelina fica rezando por vosmecê!» Na
rua José Dias insistiu nas esperanças:

--- Aguente um anno; até lá tudo estará arranjado.




\chapt{LIV}{Panegyrico de Santa Monica.}

No seminario... Ah! não vou contar o seminario, nem me bastaria a isso
um capitulo. Não, senhor meu amigo; algum dia, sim, é possivel que
componha um abreviado do que alli vi e vivi, das pessoas que tratei,
dos costumes, de todo o resto. Esta sarna de escrever, quando pega aos
cincoenta annos, não despega mais. Na mocidade é possivel curar-se um
homem della; e, sem ir mais longe, aqui mesmo no seminario tive um
companheiro que compoz versos, á maneira dos de Junqueira Freire, cujo
livro de frade poeta era recente. Ordenou-se; annos depois encontrei-o
no côro de S.~Pedro e pedi-lhe que me mostrasse os versos novos.

--- Que versos? perguntou meio espantado.

--- Os seus. Pois não se lembra que no seminario...

--- Ah! sorriu elle.

Sorriu, e continuando a procurar n'um livro aberto a hora em que tinha
de cantar no dia seguinte, confessou-me que não fizera mais versos
depois de ordenado. Foram cocegas da mocidade; coçou-se, passou, estava
bom. E falou-me em prosa de uma infinidade de cousas do dia, a vida
cara, um sermão do padre X... uma vigairaria mineira...

Contrario a isso foi um seminarista que não seguiu a carreira.
Chamava-se... Não é preciso dizer o nome; baste o caso. Tinha composto
um \emph{Panegyrico de Santa Monica}, elogiado por algumas pessoas e
então lido entre os seminaristas. Alcançou licença de imprimil-o, e
dedicou-o a Santo Agostinho. Tudo isso é historia velha; o que é mais
moço é que um dia, em 1882, indo ver certo negocio em repartição de
marinha, alli dei com este meu collega, feito chefe de uma secção
administrativa. Deixára seminario, deixára lettras, casára e esquecera
tudo, menos o \emph{Panegyrico de Santa Monica}, umas vinte e nove
paginas, que veiu distribuindo pela vida fóra. Como eu precisasse de
algumas informações, fui pedir-lhas, e seria impossivel achar melhor
nem mais prompta vontade; deu-me tudo, claro, certo, copioso.
Naturalmente conversámos do passado, memorias pessoaes, casos de estudo,
incidentes de nada, um livro, um verbo, um mote, toda a velha palhada
saiu cá fóra, e rimos juntos, e suspirámos de companhia. Vivemos algum
tempo do nosso velho seminario. Ou porque eram delle, ou porque eramos
então moços, as recordações traziam tal poder de felicidade que, se
alguma sombra contraria houve então, não appareceu agora. Elle
confessou-me que perdera de vista todos os companheiros do seminario.

--- Tambem eu, quasi todos; uma vez ordenados, voltaram naturalmente ás
suas provincias, e os daqui tomaram vigairarias fóra.

--- Bom tempo! suspirou elle.

E, após alguma reflexão, fitando em mim uns olhos murchos e teimosos,
perguntou-me:

--- Conservou o meu \emph{Panegyrico}?

Não achei que dizer; tentei mover os beiços, mas: não tinha palavra;
afinal, perguntei:

--- Panegyrico? Que panegyrico?

--- O meu \emph{Panegyrico de Santa Monica}.

Não me lembrou logo, mas a explicação devia bastar; e depois de alguns
instantes de pesquiza mental, respondi que por muito tempo o conservára,
mas as mudanças, as viagens...

--- Hei de levar-lhe um exemplar.

Antes de vinte e quatro horas estava em minha casa, com o folheto, um
velho folheto de vinte e seis annos, encardido, manchado do tempo, mas
sem lacuna, e com uma dedicatoria manuscripta e respeitosa.

--- É o penultimo exemplar, disse-me; agora só me resta um, que não
posso dar a ninguem.

E como me visse folhear o opusculo:

--- Veja se lhe lembra algum pedaço, disse-me.

Vinte e seis annos de intervallo fazem morrer amizades mais estreitas e
assiduas, mas era cortezia, era quasi caridade recordar alguma lauda;
li uma dellas, accentuando certas phrases para lhe dar a impressão de
que achavam echo em minha memoria. Concordou que fossem bellas, mas
preferia outras, e apontou-as.

--- Recorda-se bem?

--- Perfeitamente. \emph{Panegyrico de Santa Monica}! Como isto me faz
remontar os annos da minha mocidade! Nunca me esqueceu o seminario,
creia. Os annos passam, os acontecimentos vêm uns sobre outros, e as
sensações tambem, e vieram amizades novas, que tambem se foram depois,
como é lei da vida... Pois, meu caro collega, nada fez apagar aquelle
tempo da nossa convivencia, os padres, as licções, os recreios... os
nossos recreios, lembra-se? o padre Lopes, oh! o padre Lopes...

Elle, com os olhos no ar, devia estar ouvindo, e naturalmente ouvia,
mas só me disse uma palavra, e ainda assim depois de algum tempo de
silencio, recolhendo os olhos e um suspiro!

--- Tem agradado muito este meu \emph{Panegyrico}!




\chapt{LV}{Um soneto.}

Dita a palavra, apertou-me as mãos com as forças todas de um vasto
agradecimento, despediu-se e saiu. Fiquei só com o \emph{Panegyrico}, e
o que as folhas delle me lembraram foi tal que merece um capitulo ou
mais. Antes, porém, e porque tambem eu tive o meu \emph{Panegyrico},
contarei a historia de um soneto que nunca fiz; era no tempo do
seminario, e o primeiro verso é o que ides ler:

Oh! flôr do ceu! oh! flôr candida e pura!

Como e porque me saiu este verso da cabeça, não sei; saiu assim,
estando eu na cama, como uma exclamação solta, e, ao notar que tinha a
medida de verso, pensei em compor com elle alguma cousa, um soneto. A
insomnia, musa de olhos arregalados, não me deixou dormir uma longa
hora ou duas; as cocegas pediam-me unhas, e eu coçava-me com alma. Não
escolhi logo, logo o soneto; a principio cuidei de outra fórma, e tanto
de rima como de verso solto, mas afinal ative-me ao soneto. Era um
poema breve e prestadio. Quanto á ideia, o primeiro verso não era ainda
uma ideia, era uma exclamação; a ideia viria depois. Assim na cama,
envolvido no lençol, tratei de poetar. Tinha o alvoroço da mãe que
sente o filho, e o primeiro filho. Ia ser poeta, ia competir com
aquelle monge da Bahia, pouco antes revelado, e então na moda; eu,
seminarista, diria em verso as minhas tristezas, como elle dissera as
suas no claustro. Decorei bem o verso, e repetia-o em voz baixa, aos
lençóes; francamente, achava-o bonito, e ainda agora não me parece máu:

Oh! flôr do ceu! oh! flôr candida e pura!

Quem era a flôr? Capitú, naturalmente; mas podia ser a virtude, a
poesia, a religião, qualquer outro conceito a que coubesse a metaphora
da flôr, e flôr do ceu. Aguardei o resto, recitando sempre o verso, e
deitado ora sobre o lado direito, ora sobre o esquerdo; afinal
deixei-me estar de costas, com os olhos no tecto, mas nem assim vinha
mais nada. Então adverti que os sonetos mais gabados eram os que
concluiam com chave de ouro, isto é, um desses versos capitães no
sentido e na fórma. Pensei em forjar uma de taes chaves, considerando
que o verso final, saindo chronologicamente dos treze anteriores, com
difficuldade traria a perfeição louvada; imaginei que taes. chaves eram
fundidas antes da fechadura. Assim foi que me determinei a compor o
ultimo verso do soneto, e, depois de muito suar, saiu este:

Perde-se a vida, ganha-se a batalha!

Sem vaidade, e falando como se fosse de outro, era um verso magnifico.
Sonoro, não ha duvida. E tinha um pensamento, a victoria ganha á custa
da propria vida, pensamento alevantado e nobre. Que não fosse novidade,
é possivel, mas tambem não era vulgar; e ainda agora não explico por
que via mysteriosa entrou n'uma cabeça de tão poucos annos. Naquella
occasião achei-o sublime. Recitei uma e muitas vezes a chave de ouro;
depois repeti os dous versos seguidamente, e dispuz-me a ligal-os pelos
doze centraes. A ideia agora, á vista do ultimo verso, pareceu-me
melhor não ser Capitú; seria a justiça. Era mais proprio dizer que, na
pugna pela justiça, perder-se-hia acaso a vida, mas a batalha ficava
ganha. Tambem me occorreu acceitar a batalha, no sentido natural, e
fazer della a luta pela patria, por exemplo; nesse caso a flôr do ceu
seria a liberdade. Esta accepção, porém, sendo o poeta um seminarista,
podia não caber tanto como a primeira, e gastei alguns minutos em
escolher uma ou outra. Achei melhor a justiça, mas afinal acceitei
definitivamente uma ideia nova, a caridade, e recitei os dous versos,
cada um a seu modo, um languidamente:

Oh! flôr do ceu! oh! flôr candida e pura!

e o outro com grande brio:

Perde-se a vida, ganha-se a batalha!

A sensação que tive é que ia sair um soneto perfeito. Começar bem e
acabar bem não era pouco. Para me dar um banho de inspiração, evoquei
alguns sonetos celebres, e notei que os mais delles eram facilimos; os
versos saíam uns dos outros, com a ideia em si, tão naturalmente, que
se não acabava de crer se ella é que os fizera, se elles é que a
suscitavam. Então tornava ao meu soneto, e novamente repetia o primeiro
verso e esperava o segundo; o segundo não vinha, nem terceiro, nem
quarto; não vinha nenhum. Tive alguns impetos de raiva, e mais de uma
vez pensei em sair da cama e ir ver tinta e papel; póde ser que,
escrevendo, os versos acudissem, mas...

Cançado de esperar, lembrou-me alterar o sentido do ultimo verso, com a
simples transposição de duas palavras, assim:

Ganha-se a vida, perde-se a batalha!

O sentido vinha a ser justamente o contrario, mas talvez isso mesmo
trouxesse a inspiração. Neste caso, era uma ironia: não exercendo a
caridade, póde-se ganhar a vida, mas perde-se a batalha do ceu. Criei
forças novas e esperei. Não tinha janella; se tivesse, é possivel que
fosse pedir uma ideia á noite. E quem sabe se os vagalumes, luzindo cá
embaixo, não seriam para mim como rimas das estrellas, e esta viva
metaphora não me daria os versos esquivos, com os seus consoantes e
sentidos proprios?

Trabalhei em vão, busquei, catei, esperei, não vieram os versos. Pelo
tempo adeante escrevi algumas paginas em prosa, e agora estou compondo
esta narração, não achando maior difficuldade que escrever, bem ou mal.
Pois, senhores, nada me consola daquelle soneto que não fiz. Mas, como
eu creio que os sonetos existem feitos, como as odes e os dramas, e as
demais obras de arte, por uma razão de ordem metaphysica, dou esses
dous versos ao primeiro desoccupado que os quizer. Ao domingo, ou se
estiver chovendo, ou na roça, em qualquer occasião de lazer, póde
tentar ver se o soneto sae. Tudo é dar-lhe uma ideia e encher o centro
que falta.




\chapt{LVI}{Um seminarista.}

Tudo me ia repetindo o diabo do opusculo, com as suas lettras velhas e
citações latinas. Vi sair daquellas folhas muitos perfis de
seminaristas, os irmãos Albuquerques, por exemplo, um dos quaes é
conego na Bahia, emquanto o outro seguiu medicina e dizem haver
descoberto um especifico contra a febre amarella. Vi o Bastos, um
magricella, que está de vigario em Meia-Ponte, se não morreu já; Luiz
Borges, apesar de padre, fez-se politico, e acabou senador do imperio...
Quantas outras caras me fitavam das paginas frias do \emph{Panegyrico}!
Não, não eram frias; traziam o calor da juventude nascente, o calor do
passado, o meu proprio calor. Queria lel-as outra vez, e lograva
entender algum texto, tão recente como no primeiro dia, ainda que mais
breve. Era um encanto ir por elle; ás vezes, inconscientemente, dobrava
a folha como se estivesse lendo de verdade; creio que era quando os
olhos me caíam na palavra do fim da pagina, e a mão, acostumada a
ajudal-os, fazia o seu officio...

Eis aqui outro seminarista. Chamava-se Ezequiel de Souza Escobar. Era
um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugitivos, como as mãos, como
os pés, como a fala, como tudo. Quem não estivesse acostumado com elle
podia acaso sentir-se mal, não sabendo por onde lhe pegasse. Não fitava
de rosto, não falava claro nem seguido; as mãos não apertavam as outras,
nem se deixavam apertar dellas, porque os dedos, sendo delgados e
curtos, quando a gente cuidava tel-os entre os seus, já não tinha nada.
O mesmo digo dos pés, que tão depressa estavam aqui como lá. Esta
difficuldade em pousar foi o maior obstaculo que achou para tomar os
costumes do seminario. O sorriso era instantaneo, mas tambem ria
folgado e largo. Uma cousa não seria tão fugitiva, como o resto, a
reflexão; iamos dar com elle, muita vez, olhos enfiados em si,
cogitando. Respondia-nos sempre que meditava algum ponto espiritual, ou
então que recordava a licção da vespera. Quando elle entrou na minha
intimidade pedia-me frequentemente explicações e repetições miudas, e
tinha memoria para guardal-as todas, até as palavras. Talvez esta
faculdade prejudicasse alguma outra.

Era mais velho que eu trez annos, filho de um advogado de Corityba,
aparentado com um commerciante do Rio de Janeiro, que servia de
correspondente ao pae. Este era homem de fortes sentimentos catholicos.
Escobar tinha uma irmã, que era um anjo, dizia elle.

--- Não é só na belleza que é um anjo, mas tambem na bondade. Não
imagina que boa creatura que ella é. Escreve-me muita vez, hei de
mostrar-lhe as cartas della.

De facto, eram simples e affectuosas, cheias de caricias e conselhos.
Escobar contava-me historias della, interessantes, todas as quaes
vinham a dar na bondade e no espirito daquella creatura; taes eram que
me fariam capaz de acabar casando com ella, se não fosse Capitú. Morreu
pouco depois. Eu, seduzido pelas palavras delle, estive quasi a
contar-lhe logo, logo, a minha historia. A principio fui timido, mas
elle fez-se entrado na minha confiança. Aquelles modos fugitivos
cessavam quando elle queria, e o meio e o tempo os fizeram mais
pousados. Escobar veiu abrindo a alma toda, desde a porta da rua até ao
fundo do quintal. A alma da gente, como sabes, é uma casa assim
disposta, não raro com janellas para todos os lados, muita luz e ar
puro. Tambem as ha fechadas e escuras, sem janellas, ou com poucas e
gradeadas, á semelhança de conventos e prisões. Outrosim, capellas e
bazares, simples alpendres ou paços sumptuosos.

Não sei o que era a minha. Eu não era ainda casmurro, nem dom casmurro;
o receio é que me tolhia a franqueza, mas como as portas não tinham
chaves nem fechaduras, bastava empurral-as, e Escobar empurrou-as e
entrou. Cá o achei dentro, cá ficou, até que...




\chapt{LVII}{De preparação.}

Ah! mas não eram só os seminaristas que me iam saindo daquellas folhas
velhas do \emph{Panegyrico}. Ellas me trouxeram tambem sensações
passadas, taes e tantas que eu não poderia dizel-as todas, sem tirar
espaço ao resto. Uma dessas, e das primeiras, quizera contal-a aqui em
latim. Não é que a materia não ache termos honestos em nossa lingua,
que é casta para os castos, como póde ser torpe para os torpes. Sim,
leitora castissima, como diria o meu finado José Dias, podeis ler o
capitulo até ao fim, sem susto nem vexame.

Já agora metto a historia em outro capitulo. Por mais composto que este
me saia, ha sempre no assumpto alguma cousa menos austera, que pede
umas linhas de repouso e preparação. Sirva este de preparação. E isto é
muito, leitor meu amigo; o coração, quando examina a possibilidade do
que ha de vir, as proporções dos acontecimentos e a copia delles, fica
robusto e disposto, e o mal é menor mal. Tambem, se não fica então, não
fica nunca. E aqui verás tal ou qual esperteza minha; porquanto, ao ler
o que vás ler, é provavel que o aches menos cru do que esperavas.




\chapt{LVIII}{O tratado.}

Foi o caso que, uma segunda-feira, voltando eu para o seminario, vi
cair na rua uma senhora. O meu primeiro gesto, em tal caso, devia ser
de pena ou de riso; não foi uma nem outra cousa, porquanto (e é isto
que eu quizera dizer em latim) porquanto, a senhora tinha as meias mui
lavadas, e não as sujou, levava ligas de seda, e não as perdeu. Varias
pessoas acudiram, mas não tiveram tempo de a levantar; ella ergueu-se
muito vexada, sacudiu-se, agradeceu, e enfiou pela rua proxima.

--- Este gosto de imitar as francezas da rua do Ouvidor, dizia-me José
Dias andando e commentando a queda, é evidentemente um erro. As nossas
moças devem andar como sempre andaram, com seu vagar e paciencia, e não
este tique-tique afrancezado...

Eu mal podia ouvil-o. As meias e as ligas da senhora branqueavam e
enroscavam-se deante de mim, e andavam, caíam, erguiam-se e iam-se
embora. Quando chegámos á esquina, olhei para a outra rua, e vi, a
distancia, a nossa desastrada, que ia no mesmo passo, tique-tique,
tique-tique...

--- Parece que não se machucou, disse eu.

--- Tanto melhor para ella, mas é impossivel que não tenha arranhado os
joelhos; aquella presteza é manha...

Creio que foi «manha» que elle disse; eu fiquei «nos joelhos arranhados».
Dalli em deante, até o seminario, não vi mulher na rua, a quem não
desejasse uma queda; a algumas adivinhei que traziam as meias esticadas
e as ligas justas... Tal haveria que nem levasse meias... Mas eu as via
com ellas... Ou então... Tambem é possivel...

Vou esgarçando isto com reticencias, para dar uma ideia das minhas
ideias, que eram assim diffusas e confusas; com certeza não dou nada. A
cabeça ia-me quente, e o andar não era seguro. No seminario, a primeira
hora foi insupportavel. As batinas traziam ar de saias, e lembravam-me
a queda da senhora. Já não era uma só que eu via cair; todas as que eu
encontrára na rua, mostravam-me agora de relance as ligas azues; eram
azues. De noite, sonhei com ellas. Uma multidão de abominaveis
creaturas veiu andar á roda de mim, tique-tique... Eram bellas, umas
finas, outras grossas, todas ageis como o diabo. Accordei, busquei
afugental-as com esconjuros e outros methodos, mas tão depressa dormi
como tornaram, e, com as mãos presas em volta de mim, faziam um vasto
circulo de saias, ou, trepadas no ar, choviam pés e pernas sobre a
minha cabeça. Assim fui até madrugada. Não dormi mais; rezei
padre-nossos, ave-marias, e credos, e sendo este livro a verdade pura,
é força confessar que tive de interromper mais de uma vez as minhas
orações para acompanhar no escuro uma figura ao longe, tique-tique,
tique-tique... Pegava depressa na oração, sempre no meio para
concertal-a bem, como se não tivesse havido interrupção, mas certamente
não unia a phrase nova á antiga.

Vindo o mal pela manhã adeante, tentei vencel-o, mas por um modo que o
não perdesse de todo. Sabios da escriptura, adivinhai o que podia ser.
Foi isto. Não podendo rejeitar de mim aquelles quadros, recorri a um
tratado entre a minha consciencia e a minha imaginação. As visões
feminis seriam de ora avante consideradas como simples encarnações dos
vicios, e por isso mesmo contemplaveis, como o melhor modo de temperar
o caracter e aguerril-o para os combates asperos da vida. Não formulei
isto por palavras, nem foi preciso; o contracto fez-se tacitamente, com
alguma repugnancia, mas fez-se. E por alguns dias, era eu mesmo que
evocava as visões para fortalecer-me, e não as rejeitava, senão quando
ellas mesmas, de cançadas, se iam embora.




\chapt{LIX}{Convivas de boa memoria.}

Ha dessas reminiscencias que não descançam antes que a penna ou a
lingua as publique. Um antigo dizia arrenegar de conviva que tem boa
memoria. A vida é cheia de taes convivas, e eu sou acaso um delles,
comquanto a prova de ter a memoria fraca seja exactamente não me acudir
agora o nome de tal antigo; mas era um antigo, e basta.

Não, não, a minha memoria não é boa. Ao contrario, é comparavel a
alguem que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar dellas nem caras
nem nomes, e somente raras circumstancias. A quem passe a vida na mesma
casa de familia, com os seus eternos moveis e costumes, pessoas e
affeições, é que se lhe grava tudo pela continuidade e repetição. Como
eu invejo os que não esqueceram a côr das primeiras calças que vestiram!
Eu não atino com a das que enfiei hontem. Juro só que não eram
amarellas porque execro essa côr; mas isso mesmo póde ser olvido e
confusão.

E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda bem nos
livros confusos, mas tudo se póde metter nos livros omissos. Eu, quando
leio algum desta outra casta, não me afflijo nunca. O que faço, em
chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as cousas que não
achei nelle. Quantas ideias finas me acodem então! Que de reflexões
profundas! Os rios, as montanhas, as egrejas que não vi nas folhas
lidas, todos me apparecem agora com as suas aguas, as suas arvores, os
seus altares, e os generaes sacam das espadas que tinham ficado na
bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e tudo
marcha com uma alma imprevista.

É que tudo se acha fóra de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho
as lacunas alheias; assim podes tambem preencher as minhas.




\chapt{LX}{Querido opusculo!}

Assim fiz eu ao \emph{Panegyrico de Santa Monica}, e fiz mais: puz-lhe
não só o que faltava da santa, mas ainda cousas que não eram della.
Viste o soneto, as meias, as ligas, o seminarista Escobar e varios
outros. Vás agora ver o mais que naquelle dia me foi saindo das paginas
amarellas do opusculo.

Querido opusculo, tu não prestavas para nada, mas que mais presta um
velho par de chinellas? Entretanto, ha muita vez no casal de chinellas
um como aroma e calor de dous pés. Gastas e rotas, não deixam de
lembrar que uma pessoa as calçava de manhã, ao erguer da cama, ou as
descalçava á noite, ao entrar nella. E se a comparação não vale, porque
as chinellas são ainda uma parte da pessoa e tiveram o contacto dos pés,
aqui estão outras lembranças, como a pedra da rua, a porta da casa, um
assobio particular, um prégão de quitanda, como aquelle das cocadas que
contei no cap.~XVIII. Justamente, quando contei o prégão das cocadas,
fiquei tão curtido de saudades que me lembrou fazel-o escrever por um
amigo, mestre de musica, e grudal-o ás pernas do capitulo. Se depois
jarretei o capitulo, foi porque outro musico, a quem o mostrei, me
confessou ingenuamente não achar no trecho escripto nada que lhe
accordasse saudades. Para que não aconteça o mesmo aos outros
profissionaes que por ventura me lerem, melhor é poupar ao editor do
livro o trabalho e a despeza da gravura. Vês que não puz nada, nem
ponho. Já agora creio que não basta que os pregões de rua, como os
opusculos de seminario, encerrem casos, pessoas e sensações; é preciso
que a gente os tenha conhecido e padecido no tempo, sem o que tudo é
calado e incolor.

Mas, vamos ao mais que me foi saindo das paginas amarellas.




\chapt{LXI}{A vacca de Homero.}

O mais foi muito. Vi sairem os primeiros dias da separação, duros e
opacos, sem embargo das palavras de conforto que me deram os padres e
os seminaristas, e as de minha mãe e tio Cosme, trazidas por José Dias
ao seminario.

--- Todos estão saudosos, disse-me este, mas a maior saudade está
naturalmente no maior dos corações; e qual é elle? perguntou escrevendo
a resposta nos olhos.

--- Mamãe, acudi eu.

José Dias apertou-me as mãos com alvoroço, e logo pintou a tristeza de
minha mãe, que falava de mim todos os dias, quasi a todas as horas.
Como a approvasse sempre, e accrescentasse alguma palavra relativamente
aos dotes que Deus me dera, o desvanecimento de minha mãe nessas
occasiões era indescriptivel; e contava-me tudo isso cheio de uma
admiração lacrimosa. Tio Cosme tambem se enternecia muito.

--- Hontem até se deu um caso interessante. Tendo eu dito á
Excellentissima que Deus lhe dera, não um filho, mas um anjo do ceu, o
doutor ficou tão commovido que não achou outro modo de vencer o choro
senão fazendo-me um daquelles elogios de galhofa que só elle sabe. Não
é preciso dizer que D.~Gloria enxugou furtivamente uma lagrima. Ou ella
não fosse mãe! Que coração amantissimo!

--- Mas, Sr.~José Dias, e a minha saida daqui?

--- Isso é negocio meu. A viagem á Europa é o que é preciso, mas póde
fazer-se daqui a um ou dous annos, em 1859 ou 1860...

--- Tão tarde!

--- Era melhor que fosse este mesmo anno, mas demos tempo ao tempo.
Tenha paciencia, vá estudando, não se perde nada em ir sabendo já daqui
alguma cousa; e, demais, ainda não acabando padre, a vida do seminario
é util, e vale sempre entrar no mundo ungido com os santos oleos da
theologia...

Neste ponto, --- lembra-me como se fosse hoje, --- os olhos de José
Dias fulguraram tão intensamente que me encheram de espanto. As
palpebras cairam depois, e assim ficaram por alguns instantes, até que
novamente se ergueram, e os olhos fixaram-se na parede do pateo, como
que embebidos em alguma cousa, se não era em si mesmos; depois
despegaram-se da parede e entraram a vagar pelo pateo todo. Podia
comparal-o aqui á vacca de Homero; andava e gemia em volta da cria que
acabava de parir. Não lhe perguntei o que é que tinha, já por
acanhamento, já porque dous lentes, um delles de theologia, vinham
caminhando na nossa direcção. Ao passarem por nós, o aggregado, que os
conhecia, cortejou-os com as deferencias devidas, e pediu-lhes noticias
minhas.

--- Por ora nada se póde affiançar, disse um delles, mas parece que
dará conta da mão.

--- É o que eu lhe dizia agora mesmo, acudiu José Dias. Conto ouvir-lhe
a missa nova; mas ainda que não chegue a ordenar-se, não póde ter
melhores estudos que os que fizer aqui. Para a viagem da existencia,
concluiu demorando mais as palavras, irá ungido com os santos oleos da
theologia...

Desta vez a fulguração dos olhos foi menor, as palpebras não lhe cairam
nem as pupillas fizeram os movimentos anteriores. Ao contrario, todo
elle era attenção e interrogação; quando muito, um sorriso claro e
amigo lhe errava nos labios. O lente de theologia gostou da metaphora,
e disse-lh'o; elle agradeceu, explicando que eram ideias que lhe
escapavam no correr da conversação; não escrevia nem orava. Eu é que
não gostei nada; e logo que os lentes se foram, sacudi a cabeça:

--- Não quero saber dos santos oleos da theologia; desejo sair daqui o
mais cedo que puder, ou já...

--- Já, meu anjo, não póde ser; mas póde succeder que muito antes do
que imaginamos. Quem sabe se este mesmo anno de 58? Tenho um plano
feito, e penso já nas palavras com que hei de expôl-o a D.~Gloria;
estou certo que ella cederá e irá comnosco.

--- Duvido que mamãe embarque.

--- Veremos. Mãe é capaz de tudo; mas, com ella ou sem ella, tenho por
certa a nossa ida, e não haverá esforço que eu não empregue, deixe
estar. Paciencia é que é preciso. E não faça aqui nada que dê logar a
censuras ou queixas; muita docilidade e toda a apparente satisfação.
Não ouviu o elogio do lente? É que você tem-se portado bem. Pois
continue.

--- Mas, 1859 ou 1860 é muito tarde.

--- Será este anno, replicou José Dias.

--- Daqui a tres mezes?

--- Ou seis.

--- Não; tres mezes.

--- Pois sim. Tenho agora um plano, que me parece melhor que outro
qualquer. É combinar a ausencia de vocação ecclesiastica e a
necessidade de mudar de ares. Você porque não tosse?

--- Por que não tusso?

--- Já, já, não, mas eu hei de avisar você para tossir, quando fôr
preciso, aos poucos, uma tossesinha secca, e algum fastio; eu irei
preparando a Excellentissima... Oh! tudo isto é em beneficio della. Uma
vez que o filho não póde servir a egreja, como deve ser servida, o
melhor modo de cumprir a vontade de Deus é dedical-o a outra cousa. O
mundo tambem é egreja para os bons...

Pareceu-me outra vez a vacca de Homero, como se este «mundo tambem é
egreja para os bons», fosse outro bezerro, irmão dos «santos oleos da
theologia.» Mas não dei tempo á ternura materna, e repliquei:

--- Ah! entendo! mostrar que estou doente para embarcar, não é?

José Dias hesitou um pouco, depois explicou-se:

--- Mostrar a verdade, porque, francamente, Bentinho, eu ha mezes que
desconfio do seu peito. Você não anda bom do peito. Em pequeno, teve
umas febres e uma ronqueira... Passou tudo, mas ha dias em que está
mais descorado. Não digo que já seja o mal, mas o mal póde vir depressa.
N'uma hora cae a casa. Por isso, se aquella santa senhora não quizer ir
comnosco, --- ou para que vá mais depressa, acho que uma boa tosse...
Se a tosse ha de vir de verdade, melhor é apressal-a... Deixe estar, eu
aviso...

--- Bem, mas em saindo daqui não ha de ser para embarcar logo; saio
primeiro, depois cuidaremos do embarque; o embarque é que póde ficar
para o anno. Não dizem que o melhor tempo é abril ou maio? Pois seja
maio. Primeiro deixo o seminario, daqui a dous mezes...

E porque a palavra me estivesse a pigarrear na garganta, dei uma volta
rapida, e perguntei-lhe á queima-roupa:

--- Capitú como vae?




\chapt{LXII}{Uma ponta de Iago.}

A pergunta era imprudente, na occasião em que eu cuidava de transferir
o embarque. Equivalia a confessar que o motivo principal ou unico da
minha repulsa ao seminario era Capitú, e fazer crer improvavel, a
viagem. Comprehendi isto depois que falei; quiz emendar-me, mas nem
soube como, nem elle me deu tempo.

--- Tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha. Aquillo emquanto
não pegar algum peralta da visinhança, que case com ella...

Estou que empallideci; pelo menos, senti correr um frio pelo corpo todo.
A noticia de que ella vivia alegre, quando eu chorava todas as noites,
produziu-me aquelle effeito, acompanhado de um bater de coração, tão
violento, que ainda agora cuido ouvil-o. Ha alguma exageração nisto;
mas o discurso humano é assim mesmo, um composto de partes excessivas e
partes diminutas, que se compensam, ajustando-se. Por outro lado, se
entendermos que a audiencia aqui não é das orelhas, senão da memoria,
chegaremos á exacta verdade. A minha memoria ouve ainda agora as
pancadas do coração naquelle instante. Não esqueças que era a emoção do
primeiro amor. Estive quasi a perguntar a José Dias que me explicasse a
alegria de Capitú, o que é que ella fazia, se vivia rindo, cantando ou
pulando, mas relive-me a tempo, e depois outra ideia...

Outra ideia, não, --- um sentimento cruel e desconhecido, o puro ciume,
leitor das minhas entranhas. Tal foi o que me mordeu, ao repetir
commigo as palavras de José Dias: «Algum peralta da visinhança.» Em
verdade, nunca pensára em tal desastre. Vivia tão nella, della e para
ella; que a intervenção de um peralta era como uma noção sem realidade;
nunca me acudiu que havia peraltas na visinhança, varia idade e feitio,
grandes passeadores das tardes. Agora lembrava-me que alguns olhavam
para Capitú, --- e tão senhor me sentia della que era como se olhassem
para mim, um simples dever de admiração e de inveja. Separados um do
outro pelo espaço e pelo destino, o mal apparecia-me agora, não só
possivel, mas certo. E a alegria de Capitú confirmava a suspeita; se
ella vivia alegre é que já namorava a outro, acompanhal-o-hia com os
olhos na rua, falar-lhe-hia á janella, ás ave-marias, trocariam flôres
e...

E... que? Sabes o que é que trocariam mais; se o não achas por ti mesmo,
escusado é ler o resto do capitulo e do livro, não acharás mais nada,
ainda que eu o diga com todas as lettras da etymologia. Mas se o
achaste, comprehenderás que eu, depois de estremecer, tivesse um impeto
de atirar-me pelo portão fóra, descer o resto da ladeira, correr,
chegar á casa do Padua, agarrar Capitú e intimar-lhe que me confessasse
quantos, quantos, quantos já lhe dera o peralta da visinhança. Não fiz
nada. Os mesmos sonhos que ora conto não tiveram, naquelles tres ou
quatro minutos, esta logica de movimentos e pensamentos. Eram soltos,
emendados e mal emendados, com o desenho truncado e torto, uma confusão,
um turbilhão, que me cegava e ensurdecia. Quando tornei a mim, José
Dias concluia uma phrase, cujo principio não ouvi, e o mesmo fim era
vago: «A conta que dará de si.» Que conta e quem? Cuidei naturalmente
que falava ainda de Capitú, e quiz perguntar-lh'o, mas a vontade morreu
ao nascer, como tantas outras gerações dellas. Limitei-me a inquirir do
aggregado quando é que iria a casa ver minha mãe.

--- Estou com saudades de mamãe. Posso ir já esta semana?

--- Vae sabbado.

--- Sabbado? Ah! sim! sim! Peça a mamãe que me mande buscar sabbado!
Sabbado! Este sabbado, não? Que me mande buscar, sem falta.




\chapt{LXIII}{Metades de um sonho.}

Fiquei ancioso pelo sabbado. Até lá os sonhos perseguiam-me, ainda
accordado, e não os digo aqui para não alongar esta parte do livro. Um
só ponho, e no menor numero de palavras, ou antes porei dous, porque um
nasceu de outro, a não ser que ambos formem duas metades de um só. Tudo
isto é obscuro, dona leitora, mas a culpa é do vosso sexo, que
perturbava assim a adolescencia de um pobre seminarista. Não fosse elle,
e este livro seria talvez uma simples pratica parochial, se eu fosse
padre, ou uma pastoral, se bispo, ou uma encyclica, se papa, como me
recommendára tio Cosme: «Anda lá, meu rapaz, volta-me papa!» Ah! porque
não cumpri esse desejo? Depois de Napoleão, tenente e imperador, todos
os destinos estão neste seculo.

Quanto ao sonho foi isto. Como estivesse a espiar os peraltas da
visinhança, vi um destes que conversava com a minha amiga ao pé da
janella. Corri ao logar, elle fugiu; avancei para Capitú, mas não
estava só, tinha o pae ao pé de si, enxugando os olhos e mirando um
triste bilhete de loteria. Não me parecendo isto claro, ia pedir a
explicação, quando elle de si mesmo a deu; o peralta fôra levar-lhe a
lista dos premios da loteria, e o bilhete saira branco. Tinha o numero
4004. Disse-me que esta symetria de algarismos era mysteriosa e bella,
e provavelmente a roda andára mal; era impossivel que não devesse ter a
sorte grande. Emquanto elle falava, Capitú dava-me com os olhos todas
as sortes grandes e pequenas. A maior destas devia ser dada com a bocca.
E aqui entra a segunda parte do sonho. Padua desappareceu, como as suas
esperanças do bilhete. Capitú inclinou-se para fóra, eu relancei os
olhos pela rua, estava deserta. Peguei-lhe nas mãos, resmunguei não sei
que palavras, e accordei sósinho no dormitorio.

O interesse do que acabas de ler não está na materia do sonho, mas nos
esforços que fiz para ver se dormia novamente e pegava nelle outra vez.
Nunca dos nuncas poderás saber a energia e obstinação que empreguei em
fechar os olhos, apertal-os bem, esquecer tudo para dormir, mas não
dormia. Esse mesmo trabalho fez-me perder o somno até á madrugada.
Sobre a madrugada, consegui concilial-o, mas então nem peraltas, nem
bilhetes de loteria, nem sortes grandes ou pequenas, --- nada dos nadas
veiu ter commigo. Não sonhei mais aquella noite, e dei mal as licções
daquelle dia.




\chapt{LXIV}{Uma ideia e um escrupulo.}

Relendo o capitulo passado, acóde-me uma ideia e um escrupulo. O
escrupulo é justamente de escrever a ideia, não a havendo mais banal na
terra, posto que daquella banalidade do sol e da lua, que o ceu nos dá
todos os dias e todos os mezes. Deixei o manuscripto, e olhei para as
paredes. Sabes que esta casa do Engenho Novo, nas dimensões,
disposições e pinturas, é reproducção da minha antiga casa de
Matacavallos. Outrosim, como te disse no capitulo II, o meu fim em
imitar a outra foi ligar as duas pontas da vida, o que aliás não
alcancei. Pois o mesmo succedeu áquelle sonho do seminario, por mais
que tentasse dormir e dormisse. Donde concluo que um dos officios do
homem é fechar e apertar muito os olhos, a ver se continua pela noite
velha o sonho truncado da noite moça. Tal é a ideia banal e nova que eu
não quizera pôr aqui, e só provisoriamente a escrevo.

Antes de concluir este capitulo, fui á janella indagar da noite por que
razão os sonhos hão de ser assim tão tenues que se esgarçam ao menor
abrir de olhos ou voltar de corpo, e não continuam mais. A noite não me
respondeu logo. Estava deliciosamente bella, os morros pallejavam de
luar e o espaço morria de silencio. Como eu insistisse, declarou-me que
os sonhos já não pertencem á sua jurisdicção. Quando elles moravam na
ilha que Luciano lhes deu, onde ella tinha o seu palacio, e donde os
fazia sair com as suas caras de varia feição, dar-me-hia explicações
possiveis. Mas os tempos mudaram tudo. Os sonhos antigos foram
aposentados, e os modernos moram no cerebro da pessoa. Estes, ainda que
quizessem imitar os outros, não poderiam fazel-o; a ilha dos sonhos,
como a dos amores, como todas as ilhas de todos os mares, são agora
objecto da ambição e da rivalidade da Europa e dos Estados-Unidos.

Era uma allusão ás Fillipinas. Pois que não amo a politica, e ainda
menos a politica internacional, fechei a janella e vim acabar este
capitulo para ir dormir. Não peço agora os sonhos de Luciano, nem
outros, filhos da memoria ou da digestão; basta-me um somno quieto e
apagado. De manhã, com a fresca, irei dizendo o mais da minha historia
e suas pessoas.




\chapt{LXV}{A dissimulação.}

Chegou o sabbado, chegaram outros sabbados, e eu acabei affeiçoando-me
á vida nova. Ia alternando a casa e o seminario. Os padres gostavam de
mim, os rapazes tambem, e Escobar mais que os rapazes e os padres. No
fim de cinco semanas estive quasi a contar a este as minhas penas e
esperanças; Capitú refreou-me.

--- Escobar é muito meu amigo, Capitú!

--- Mas não é meu amigo.

--- Póde vir a ser; elle já me disse que ha de vir cá para conhecer
mamãe.

--- Não importa; você não tem direito de contar um segredo que não é só
seu, mas tambem meu, e eu não lhe dou licença de dizer nada a pessoa
nenhuma.

Era justo, calei-me e obedeci. Outra cousa em que obedeci ás suas
reflexões foi, logo no primeiro sabbado, quando eu fui á casa della, e,
após alguns minutos de conversa, me aconselhou a ir embora.

--- Hoje não fique aqui mais tempo; vá para casa, que eu lá vou logo. É
natural que D.~Gloria queira estar com você muito tempo, ou todo, se
puder.

Em tudo isso mostrava a minha amiga tanta lucidez que eu bem podia
deixar de citar um terceiro exemplo, mas os exemplos não se fizeram
senão para ser citados, e este é tão bom que a omissão seria um crime.
Foi á minha terceira ou quarta vinda á casa. Minha mãe depois que lhe
respondi ás mil perguntas que me fez sobre o tratamento que me davam,
os estudos, as relações, a disciplina, e se me doia alguma cousa, e se
dormia bem, tudo o que a ternura das mães inventa para cançar a
paciencia de um filho, concluiu voltando-se para José Dias:

--- Sr.~José Dias, ainda duvida que saia daqui um bom padre?

--- Excellentissima...

--- E você, Capitú, interrompeu minha mãe voltando-se para a filha do
Padua que estava na sala, com ella, --- você não acha que o nosso
Bentinho dará um bom padre?

--- Acho que sim, senhora, respondeu Capitú cheia de convicção.

Não gostei da convicção. Assim lh'o disse, na manhã seguinte, no
quintal della, recordando as palavras da vespera, e lançando-lhe em
rosto, pela primeira vez, a alegria que ella mostrára desde a minha
entrada no seminario, quando eu vivia curtido de saudades. Capitú
fez-se muito seria, e perguntou-me como é que queria que se portasse
uma vez que suspeitavam de nós; tambem tivera noites desconsoladas, e
os dias, em casa della foram tão tristes como os meus; podia indagal-o
do pae e da mãe. A mãe chegou a dizer-lhe, por palavras encobertas, que
não pensasse mais em mim.

--- Com D.~Gloria e D.~Justina mostro-me naturalmente alegre, para que
não pareça que a denuncia de José Dias é verdadeira. Se parecesse,
ellas tratariam de separar-nos mais, e talvez acabassem não me
recebendo... Para mim, basta o nosso juramento de que nos havemos de
casar um com outro.

Era isto mesmo; deviamos dissimular para matar qualquer suspeita, e ao
mesmo tempo gosar toda a liberdade anterior, e construir tranquillos o
nosso futuro. Mas o exemplo completa-se com o que ouvi no dia seguinte,
ao almoço; minha mãe, dizendo tio Cosme que ainda queria ver com que
mão havia eu de abençoar o povo á missa, contou que, dias antes,
estando a falar de moças que se casam cedo, Capitú lhe dissera: «Pois a
mim quem me ha de casar ha de ser o padre Bentinho; eu espero que elle
se ordene!» Tio Cosme riu da graça, José Dias não dessorriu, só prima
Justina é que franziu a testa, e olhou para mim interrogativamente. Eu,
que havia olhado para todos, não pude resistir ao gesto da prima, e
tratei de comer. Mas comi mal; estava tão contente com aquella grande
dissimulação de Capitú que não vi mais nada, e, logo que almocei, corri
a referir-lhe a conversa e a louvar-lhe a astucia. Capitú sorriu de
agradecida.

--- Você tem razão, Capitú, concluí eu; vamos enganar toda esta gente.

--- Não é? disse ella com ingenuidade.




\chapt{LXVI}{Intimidade.}

Capitú ia agora entrando na alma de minha mãe. Viviam o mais do tempo
juntas, falando de mim, a proposito do sol e da chuva, ou de nada;
Capitú ia lá coser, ás manhãs; alguma vez ficava para jantar.

Prima Justina não acompanhava a parenta naquellas finezas, mas não
tratava de todo mal a minha amiga. Era assaz sincera para dizer o mal
que sentia de alguem, e não sentia bem de pessoa alguma. Talvez do
marido, mas o marido era morto; em todo caso, não existira homem capaz
de competir com elle na affeição, no trabalho e na honestidade, nas
maneiras e na agudeza de espirito. Esta opinião, segundo tio Cosme, era
posthuma, pois em vida andavam ás brigas, e os ultimos seis mezes
acabaram separados. Tanto melhor para a justiça della; o louvor dos
mortos é um modo de orar por elles. Tambem gostaria de minha mãe, ou se
algum mal pensou della foi entre si e o travesseiro. Comprehende-se que,
de apparencia, lhe désse a estima devida. Não penso que ella aspirasse
a algum legado; as pessoas assim dispostas excedem os serviços naturaes,
fazem-se mais risonhas, mais assiduas, multiplicam os cuidados,
precedem os famulos. Tudo isso era contrario á natureza de prima
Justina, feita de azedume e de implicancia. Como vivesse de favor na
casa, explica-se que não desestimasse a dona e calasse os seus
resentimentos, ou só dissesse mal della a Deus e ao diabo.

Caso tivesse resentimentos de minha mãe, não era uma razão mais para
detestar Capitú, nem ella precisava de razões supplementares. Comtudo,
a intimidade de Capitú fel-a mais aborrecivel á minha parenta. Se a
principio não a tratava mal, com o tempo trocou de maneiras e acabou
fugindo-lhe. Capitú, attenta, desde que a não via, indagava della e ia
procural-a. Prima Justina tolerava esses cuidados. A vida é cheia de
obrigações que a gente cumpre, por mais vontade que tenha de as
infringir deslavadamente. Demais, Capitú usava certa magia que captiva;
prima Justina acabava sorrindo, ainda que azedo, mas a sós com minha
mãe achava alguma palavra ruim que dizer da menina.

Como minha mãe adoecesse de uma febre, que a pôz ás portas da morte,
quiz que Capitú lhe servisse de enfermeira. Prima Justina, posto que
isto a aliviasse de cuidados penosos, não perdoou á minha amiga a
intervenção. Um dia, perguntou-lhe se não tinha que fazer em casa;
outro dia, rindo, soltou-lhe este epigramma: «Não precisa correr tanto;
o que tiver de ser seu ás mãos lhe ha de ir.»




\chapt{LXVII}{Um peccado.}

Já agora não tiro a doente da cama sem contar o que se deu commigo. Ao
cabo de cinco dias, minha mãe amanheceu tão transtornada que ordenou me
mandassem buscar ao seminario. Em vão tio Cosme:

--- Mana Gloria, você assusta-se sem motivo, a febre passa...

--- Não! não! mandem buscal-o! Posso morrer, e a minha alma não se
salva, se Bentinho não estiver ao pé de mim.

--- Vamos assustal-o.

--- Pois não lhe digam nada, mas vão buscal-o, já, já, não se demorem.

Cuidaram fosse delirio; mas, não custando nada trazer-me, José Dias foi
incumbido do recado. Entrou tão atordoado que me assustou. Contou
particularmente ao reitor o que havia, e recebi licença para ir a casa.
Na rua, iamos calados, elle não alterando o passo do costume, --- a
premissa antes da consequencia, a consequencia antes da conclusão, ---
mas cabisbaixo e suspirando, eu temendo ler no rosto delle alguma
noticia dura e definitiva. Só me falára na doença, como negocio simples;
mas o chamado, o silencio, os suspiros podiam dizer alguma cousa mais.
O coração batia-me com força, as pernas bambeavam-me, mais de uma vez
cuidei cair...

O anceio de escutar a verdade complicava-se em mim com o temor de a
saber. Era a primeira vez que a morte me apparecia assim perto, me
envolvia, me encarava com os olhos furados e escuros. Quanto mais
andava aquella rua dos Barbonos, mais me aterrava a ideia de chegar a
casa, de entrar, de ouvir os prantos, de ver um corpo defuncto... Oh!
eu não poderia nunca expor aqui tudo o que senti naquelles terriveis
minutos. A rua, por mais que José Dias andasse superlativamente devagar,
parecia fugir-me debaixo dos pés, as casas voavam de um e outro lado, e
uma corneta que nessa occasião tocava no quartel dos Municipaes
Permanentes resoava aos meus ouvidos como a trombeta do juizo final.

Fui, cheguei aos Arcos, entrei na rua de Matacavallos. A casa não era
logo alli, mas muito alem da dos Invalidos, perto da do Senado. Trez ou
quatro vezes, quizera interrogar o meu companheiro, sem ousar abrir a
bocca; mas agora, já nem tinha tal desejo. Ia só andando, acceitando o
peor, como um gesto do destino, como uma necessidade da obra humana, e
foi então que a Esperança, para combater o Terror, me segredou ao
coração, não estas palavras, pois nada articulou parecido com palavras,
mas uma ideia que poderia ser traduzida por ellas: «Mamãe defuncta,
acaba o seminario.»

Leitor, foi um relampago. Tão depressa alumiou a noite, como se esvaiu,
e a escuridão fez-se mais cerrada, pelo effeito do remorso que me ficou.
Foi uma suggestão da luxuria e do egoismo. A piedade filial desmaiou um
instante, com a perspectiva da liberdade certa, pelo desapparecimento
da divida e do devedor; foi um instante, menos que um instante, o
centesimo de um instante, ainda assim o sufficiente para complicar a
minha afflicção com um remorso.

José Dias suspirava. Uma vez olhou para mim tão cheio de pena que me
pareceu haver-me adivinhado, e eu quiz pedir-lhe que não dissesse nada
a ninguem, que eu ia castigar-me, etc.~. Mas a pena trazia tanto amor,
que não podia ser pezar do meu peccado; mas então era sempre a morte de
minha mãe... Senti uma angustia grande, um nó na garganta, e não pude
mais, chorei de uma vez.

--- Que é, Bentinho?

--- Mamãe...?

--- Não! não! Que ideia é essa? O estado della é gravissimo, mas não é
mal de morte, e Deus póde tudo. Enxugue os olhos, que é feio um mocinho
da sua edade andar chorando na rua. Não ha de ser nada, uma febre... As
febres, assim como dão com força assim tambem se vão embora... Com os
dedos, não; onde está o lenço?

Enxuguei os olhos, posto que de todas as palavras de José Dias uma só
me ficasse no coração; foi aquelle \emph{gravissimo}. Vi depois que
elle só queria dizer \emph{grave}, mas o uso do superlativo faz a bocca
longa, e, por amor do periodo, José Dias fez crescer a minha tristeza.
Se achares neste livro algum caso da mesma familia, avisa-me, leitor,
para que o emende na segunda edição; nada ha mais feio que dar pernas
longuissimas a ideias brevissimas. Enxuguei os olhos, repito, e fui
andando, ancioso agora por chegar a casa, e pedir perdão a minha mãe do
ruim pensamento que tive. Emfim, chegámos, entramos, subi tremulo os
seis degraus da escada, e d'ahi a pouco, debruçado sobre a cama, ouvia
as palavras ternas de minha mãe que me apertava muito as mãos,
chamando-me seu filho. Estava queimando, os olhos ardiam nos meus, toda
ella parecia consumida por um volcão interno. Ajoelhei-me ao pé do
leito, mas como este era alto, fiquei longe das suas caricias:

--- Não, meu filho, levanta, levanta!

Capitú, que estava na alcova, gostou de ver a minha entrada, os meus
gestos, palavras e lagrimas, segundo me disse depois; mas não suspeitou
naturalmente todas as causas da minha afflicção. Entrando no meu quarto,
pensei em dizer tudo a minha mãe, logo que ella ficasse boa, mas esta
ideia não me mordia, era uma velleidade pura, uma acção que eu não
faria nunca, por mais que o peccado me doesse. Então, levado do remorso,
usei ainda uma vez do meu velho meio das promessas espirituaes, e pedi
a Deus que me perdoasse e salvasse a vida de minha mãe, e eu lhe
rezaria dous mil padre-nossos. Padre que me lês, perdoa este recurso;
foi a ultima vez que o empreguei. A crise em que me achava, não menos
que o costume e a fé, explica tudo. Eram mais dous mil; onde iam os
antigos? Não paguei uns nem outros, mas saindo de almas candidas e
verdadeiras taes promessas são como a moeda fiduciaria, --- ainda que o
devedor as não pague, valem a somma que dizem.




\chapt{LXVIII}{Adiemos a virtude.}

Poucos teriam animo de confessar aquelle meu pensamento da rua de
Matacavallos. Eu confessarei tudo o que importar á minha historia.
Montaigne escreveu de si: \emph{ce ne sont pas mes gestes que j'escris;
c'est moi, c'est mon essence}. Ora, ha só um modo de escrever a propria
essencia, é contal-a toda, o bem e o mal. Tal faço eu, á medida que me
vae lembrando e convindo á construcção ou reconstrucção de mim mesmo.
Por exemplo, agora que contei um peccado, diria com muito gosto alguma
bella acção contemporanea, se me lembrasse, mas não me lembra; fica
transferida a melhor opportunidade.

Nem perderás em esperar, meu amigo; ao contrario, acóde-me agora que...
Não só as bellas acções são bellas em qualquer occasião, como são
tambem possiveis e provaveis, pela theoria que tenho dos peccados e das
virtudes, não menos simples que clara. Reduz-se a isto que cada pessoa
nasce com certo numero delles e dellas, alliados por matrimonio para se
compensarem na vida. Quando um de taes conjuges é mais forte que o
outro, elle só guia o individuo, sem que este, por não haver praticado
tal virtude ou commettido tal peccado, se possa dizer isento de um ou
de outro; mas a regra é dar-se a pratica simultanea dos dous, com
vantagem do portador de ambos, e alguma vez com resplendor maior da
terra e do ceu. É pena que eu não possa fundamentar isto com um ou mais
casos extranhos; falta-me tempo.

Pelo que me toca, é certo que nasci com alguns daquelles casaes, e
naturalmente ainda os possuo. Já me suecedeu, aqui no Engenho Novo, por
estar uma noite com muita dôr de cabeça, desejar que o trem da Central
estourasse longe dos meus ouvidos e interrompesse a linha por muitas
horas, ainda que morresse alguem; e no dia seguinte perdi o trem da
mesma estrada, por ter ido dar a minha bengala a um cego que não trazia
bordão. \emph{Voilà mes gestes, voilà mon essence}.




\chapt{LXIX}{A missa.}

Um dos gestos que melhor exprimem a minha essencia foi a devoção com
que corri no domingo proximo a ouvir missa em S.~Antonio dos Pobres. O
aggregado quiz ir commigo, e principiou a vestir-se, mas era tão lento
nos suspensorios e nas presilhas, que não pude esperar por elle. Demais,
eu queria estar só. Sentia necessidade de evitar qualquer conversação
que me desviasse o pensamento do fim a que ia, e era reconciliar-me com
Deus, depois do que se passou no capitulo LXVII. Nem era só pedir-lhe
perdão do peccado, era tambem agradecer o restabelecimento de minha mãe,
e, visto que digo tudo, fazel-o renunciar ao pagamento da minha
promessa. Jehovah, posto que divino, ou por isso mesmo, é um Rothschild
muito mais humano, e não faz moratorias, perdoa as dividas
integralmente, uma vez que o devedor queira devéras emendar a vida e
cortar nas despezas. Ora, eu não queria outra cousa; dalli em deante
não faria mais promessas que não pudesse pagar, e pagaria logo as que
fizesse.

Ouvi missa; ao levantar a Deus, agradeci a vida e saude de minha mãe;
depois pedi perdão do peccado e relevação da divida, e recebi a benção
final do officiante como um acto solemne de reconciliação. No fim,
lembrou-me que a egreja estabeleceu no confessionario um cartorio
seguro, e na confissão o mais authentico dos instrumentos para o ajuste
de contas moraes entre o homem e Deus. Mas a minha incorrigivel timidez
me fechou essa porta certa; receiei não achar palavras com que dizer ao
confessor o meu segredo. Como o homem muda! Hoje chego a publical-o.




\chapt{LXX}{Depois da missa.}

Rezei ainda, persignei-me, fechei o livro de missa e caminhei para a
porta. A gente não era muita, mas a egreja tambem não é grande, e não
pude sair logo, logo, mas devagar. Havia homens e mulheres, velhos e
moços, sedas e chitas, e provavelmente olhos feios e bellos, mas eu não
vi uns nem outros. Ia na direcção da porta, com a onda, ouvindo as
saudações e os cochichos. No adro, onde se fez claro, parei e olhei
para todos. Vi então uma moça e um homem, que saíam da egreja e pararam;
e a moça olhava para mim falando ao homem, e o homem olhava para mim,
ouvindo a moça. E chegaram-me estas palavras:

--- Mas que queres?

--- Queria saber della; papae pergunte.

Era sinhásinha Sancha, a companheira de collegio de Capitú, que queria
noticias de minha mãe. O pae veiu a mim; disse-lhe que estava
restabelecida. Depois saimos, mostrou-me a casa delle, e, como eu vinha
na mesma direcção, viemos juntos. Gurgel era homem de quarenta annos ou
pouco mais, com propensão a engrossar o ventre; era muito obsequioso;
chegando á porta da casa, quiz por força que eu fosse almoçar com elle.

--- Obrigado; mamãe espera-me.

--- Manda-se lá um preto dizer que o senhor fica almoçando, e irá mais
tarde.

--- Venho outro dia.

Sinhásinha Sancha, voltada para o pae, ouvia e esperava. Não era feia;
só se lhe podia notar a semelhança do nariz, que tambem acabava grosso,
mas ha feições que tiram a graça de uns para dal-a a outros. Vestia
simples. Gurgel era viuvo e morria pela filha. Como eu recusasse o
almoço, quiz que descançasse alguns minutos. Não pude recusar e subi.
Quiz saber a minha edade, os meus estudos, a minha fé, e dava-me
conselhos para o caso de vir a ser padre; disse-me o numero do armazem,
rua da Quitanda. Emfim, despedi-me, veiu ao patamar da escada; a filha
deu-me recommendações para Capitú e para minha mãe. Da rua olhei para
cima; o pae estava á janella e fez-me um gesto largo de despedida.




\chapt{LXXI}{Visita de Escobar.}

Em casa, tinham já mentido dizendo a minha mãe que eu voltára e estava
mudando de roupa. «A missa das oito já ha de ter acabado... Bentinho
devia estar de volta... Teria acontecido alguma cousa, mano Cosme?...
Mandem ver...» Assim falava ella, de minuto a minuto, mas eu entrei e
commigo a tranquillidade.

Era o dia das boas sensações. Escobar foi visitar-me e saber da saude
de minha mãe. Nunca me visitára até alli, nem as nossas relações
estavam já tão estreitas, como vieram a ser depois; mas sabendo a razão
da minha saida, tres dias antes, aproveitou o domingo para ir ter
commigo e perguntar se continuava o perigo ou não. Quando lhe disse que
não, respirou.

--- Tive receio, disse elle.

--- Os outros souberam?

--- Parece que sim: alguns souberam.

Tio Cosme e José Dias gostaram do moço; o aggregado disse-lhe que vira
uma vez o pae no Rio de Janeiro. Escobar era muito polido; e, comquanto
falasse mais do que veiu a falar depois, ainda assim não era tanto como
os rapazes da nossa edade; naquelle dia achei-o um pouco mais expansivo
que de costume. Tio Cosme quiz que jantasse comnosco. Escobar reflectiu
um instante e acabou dizendo que o correspondente do pae esperava por
elle. Eu, lembrando-me das palavras do Gurgel, repeti-as:

--- Manda-se lá um preto dizer que o senhor janta aqui, e irá depois.

--- Tanto incommodo!

--- Incommodo nenhum, interveiu tio Cosme.

Escobar acceitou, e jantou. Notei que os movimentos rapidos que tinha e
dominava na aula tambem os dominava agora, na sala como na mesa. A hora
que passou commigo foi de franca amizade. Mostrei-lhe os poucos livros
que possuia. Gostou muito do retrato de meu pae; depois de alguns
instantes de contemplação, virou-se e disse-me:

--- Vê-se que era um coração puro!

Os olhos de Escobar, claros como já disse, eram dulcissimos; assim os
definiu José Dias, depois que elle saiu, e mantenho esta palavra,
apesar dos quarenta annos que traz em cima de si. Nisto não houve
exageração do aggregado. A cara rapada mostrava uma pelle alva e lisa.
A testa é que era um pouco baixa, vindo a risca do cabello quasi em
cima da sobrancelha esquerda; mas tinha sempre a altura necessaria para
não affrontar as outras feições, nem diminuir a graça dellas. Realmente,
era interessante de rosto, a bocca fina e chocarreira, o nariz curvo e
delgado. Tinha o séstro de sacudir o hombro direito, de quando em
quando, e veiu a perdel-o, desde que um de nós lh'o notou um dia no
seminario; primeiro exemplo que vi de que um homem póde corrigir-se
muito bem dos defeitos miudos.

Nunca deixei de sentir tal ou qual desvanecimento em que os meus amigos
agradassem a todos. Em casa, ficaram querendo bem a Escobar; a mesma
prima Justina achou que era um moço muito apreciavel, apesar... Apesar
de que? perguntou-lhe José Dias, vendo que ella não acabava a phrase.
Não teve resposta, nem podia tel-a; prima Justina provavelmente não viu
defeito claro ou importante no nosso hospede; o \emph{apesar} era uma
especie de resalva para algum que lhe viesse a descobrir um dia; ou
então foi obra de uso velho, que a levou a restringir, onde não achára
restricção.

Escobar despediu-se logo depois de jantar; fui leval-o á porta, onde
esperámos a passagem de um omnibus. Disse-me que o armazem do
correspondente era na rua dos Pescadores, e ficava aberto até ás nove
horas: elle é que se não queria demorar fóra. Separámo-nos com muito
affecto: elle, de dentro do omnibus, ainda me disse adeus, com a mão.
Conservei-me á porta, a ver se, ao longe, ainda olharia para traz, mas
não olhou.

--- Que amigo é esse tamanho? perguntou alguem de uma janella ao pé.

Não é preciso dizer que era Capitú. São cousas que se adivinham na vida,
como nos livros, sejam romances, sejam historias verdadeiras. Era
Capitú, que nos espreitára desde algum tempo, por dentro da veneziana,
e agora abrira inteiramente a janella, e apparecera. Viu as nossas
despedidas tão rasgadas e affectuosas, e quiz saber quem era que me
merecia tanto.

--- É o Escobar, disse eu indo pôr-me embaixo da janella, a olhar para
cima.




\chapt{LXXII}{Uma reforma dramatica.}

Nem eu, nem tu, nem ella, nem qualquer outra pessoa desta historia
poderia responder mais, tão certo é que o destino, como todos os
dramaturgos, não annuncia as peripecias nem o desfecho. Elles chegam a
seu tempo, até que o panno cae, apagam-se as luzes, e os espectadores
vão dormir. Nesse genero ha por ventura alguma cousa que reformar, e eu
proporia, como ensaio, que as peças começassem pelo fim. Othello
mataria a si e a Desdemona no primeiro acto, os tres seguintes seriam
dados á acção lenta e decrescente do ciume, e o ultimo ficaria só com
as scenas iniciaes da ameaça dos turcos, as explicações de Othello e
Desdemona, e o bom conselho do fino Iago: «Mette dinheiro na bolsa.»
Desta maneira, o espectador, por um lado, acharia no theatro a charada
habitual que os periodicos lhe dão, porque os ultimos actos explicariam
o desfecho do primeiro, especie de conceito, e, por outro lado, ia para
a cama com uma boa impressão de ternura e de amor:

Ella amou o que me affligira, Eu amei a piedade della.




\chapt{LXXIII}{O contra-regra.}

O destino não é só dramaturgo, é tambem o seu proprio contra-regra,
isto é, designa a entrada dos personagens em scena, dá-lhes as cartas e
outros objectos, e executa dentro os signaes correspondentes ao dialogo,
uma trovoada, um carro, um tiro. Quando eu era moço, representou-se ahi,
em não sei que theatro, um drama que acabava pelo juizo final. O
principal personagem era Ashaverus, que no ultimo quadro concluia um
monologo por esta exclamação: «Ouço a trombeta do archanjo!» Não se
ouviu trombeta nenhuma. Ashaverus, envergonhado, repetiu a palavra,
agora mais alto, para advertir o contra-regra, mas ainda nada. Então
caminhou para o fundo, disfarçamente tragico, mas effectivamente com o
fim de falar ao bastidor, e dizer em voz surda: «O piston! o piston! o
piston!» O publico ouviu esta palavra e desatou a rir, até que, quando
a trombeta soou devéras, e Ashaverus bradou pela terceira vez que era a
do archanjo, um gaiato da platéa corrigiu cá debaixo: «Não, senhor, é o
piston do archanjo!»

Assim se explicam a minha estada debaixo da janella de Capitú e a
passagem de um cavalleiro, um \emph{dandy}, como então diziamos.
Montava um bello cavallo alazão, firme na sella, redea na mão esquerda,
a direita á cinta, botas de verniz, figura e postura esbeltas: a cara
não me era desconhecida. Tinham passado outros, e ainda outros viriam
atraz; todos iam ás suas namoradas. Era uso do tempo namorar a cavallo.
Relê Alencar: «Porque um estudante (dizia um dos seus personagens de
theatro de 1858) não póde estar sem estas duas cousas, um cavallo e uma
namorada.» Relê Alvares de Azevedo. Uma das suas poesias é destinada a
contar (1851) que residia em Calumby, e, para ver a namorada no Cattete,
alugára um cavallo por trez mil reis... Trez mil reis! tudo se perde na
noite dos tempos!

Ora, o \emph{dandy} do cavallo baio não passou como os outros; era a
trombeta do juizo final e soou a tempo; assim faz o Destino, que é o
seu proprio contra-regra. O cavalleiro não se contentou de ir andando,
mas voltou a cabeça para o nosso lado, o lado de Capitú, e olhou para
Capitú, e Capitú para elle; o cavallo andava, a cabeça do homem
deixava-se ir voltando para traz. Tal foi o segundo dente de ciume que
me mordeu. A rigor, era natural admirar as bellas figuras; mas aquelle
sujeito costumava passar alli, ás tardes; morava no antigo Campo da
Acclamação, e depois... e depois... Vão lá raciocinar com um coração de
braza, como era o meu! Nem disse nada a Capitú; saí da rua á pressa,
enfiei pelo meu corredor, e, quando dei por mim, estava na sala de
visitas.




\chapt{LXXIV}{A presilha.}

Na sala de visitas, tio Cosme e José Dias conversavam, um sentado,
outro andando e parando. A vista de José Dias lembrou-me o que elle me
dissera no seminario: «Aquillo emquanto não pegar algum peralta da
visinhança que case com ella....» Era certamente allusão ao cavalleiro.
Tal recordação aggravou a impressão que eu trazia da rua; mas não seria
essa palavra, inconscientemente guardada, que me dispoz a crer na
malicia dos seus olhares? A vontade que tive foi pegar em José Dias
pela gola, leval-o ao corredor e perguntar-lhe se falára de verdade ou
por hypothese; mas José Dias, que parára ao ver-me entrar, continuou a
andar e a falar. Eu, impaciente, queria ir á casa ao pé, imaginava que
Capitú saisse da janella assustada e não tardasse a apparecer, para
indagar e explicar.... E os dous falavam, até que tio Cosme ergueu-se
para ir ver a doente, e José Dias veiu ter commigo, ao vão da outra
janella.

Ha um instante tinha eu desejo de lhe perguntar o que havia entre
Capitú e os peraltas do bairro; agora, imaginando que vinha justamente
dizer-m'o, fiquei com medo de ouvil-o. Quiz tapar-lhe a bocca. José
Dias viu no meu rosto algum signal differente da expressão habitual, e
perguntou-me com interesse:

--- Que é, Bentinho?

Para não fital-o, deixei cair os olhos. Os olhos, caindo, viram que uma
das presilhas das calças do aggregado estava desabotoada, e, como elle
insistisse em saber o que é que eu tinha, respondi apontando com o dedo:

--- Olhe a presilha, abotoe a presidia.

José Dias inclinou-se, eu saí correndo.




\chapt{LXXV}{O desespero.}

Escapei ao aggregado, escapei a minha mãe não indo ao quarto della, mas
não escapei a mim mesmo. Corri ao meu quarto, e entrei atraz de mim. Eu
falava-me, eu perseguia-me, eu atirava-me á cama, e rolava commigo, e
chorava, e abafava os soluços com a ponta do lençol. Jurei não ir ver
Capitú aquella tarde, nem nunca mais, e fazer-me padre de uma vez.
Via-me já ordenado, deante d'ella, que choraria de arrependimento e me
pediria perdão, mas eu, frio e sereno, não teria mais que desprezo,
muito desprezo; voltava-lhe as costas. Chamava-lhe perversa. Duas vezes
dei por mim mordendo os dentes, como se a tivesse entre elles.

Da cama ouvi a voz della, que viera passar o resto da tarde com minha
mãe, e naturalmente commigo, como das outras vezes; mas, por maior que
fosse o abalo que me deu, não me fez sair do quarto. Capitú ria alto,
falava alto, como se me avisasse; eu continuava surdo, a sós commigo e
o meu desprezo. A vontade que me dava era cravar-lhe as unhas no
pescoço, enterral-as bem, até ver-lhe sair a vida com o sangue....




\chapt{LXXVI}{Explicação.}

Ao fim de algum tempo, estava socegado, mas abatido. Como me achasse
estirado na cama, com os olhos no tecto, lembrou-me a recommendação que
minha mãe fazia de me não deitar depois de jantar para evitar alguma
congestão. Ergui-me de golpe, mas não saí do quarto. Capitú ria agora
menos e falava mais baixo; estaria afflicta com a minha reclusão, mas
nem por isso me abalou.

Não ceei e dormi mal. Na manhã seguinte não estava melhor, estava
differente. A minha dôr agora complicava-se do receio de haver ido alem
do que convinha, deixando de examinar o negocio. Posto que a cabeça me
doesse um pouco, simulei maior incommodo, com o fim de não ir ao
seminario e falar a Capitú. Podia estar zangada commigo, podia não
querer-me agora e preferir o cavalleiro. Quiz resolver tudo, ouvil-a e
julgal-a; podia ser que tivesse defesa e explicação.

Tinha ambas as cousas. Quando soube a causa da minha reclusão da
vespera, disse-me que era grande injuria que lhe fazia; não podia crer
que depois da nossa troca de juramentos, tão leviana a julgasse que
pudesse crer.... E aqui romperam-lhe lagrimas, e fez um gesto de
separação; mas eu acudi de prompto, peguei-lhe das mãos e beijei-as com
tanta alma e calor que as senti estremecer. Enxugou os olhos com os
dedos, eu os beijei de novo, por elles e pelas lagrimas; depois
suspirou, depois abanou a cabeça. Confessou-me que não conhecia o rapaz,
senão como os outros que alli passavam ás tardes, a cavallo ou a pé. Se
olhára para elle, era prova exactamente de não haver nada entre ambos;
se houvesse, era natural dissimular.

--- E que poderia haver, se elle vae casar? concluiu.

--- Vae casar?

Ia casar, disse-me com quem, com uma moça da rua dos Barbonos. Esta
razão quadrou-me mais que tudo, e ella o sentiu no meu gesto; nem por
isso deixou de dizer que, para evitar nova equivocação, deixaria de ir
mais á janella.

--- Não! não! não! não lhe peço isto!

Consentiu em retirar a promessa, mas fez outra, e foi que, á primeira
suspeita da minha parte, tudo estaria dissolvido entre nós. Acceitei a
ameaça, e jurei que nunca a haveria de cumprir: era a primeira suspeita
e a ultima.




\chapt{LXXVII}{Prazer das dôres velhas.}

Contando aquella crise do meu amor adolescente, sinto uma cousa que não
sei se explico bem, e é que as dôres daquella quadra, a tal ponto se
espiritualisaram com o tempo, que chegam a diluir-se no prazer. Não é
claro isto, mas nem tudo é claro na vida ou nos livros. A verdade é que
sinto um gosto particular em referir tal aborrecimento, quando é certo
que elle me lembra outros que não quizera lembrar por nada.




\chapt{LXXVIII}{Segredo por segredo.}

De resto, naquelle mesmo tempo senti tal ou qual necessidade de contar
a alguem o que se passava entre mim e Capitú. Não referi tudo, mas só
uma parte, e foi Escobar que a recebeu. Quando voltei ao seminario, na
quarta-feira, achei-o inquieto; disse-me que era sua intenção ir ver-me,
se eu me demorasse mais um dia em casa. Perguntava-me com interesse o
que é que tivera, e se estava bom de todo.

--- Estou.

Ouvia, espetando-me os olhos. Tres dias depois disse que me estavam
achando muito distrahido; era bom disfarçar o mais que pudesse. Elle, á
sua parte, tinha razões para andar distrahido tambem, mas buscava ficar
attento.

--- Então parece-lhe....?

--- Sim, você ás vezes está que não ouve nada, olhando para hontem;
disfarce, Santiago.

--- Tenho motivos....

--- Creio; ninguem se distrae á tôa.

--- Escobar....

Hesitei; elle esperou.

--- Que é?

--- Escobar, você é meu amigo, eu sou seu amigo tambem; aqui no
seminario você é a pessoa que mais me tem entrado no coração, e lá fóra,
a não ser a gente da familia, não tenho propriamente um amigo.

--- Se eu disser a mesma cousa, retorquiu elle sorrindo, perde a graça;
parece que estou repetindo. Mas a verdade é que não tenho aqui relações
com ninguem, você é o primeiro e creio que já notaram; mas eu não me
importo com isso.

Commovido, senti que a voz se me precipitava da garganta.

--- Escobar, você é capaz de guardar um segredo?

--- Você que pergunta é porque duvida, e nesse caso....

--- Desculpe, é um modo de falar. Eu sei que é moço serio, e faço de
conta que me confesso a um padre.

--- Se precisa de absolvição, está absolvido.

--- Escobar, eu não posso ser padre. Estou aqui, os meus acreditam, e
esperam; mas eu não posso ser padre.

--- Nem eu, Santiago.

--- Nem você?

Segredo por segredo; tambem ou tenho o proposito de não acabar o curso;
meu desejo é o commercio, mas não diga nada, absolutamente nada; fica
só entre nós. E não é que eu não seja religioso; sou religioso, mas o
commercio é a minha paixão.

--- Só isso?

--- Que mais ha de ser?

Dei duas voltas e sussurrei a primeira palavra da minha confidencia,
tão escassa e surda, que não a ouvi eu mesmo; sei porém que disse «uma
pessoa...» com reticencia. Uma pessoa....? Não foi preciso mais para
que elle entendesse. Uma pessoa devia ser uma moça. Nem cuides que
pasmou de me ver namorado; achou até natural e espetou-me outra vez os
olhos. Então contei-lhe por alto o que podia, mas demoradamente para
ter o gosto de repisar o assumpto. Escobar escutava com interesse; no
fim da nossa conversação, declarou-me que era segredo enterrado em
cemiterio. Deu-me de conselho que não me fizesse padre. Não podia levar
para a egreja um coração que não era do ceu, mas da terra; seria um máu
padre, nem seria padre. Ao contrario, Deus protegia os sinceros; uma
vez que eu só podia servil-o no mundo, ahi me cumpria ficar.

Não calculas o prazer que me deu a confidencia que lhe fiz. Era como
que uma felicidade mais. Aquelle coração moço que me ouvia e me dava
razão, trazia a este mundo um aspecto extraordinario. Era um grande e
bello mundo, a vida uma carreira excellente, e eu nem mais nem menos um
mimoso do ceu; eis a minha sensação. Nota que eu não lhe disse tudo,
nem o melhor; não lhe referi o capitulo do penteado, por exemplo, nem
outros assim; mas o contado era muito.

Que voltámos ao assumpto, não é preciso dizel-o. Voltámos uma e muitas
vezes; eu louvava as qualidades moraes de Capitú, materia adequada á
admiração de um seminarista, a simpleza, a modestia, o amor do trabalho
e os costumes religiosos. Não lhe tocava nas graças physicas, nem elle
me perguntava por ellas; apenas insinuei a conveniencia de a conhecer
de vista.

--- Agora não é possivel, disse-lhe na primeira semana, ao voltar de
casa; Capitú vae passar uns dias com uma amiga da rua dos Invalidos.
Quando ella vier, você irá lá; mas póde ir antes, póde ir sempre;
porque não foi hontem jantar commigo?

--- Você não me convidou.

--- Pois precisa convidar? Lá em casa todos ficaram gostando muito de
você.

--- Tambem eu fiquei gostando de todos, mas se é possivel fazer
distincção, confesso-lhe que sua mãe é uma senhora adoravel.

--- Não é verdade? retorqui cheio de alvoroço.




\chapt{LXXIX}{Vamos ao capitulo.}

Com effeito, gostei de ouvil-o falar assim. Sabes a opinião que eu
tinha de minha mãe. Ainda agora, depois de interromper esta linha para
mirar-lhe o retrato que pende da parede, acho que trazia no rosto
impressa aquella qualidade. Nem de outro modo se explica a opinião de
Escobar, que apenas trocára com ella quatro palavras. Uma só bastava a
penetrar-lhe a essencia intima; sim, sim, minha mãe era adoravel. Por
mais que me estivesse então obrigando a uma carreira que eu não queria,
não podia deixar de sentir que era adoravel, como uma santa.

E por ventura era certo que me obrigava á carreira ecclesiastica? Aqui
chego a um ponto, que esperei viesse depois, tanto que já pesquizava em
que altura lhe daria um capitulo. Realmente, não cabia dizer agora o
que só mais tarde presumi descobrir; mas, uma vez que toquei no ponto,
melhor é acabar com elle. É grave e complexo, delicado e subtil, um
destes em que o autor tem de attender ao filho, e o filho ha de ouvir o
autor, para que um e outro digam a verdade, só a verdade, mas toda a
verdade. Cabe ainda notar que esse ponto é que torna justamente a santa
mais adoravel, sem prejuizo (ao contrario!) da parte humana e terrestre
que havia nella. Basta de prefacio ao capitulo; vamos ao capitulo.




\chapt{LXXX}{Venhamos ao capitulo.}

Venhamos ao capitulo. Minha mãe era temente a Deus; sabes disto, e das
suas praticas religiosas, e da fé pura que as animava. Nem ignoras que
a minha carreira ecclesiastica era objecto de promessa feita quando fui
concebido. Tudo está contado opportunamente. Outrosim, sabes que para o
fim de apertar o vinculo moral da obrigação, confiou os seus projectos
e motivos a parentes e familiares. A promessa, feita com fervor,
acceita com misericordia, foi guardada por ella, com alegria, no mais
intimo do coração. Penso que lhe senti o sabor da felicidade no leite
que me deu a mamar. Meu pae, se vivesse, é possivel que alterasse os
planos, e, como tinha a vocação da politica, é provavel que me
encaminhasse sómente á politica, embora os dous officios não fossem nem
sejam inconciliaveis, e mais de um padre entre na luta dos partidos e
no governo dos homens. Mas meu pae morrera sem saber nada, e ella ficou
deante do contracto, como unica devedora.

Um dos aphorismos de Franklin é que, para quem tem de pagar na paschoa,
a quaresma é curta. A nossa quaresma não foi mais longa que as outras,
e minha mãe, posto me mandasse ensinar latim e doutrina, começou a
adiar a minha entrada no seminario. É o que se chama, commercialmente
falando, reformar uma lettra. O credor era archimillionario, não
dependia daquella quantia para comer, e consentiu nas transferencias de
pagamento, sem sequer aggravar a taxa do juro. Um dia, porém, um dos
familiares que serviam de endossantes da letra, falou da necessidade de
entregar o preço ajustado; está num dos capitulos primeiros. Minha mãe
concordou e recolhi-me a S.~José.

Ora, nesse mesmo capitulo, verteu ella umas lagrimas, que enxugou sem
explicar, e que nenhum dos presentes, nem tio Cosme, nem prima Justina,
nem o aggregado José Dias entendeu absolutamente; eu, que estava atraz
da porta, não as entendi mais que elles. Bem examinadas, apesar da
distancia, vê-se que eram saudades prévias, a magua da separação, --- e
póde ser tambem (é o principio do ponto), póde ser que arrependimento
da promessa. Catholica e devota, sentia muito bem que as promessas se
cumprem; a questão é se é opportuno e adequado fazel-as todas, e
naturalmente inclinava-se á negativa. Porque é que Deus a puniria!
negando-lhe um segundo filho? A vontade divina podia ser a minha vida,
sem necessidade de lh'a dedicar \emph{ab ovo}. Era um raciocinio tardio;
devia ter sido feito no dia em que fui gerado. Em todo caso, era uma
conclusão primeira; mas, não bastando concluir para destruir, tudo se
manteve, e eu fui para o seminario.

Um cochilo da fé teria resolvido a questão a meu favor, mas a fé velava
com os seus grandes olhos ingenuos. Minha mãe faria, se pudesse, uma
troca de promessa, dando parte dos seus annos para conservar-me comsigo,
fóra do clero, casado e pae; é o que presumo, assim como supponho que
rejeitou tal ideia, por lhe parecer uma deslealdade. Assim a senti
sempre na corrente da vida ordinaria.

Succedeu que a minha ausencia foi logo temperada pela assiduidade de
Capitú. Esta começou a fazer-se-lhe necessaria. Pouco a pouco veiu-lhe
a persuasão de que a pequena me faria feliz. Então (é o final do ponto
annunciado), a esperança de que o nosso amor, tornando-me absolutamente
incompativel com o seminario, me levasse a não ficar lá. nem por Deus
nem pelo diabo, esta esperança intima e secreta entrou a invadir o
coração de minha mãe. Neste caso, eu romperia o contracto sem que ella
tivesse culpa. Ella ficava commigo sem acto propriamente seu. Era como
se, tendo confiado a alguem a importancia de uma divida para leval-a ao
credor, o portador guardasse o dinheiro comsigo e não levasse nada. Na
vida commum, o acto de terceiro não desobriga o contractante; mas a
vantagem de contractar com o ceu é que intenção vale dinheiro.

Has de ter tido conflictos parecidos com esse, e, se és religioso,
haverás buscado alguma vez conciliar o ceu e a terra, por modo identico
ou analogo. O ceu e a terra acabam conciliando-se; elles são quasi
irmãos gemeos, tendo o ceu sido feito no segundo dia e a terra no
terceiro. Como Abrahão, minha mãe levou o filho ao monte da Visão, e
mais a lenha para o holocausto, o fogo e o cutello. E atou Isaac em
cima do feixe de lenha, pegou do cutello e levantou-o ao alto. No
momento de fazel-o cair, ouve a voz do anjo que lhe ordena da parte do
Senhor: «Não faças mal algum a teu filho; conheci que temes a Deus.»
Tal seria a esperança secreta de minha mãe.

Capitú era naturalmente o anjo da Escriptura. A verdade é que minha mãe
não podia tel-a agora longe de si. A affeição crescente era manifesta
por actos extraordinarios. Capitú passou a ser a flôr da casa, o sol
das manhãs, o frescor das tardes, a lua das noites; lá vivia horas e
horas, ouvindo, falando e cantando. Minha mãe apalpava-lhe o coração,
revolvia-lhe os olhos, e o meu nome era entre ambas como a senha da
vida futura.




\chapt{LXXXI}{Uma palavra.}

Assim contado o que descobri mais tarde, posso trasladar para aqui uma
palavra de minha mãe. Agora se entenderá que ella me dissesse, no
primeiro sabbado, quando eu cheguei a casa, e soube que Capitú estava
na rua dos Invalidos, com Sinhásinha Gurgel.

--- Porque não vaes vel-a? Não me disseste que o pae de Sancha te
offereceu a casa?

--- Offereceu.

--- Pois então? Mas é se queres. Capitú devia ter voltado hoje para
acabar um trabalho commigo; certamente a amiga pediu-lhe que dormisse
lá.

--- Talvez ficassem namorando, insinuou prima Justina.

Não a matei por não ter á mão ferro nem corda, pistola nem punhal; mas
os olhos que lhe deitei, se pudessem matar, teriam supprido tudo. Um
dos erros da Providencia foi deixar ao homem unicamente os braços e os
dentes, como armas de ataque, e as pernas como armas de fuga ou de
defesa. Os olhos bastavam ao primeiro effeito. Um mover delles faria
parar ou cair um inimigo ou um rival, exerceriam vingança prompta, com
este accressimo que, para desnortear a justiça, os mesmos olhos
matadores seriam olhos piedosos, e correriam a chorar a victima. Prima
Justina escapou aos meus; eu é que não escapei ao effeito da insinuação,
e no domingo, ás onze horas, corri á rua dos Invalidos.

O pae de Sancha recebeu-me em desalinho e triste. A filha estava
enferma; caira na vespera com uma febre, que se ia aggravando. Como
elle queria muito á filha, pensava já vel-a morta, e annunciou-me que
se mataria tambem. Eis aqui um capitulo funebre como um cemiterio,
mortes, suicidios e assassinatos. Eu anciava por um raio de luz clara e
ceu azul. Foi Capitú que os trouxe á porta da sala, vindo dizer ao pae
de Sancha que a filha o mandára chamar.

--- Está peor? perguntou Gurgel assustado.

--- Não, senhor, mas quer falar-lhe.

--- Fique aqui um bocadinho, disse-lhe elle; e voltando-se para mim: É
a enfermeira de Sancha, que não quer outra; eu já volto.

Capitú trazia signaes de fadiga e commoção, mas tão depressa me viu,
ficou toda outra, a mocinha de sempre, fresca e lepida, não menos que
espantada. Custou-lhe a crer que fosse eu. Falou-me, quiz que lhe
falasse, e effectivamente conversámos por alguns minutos, mas tão baixo
e abafado que nem as paredes ouviram, ellas que têm ouvidos. De resto,
se ellas ouviram algo, nada entenderam, nem ellas nem os moveis, que
estavam tão tristes como o dono.




\chapt{LXXXII}{O canapé.}

Delles, só o canapé pareceu haver comprehendido a nossa situação moral,
visto que nos offereceu os serviços da sua palhinha, com tal
insistencia que os acceitámos e nos sentámos. Data d'ahi a opinião
particular que tenho do canapé. Elle faz alliar a intimidade e o decóro,
e mostra a casa toda sem sair da sala. Dous homens sentados nelle pódem
debater o destino de um imperio, e duas mulheres a graça de um vestido;
mas, um homem e uma mulher só por aberração das leis naturaes dirão
outra cousa que não seja de si mesmos. Foi o que fizemos, Capitú e eu.
Vagamente lembra-me que lhe perguntei se a demora alli seria grande...

--- Não sei; a febre parece que cede... mas...

Tambem me lembra, vagamente, que lhe expliquei a minha visita á rua dos
Invalidos, com a pura verdade, isto é, a conselho de minha mãe

--- Conselho della? murmurou Capitú.

E accrescentou com os olhos, que brilhavam extraordinariamente:

--- Seremos felizes!

Repeti estas palavras, com os simples dedos, apertando os della. O
canapé, quer visse ou não, continuou a prestar os seus serviços ás
nossas mãos presas e ás nossas cabeças juntas ou quasi juntas.




\chapt{LXXXIII}{O retrato.}

Gurgel tornou á sala e disse a Capitú que a filha chamava por ella. Eu
levantei-me depressa e não achei compostura; mettia os olhos pelas
cadeiras. Ao contrario, Capitú ergueu-se naturalmente e perguntou-lhe
se a febre augmentára.

--- Não, disse elle.

Nem sobresalto nem nada, nenhum ar de mysterio da parte de Capitú;
voltou-se para mim, e disse-me que levasse lembranças a minha mãe e a
prima Justina, e que até breve; estendeu-me a mão e enfiou pelo
corredor. Todas as minhas invejas foram com ella. Como era possivel que
Capitú se governasse tão facilmente e eu não?

--- Está uma moça, observou Gurgel olhando tambem para ella.

Murmurei que sim. Na verdade, Capitú ia crescendo ás carreiras, as
fórmas arredondavam-se e avigoravam-se com grande intensidade;
moralmente, a mesma cousa. Era mulher por dentro e por fóra, mulher á
direita e á esquerda, mulher por todos os lados, e desde os pés até á
cabeça. Esse arvorecer era mais apressado, agora que eu a via de dias a
dias; de cada vez que vinha a casa achava-a mais alta e mais cheia; os
olhos pareciam ter outra reflexão, e a bocca outro imperio. Gurgel,
voltando-se para a parede da sala, onde pendia um retrato de moça,
perguntou-me se Capitú era parecida com o retrato.

Um dos costumes da minha vida foi sempre concordar com a opinião
provavel do meu interlocutor, desde que a materia não me aggrava,
aborrece ou impõe. Antes de examinar se effectivamente Capitú era
parecida com o retrato, fui respondendo que sim. Então elle disse que
era o retrato da mulher delle, e que as pessoas que a conheceram diziam
a mesma cousa. Tambem achava que as feições eram semelhantes, a testa
principalmente e os olhos. Quanto ao genio, era um; pareciam irmãs.

--- Finalmente, até a amizade que ella tem a Sanchinha; a mãe não era
mais amiga della... Na vida ha dessas semelhanças assim exquisitas.




\chapt{LXXXIV}{Chamado.}

No saguão e na rua, examinei ainda commigo se effectivamente elle teria
desconfiado alguma cousa, mas achei que não e puz-me a andar. Ia
satisfeito com a visita, com a alegria de Capitú, com os louvores de
Gurgel, a tal ponto que não acudi logo a uma voz que me chamava:

--- Sr.~Bentinho! Sr.~Bentinho!

Só depois que a voz cresceu e o dono della chegou á porta é que eu
parei e vi o que era e onde estava. Estava já na rua de Matacavallos. A
casa era uma loja de louça, escassa e pobre; tinha as portas
meio-cerradas, e a pessoa que me chamava era um pobre homem grisalho e
mal vestido.

--- Sr.~Bentinho, disse-me elle chorando; sabe que meu filho Manduca
morreu?

--- Morreu?

--- Morreu ha meia hora, enterra-se amanhã. Mandei recado a sua mãe
agora mesmo, e ella fez-me a caridade de mandar algumas flôres para
botar no caixão. Meu pobre filho! Tinha de morrer, e foi bom que
morresse, coitado, mas apesar de tudo sempre doe. Que vida que elle
teve!... Um dia destes ainda se lembrou do senhor, e perguntou se
estava no seminario... Quer vel-o? Entre, ande vel-o...

Custa-me dizer isto, mas antes peque por excessivo que por diminuto.
Quiz responder que não, que não queria ver o Manduca, e fiz até um
gesto para fugir. Não era medo; n'outra occasião póde ser até que
entrasse com facilidade e curiosidade, mas agora ia tão contente! Ver
um defuncto ao voltar de uma namorada... Ha cousas que se não ajustam
nem combinam. A simples noticia era já uma turvação grande. As minhas
ideias de ouro perderam todas a côr e o metal para se trocarem em cinza
escura e feia, e não distingui mais nada. Penso que cheguei a dizer que
tinha pressa, mas provavelmente não falei por palavras claras, nem
sequer humanas, porque elle, encostado ao portal, abria-me espaço com o
gesto, e eu, sem alma para entrar nem fugir, deixei ao corpo fazer o
que pudesse, e o corpo acabou entrando.

Não culpo ao homem; para elle, a cousa mais importante do momento era o
filho. Mas tambem não me culpem a mim; para mim, a cousa mais
importante era Capitú. O mal foi que os dous casos se conjugassem na
mesma tarde, e que a morte de um viesse metter o nariz na vida do outro.
Eis o mal todo. Se eu passasse antes ou depois, ou se o Manduca
esperasse algumas horas para morrer, nenhuma nota aborrecida viria
interromper as melodias da minha alma. Porque morrer exactamente ha
meia hora? Toda hora é apropriada ao obito; morre-se muito bem ás seis
ou sete horas da tarde.




\chapt{LXXXV}{O defuncto.}

Tal foi o sentimento confuso com que entrei na loja de louça. A loja
era escura, e o interior da casa menos luz tinha, agora que as janellas
da área estavam cerradas. A um canto da sala de jantar vi a mãe
chorando; á porta da alcova duas creanças olhavam espantadas para
dentro, com o dedo na bocca. O cadaver jazia na cama; a cama...

Suspendamos a penna e vamos á janella espairecer a memoria. Realmente,
o quadro era feio, já pela morte, já pelo defuncto, que era horrivel...
Isto aqui, sim, é outra cousa. Tudo o que vejo lá fóra respira vida, a
cabra que rumina ao pé de uma carroça, a gallinha que marisca no chão
da rua, o trem da Estrada Central que bufa, assobia, fumega e passa, a
palmeira que investe para o ceu, e finalmente aquella torre de egreja,
apesar de não ter musculos nem folhagem. Um rapaz, que alli no becco
empina um papagaio de papel, não morreu nem morre, posto tambem se
chame Manduca.

Verdade é que o outro Manduca era mais velho que este, pouco mais velho.
Teria dezoito ou dezenove annos, mas tanto lhe darias quinze como vinte
e dous, a cara não permittia trazer a edade á vista, antes a escondia
nas dobras da... Vá, diga-se tudo; é morto, os seus parentes são mortos,
se existe algum não é em tal evidencia que se vexe ou dôa. Diga-se tudo;
Manduca padecia de uma cruel enfermidade, nada menos que a lepra. Vivo
era feio; morto pareceu-me horrivel. Quando eu vi, estendido na cama, o
triste corpo daquelle meu visinho, fiquei apavorado e desviei os olhos.
Não sei que mão occulta me compelliu a olhar outra vez, ainda que de
fugida; cedi, olhei, tornei a olhar, até que recuei de todo e sai do
quarto.

--- Padeceu muito! suspirou o pae.

--- Coitado de Manduca! soluçava a mãe.

Eu cuidei de sair, disse que era esperado em casa, e despedi-me. O pae
perguntou-me se lhe faria o favor de ir ao enterro; respondi com a
verdade, que não sabia, faria o que minha mãe quizesse. E rapido saí,
atravessei a loja, e saltei á rua.




\chapt{LXXXVI}{Amai, rapazes!}

Era tão perto, que antes de tres minutos me achei em casa. Parei no
corredor, a tomar folego; buscava esquecer o defuncto, pallido e
disforme, e o mais que não disse para não dar a estas paginas um
aspecto repugnante, mas podes imaginal-o. Tudo arredei da vista, em
poucos segundos; bastou-me pensar na outra casa, e mais na vida e na
cara fresca e lepida de Capitú... Amai, rapazes! e, principalmente,
amai moças lindas e graciosas; ellas dão remedio ao mal, aroma ao
infecto, trocam a morte pela vida... Amai, rapazes!




\chapt{LXXXVII}{A sege.}

Chegára ao ultimo degrau, e uma ideia me entrou no cerebro, como se
estivesse a esperar por mim, entre as grades da cancella. Ouvi de
memoria as palavras do pae de Manduca pedindo-me que fosse ao enterro
no dia seguinte. Parei no degrau. Reflecti um instante; sim, podia ir
ao enterro, pediria a minha mãe que me alugasse um carro...

Não cuides que era o desejo de andar de carro, por mais que tivesse o
gosto da conducção. Em pequeno, lembra-me que ia assim muita vez com
minha mãe ás visitas de amizade ou de cerimonia, e á missa, se chovia.
Era uma velha sege de meu pae, que ella conservou o mais que poude. O
cocheiro, que era nosso escravo, tão velho como a sege, quando me via á
porta, vestido, esperando minha mãe, dizia-me rindo:

--- Pae João vae levar nhonhô!

E era raro que eu não lhe recommendasse:

--- João, demora muito as bestas; vae devagar.

--- Nhá Gloria não gosta.

--- Mas demora!

Fica entendido que era para saborear a sege, não pela vaidade, porque
ella não permittia ver as pessoas que iam dentro. Era uma velha sege
obsoleta, de duas rodas, estreita e curta, com duas cortinas de couro
na frente, que corriam para os lados quando era preciso entrar ou sair.
Cada cortina tinha um oculo de vidro, por onde eu gostava de espiar
para fóra,

--- Senta, Bentinho!

--- Deixa espiar, mamãe!

E em pé, quando era mais pequeno, mettia a cara no vidro, e via o
cocheiro com as suas grandes botas, escanchado na mula da esquerda, e
segurando a redea da outra; na mão levava o chicote grosso e comprido.
Tudo incommodo, as botas, o chicote e as mulas, mas elle gostava e eu
tambem. Dos lados via passar as casas, lojas ou não, abertas ou
fechadas, com gente ou sem ella, e na rua as pessoas que iam e vinham,
ou atravessavam deante da sege, com grandes pernadas ou passos miudos.
Quando havia impedimento de gente ou de animaes, a sege parava, e então
o espectaculo era particularmente interessante; as pessoas paradas na
calçada ou á porta das casas, olhavam para a sege e falavam entre si,
naturalmente sobre quem iria dentro. Quando fui crescendo em edade
imaginei que adivinhavam e diziam: «É aquella senhora da rua de
Matacavallos, que tem um filho, Bentinho...»

A sege ia tanto com a vida recondita de minha mãe, que quando já não
havia nenhuma outra, continuámos a andar nella, e era conhecida na rua
e no bairro pela «sege antiga». Afinal minha mãe consentiu em deixal-a,
sem a vender logo; só abriu mão della porque as despezas de cocheira a
obrigaram a isso. A razão de a guardar inutil foi exclusivamente
sentimental; era a lembrança do marido. Tudo o que vinha de meu pae era
conservado como um pedaço delle, um resto da pessoa, a mesma alma
integral e pura. Mas o uso, esse era filho tambem do carrancismo que
ella confessava aos amigos. Minha mãe exprimia bem a fidelidade aos
velhos habitos, velhas maneiras, velhas ideias, velhas modas. Tinha o
seu museo de reliquias, pentes desusados, um trecho de mantilha, umas
moedas de cobre datadas de 1824 e 1825, e, para que tudo fosse antigo,
a si mesma se queria fazer velha; mas já deixei dito que, neste ponto,
não alcançava tudo o que queria.




\chapt{LXXXVIII}{Um pretexto honesto.}

Não, a ideia de ir ao enterro não vinha da lembrança do carro e suas
doçuras. A origem era outra: era porque, acompanhando o enterro no dia
seguinte, não iria ao seminario, e podia fazer outra visita a Capitú,
um tanto mais demorada. Eis ahi o que era. A lembrança do carro podia
vir accessoriamente depois, mas a principal e immediata foi aquella.
Voltaria á rua dos Invalidos, a pretexto de saber de Sinhásinha Gurgel.
Contava que tudo me saisse como naquelle dia, Gurgel afflicto, Capitú
commigo no canapé, as mãos presas, o penteado...

--- Vou pedir a mamãe.

Abri a cancella. Antes de transpôl-a, assim como ouvira da memoria a
palavra do pae do morto, ouvi agora a da mãe, e repeti a meia voz:

--- Coitado de Manduca!




\chapt{LXXXIX}{A recusa.}

Minha mãe ficou perplexa quando lhe pedi para ir ao enterro.

--- Perder um dia de seminario...

Fiz-lhe notar a amizade que o Manduca me tinha, e depois era gente
pobre... Tudo o que me lembrou dizer, disse. Prima Justina opinou pela
negativa.

--- Você acha que não deve ir? perguntou-lhe minha mãe.

--- Acho que não. Que amizade é essa que eu nunca vi?

Prima Justina venceu. Quando referi o caso ao aggregado, este sorriu, e
disse-me que o motivo escondido da prima era provavelmente não dar ao
enterro «o lustre da minha pessoa.» Fosse o que fosse, fiquei amuado;
no dia seguinte, pensando no motivo, não me desagradou; mais tarde
achei-lhe um sabor particular.




\chapt{XC}{A polemica.}

No dia seguinte, passei pela casa do defuncto, sem entrar nem parar, ---
ou, se parei, foi só um instante, ainda mais breve que este em que
vol-o digo. Se me não engano, andei até mais depressa, receiando que me
chamassem como na vespera. Uma vez que não ia ao enterro, antes longe
que proximo. Fui andando e pensando no pobre diabo.

Não eramos amigos, nem nos conheciamos de muito. Intimidade, que
intimidade podia haver entre a doença delle e a minha saude? Tivemos
relações breves e distantes. Fui pensando nellas, recordando algumas.
Reduziam-se todas a uma polemica, entre nós, dous annos antes, a
proposito... Mal podeis crer a que proposito foi. Foi a guerra da
Criméa.

Manduca vivia no interior da casa, deitado na cama, lendo por desfastio.
Ao domingo, sobre a tarde, o pae enfiava-lhe uma camisola escura, e
trazia-o para o fundo da loja, d'onde elle espiava um palmo da rua e a
gente que passava. Era todo o seu recreio. Foi alli que o vi uma vez, e
não fiquei pouco espantado; a doença ia-lhe comendo parte das carnes,
os dedos queriam apertar-se; o aspecto não attrahia, de certo. Tinha eu
de treze para quatorze annos. Da segunda vez que o vi alli, como
falassemos da guerra da Criméa, que então ardia e andava nos jornaes,
Manduca disse que os alliados haviam de vencer, e eu respondi que não.

--- Pois veremos, tornou elle. Só se a justiça não vencer neste mundo,
o que é impossivel, e a justiça está com os alliados.

--- Não, senhor, a razão é dos russos.

Naturalmente, iamos com o que nos diziam os jornaes da cidade,
transcrevendo os de fóra, mas póde ser tambem que cada um de nós
tivesse a opinião do seu temperamento. Fui sempre um tanto moscovita
nas minhas ideias. Defendi o direito da Russia, Manduca fez o mesmo ao
dos alliados, e o terceiro domingo em que entrei na loja tocámos outra
vez no assumpto. Então Manduca propoz que trocassemos a argumentação
por escripto, e na terça ou quarta-feira recebi duas folhas de papel
contendo a exposição e defesa do direito dos alliados, e da integridade
da Turquia, concluindo por esta phrase prophetica:

«Os russos não hão de entrar em Constantinopla!»

Li-a e metti-me a refutal-a. Não me recorda um só dos argumentos que
empreguei, nem talvez interesse conhecel-os, agora que o seculo está a
expirar; mas a ideia que me ficou delles é que eram irrespondiveis. Fui
eu mesmo levar-lhe o meu papel. Fizeram-me entrar na alcova, onde elle
jazia estirado na cama, mal coberto por uma colcha de retalhos. Ou
gosto da polemica ou qualquer outra causa que não alcanço, não me
deixou sentir toda a repugnancia que saía da cama e do doente, e o
prazer com que lhe dei o papel foi sincero. Manduca, pela sua parte,
por mais nojosa que tivesse então a cara, o sorriso que a accendou
dissimulou o mal physico. A convicção com que me recebeu o papel e
disse que ia ler e responderia é que não tem palavras nossas nem
alheias que a digam de todo e com verdade; não era exaltada, não era
ruidosa, não tinha gestos, nem a molestia os permittiria, era simples,
grande, profunda, um goso infinito de victoria, antes de saber os meus
argumentos. Tinha já papel, penna e tinta ao pé da cama. Dias depois
recebi a réplica; não me lembra se trazia cousas novas ou não; o calor
é que crescia, e o final era o mesmo:

«Os russos não hão de entrar em Constantinopla!»

Trepliquei, e d'ahi continuou por algum tempo uma polemica ardente, em
que nenhum de nós cedia, defendendo cada um os seus clientes com força
e brio. Manduca era mais longo e prompto que eu. Naturalmente a mim
sobravam mil cousas que distrahiam, o estudo, os recreios, a familia, e
a propria saude, que me chamava a outros exercicios. Manduca, salvo o
palmo de rua ao domingo de tarde, tinha só esta guerra, assumpto da
cidade e do mundo, mas que ninguem ia tratar com elle. O acaso dera-lhe
em mim um adversario; elle, que tinha gosto á escripta, deitou-se ao
debate, como a um remedio novo e radical. As horas tristes e compridas
eram agora breves e alegres; os olhos desapprenderam de chorar, se por
ventura choravam antes. Senti esta mudança delle nas proprias maneiras
do pae e da mãe.

--- Não imagina como elle anda agora, depois que o senhor lhe escreve
aquelles papeis, dizia-me o dono da loja, uma vez, á porta da rua. Fala
e ri muito. Logo que eu mando o caixeiro levar-lhe os papeis delle,
entra a indagar da resposta, e se demorará muito, e que pergunte ao
moleque, quando passar. Emquanto espera, relê jornaes e toma notas. Mas
tambem, apenas recebe os seus papeis, atira-se a lel-os, e começa logo
a escrever a resposta. Ha occasiões em que não come ou come mal; tanto
que eu queria pedir-lhe uma cousa, é que não os mande á hora do almoço
ou de jantar...

Fui eu que cancei primeiro. Comecei a demorar as respostas, até que não
dei mais nenhuma; elle ainda teimou duas ou tres vezes depois do meu
silencio, mas não recebendo contestação alguma, por fadiga tambem ou
por não aborrecer, acabou de todo com as suas apologias. A ultima, como
a primeira, como todas, affinnava a mesma predicção eterna:

«Os russos não hão de entrar em Constantinopla!»

Não entraram, effectivamente, nem então, nem depois, nem até agora. Mas
a predicção será eterna? Não chegarão a entrar algum dia? Problema
difficil. O proprio Manduca, para entrar na sepultura, gastou tres
annos de dissolução, tão certo é que a natureza, como a historia, não
se faz brincando. A vida delle resistiu como a Turquia; se afinal cedeu
foi porque lhe faltou uma alliança como a anglo-franceza, não se
podendo considerar tal o simples accordo da medicina e da pharmacia.
Morreu afinal, como os Estados morrem; no nosso caso particular, a
questão é saber, não se a Turquia morrerá, porque a morte não poupa a
ninguem, mas se os russos entrarão algum dia em Constantinopla; essa
era a questão para o meu visinho leproso, debaixo da triste, rota e
infecta colcha de retalhos...




\chapt{XCI}{Achado que consola.}

É claro que as reflexões que ahi deixo não foram feitas então, a
caminho do seminario, mas agora no gabinete do Engenho Novo. Então, não
fiz propriamente nenhuma, a não ser esta: que servi de allivio um dia
ao meu visinho Manduca. Hoje, pensando melhor, acho que não só servi de
allivio, mas até lhe dei felicidade. E o achado consola-me; já agora
não esquecerei mais que dei dous ou tres mezes de felicidade a um pobre
diabo, fazendo-lhe esquecer o mal e o resto. É alguma cousa na
liquidação da minha vida. Se ha no outro mundo tal ou qual premio para
as virtudes sem intenção, esta pagará um ou dous dos meus muitos
peccados. Quanto ao Manduca, não creio que fosse peccado opinar contra
a Russia, mas, se era, elle estará purgando ha quarenta annos a
felicidade que alcançou em dous ou tres mezes, --- donde concluirá (já
tarde) que era ainda melhor haver gemido somente, sem opinar cousa
nenhuma.




\chapt{XCII}{O diabo não é tão feio como se pinta.}

Manduca enterrou-se sem mim. A muitos outros aconteceu a mesma cousa,
sem que eu sentisse nada, mas este caso affligiu-me particularmente
pela razão já dita. Tambem senti não sei que melancolia ao recordar a
primeira polemica da vida, o gosto com que elle recebia os meus papeis
e se propunha a refutal-os, não contando o gosto do carro... Mas o
tempo apagou depressa todas essas saudades e resurreições. Nem foi só
elle; duas pessoas vieram ajudal-o, Capitú, cuja imagem dormiu commigo
na mesma noite, e outra que direi no capitulo que vem. O resto deste
capitulo é só para pedir que, se alguem tiver de ler o meu livro com
alguma attenção mais da que lhe exigir o preço do exemplar, não deixe
de concluir que o diabo não é tão feio como se pinta. Quero dizer...

Quero dizer que o meu visinho de Matacavallos, temperando o mal com a
opinião anti-russa, dava á podridão das suas carnes um reflexo
espiritual que as consolava. Ha consolações maiores, de certo, e uma
das mais excedentes é não padecer esse nem outro mal algum, mas a
natureza é tão divina que se diverte com taes contrastes, e aos mais
nojentos ou mais afflictos acena com uma flôr. E talvez saia assim a
flôr mais bella; o meu jardineiro affirma que as violetas, para terem
um cheiro superior, hão mister de estrume de porco. Não examinei, mas
deve ser verdade.




\chapt{XCIII}{Um amigo por um defuncto.}

Quanto á outra pessoa que teve a força obliterativa, foi o meu collega
Escobar que no domingo, antes do meio dia, veiu ter a Matacavallos. Um
amigo suppria assim um defuncto, e tal amigo que durante cerca de cinco
minutos esteve com a minha mão entre as suas, como se me não visse
desde longos mezes.

--- Você janta commigo, Escobar?

--- Vim para isto mesmo.

Minha mãe agradeceu-lhe a amizade que me tinha, e elle respondeu com
muita polidez, ainda que um tanto atado, como se carecesse de palavra
prompta. Já viste que não era assim, a palavra obedecia-lhe, mas o
homem não é sempre o mesmo em todos os instantes. O que elle disse, em
resumo, foi que me estimava pelas minhas boas qualidades e aprimorada
educação; no seminario todos me queriam bem, nem podia deixar de ser
assim, accrescentou. Insistia na educação, nos bons exemplos, «na doce
e rara mãe» que o ceu me deu... Tudo isso com a voz engasgada e tremula.
Todos ficaram gostando delle. Eu estava tão contente como se Escobar
fosse invenção minha. José Dias desfechou-lhe dous superlativos, tio
Cosme dous capotes, e prima Justina não achou tacha que lhe pôr; depois,
sim, no segundo ou terceiro domingo, veiu ella confessar-nos que o meu
amigo Escobar era um tanto mettidiço e tinha uns olhos policiaes a que
não escapava nada.

--- Sao os olhos delle, expliquei.

--- Nem eu digo que sejam de outro.

--- Sao olhos reflectidos, opinou tio Cosme.

--- Seguramente, acudiu José Dias, entretanto, póde ser que a senhora
D.~Justina tenha alguma razão. A verdade é que uma cousa não impede
outra, e a reflexão casa-se muito bem á curiosidade natural. Parece
curioso, isso parece, mas...

--- A mim parece-me um mocinho muito serio, disse minha mãe.

--- Justamente! confirmou José Dias para não discordar della.

Quando eu referi a Escobar aquella opinião de minha mãe (sem lhe contar
as outras naturalmente) vi que o prazer delle foi extraordinario.
Agradeceu, dizendo que eram bondados, e elogiou tambem minha mãe,
senhora grave, distincta e moça, muito moça... Que edade teria?

--- Já fez quarenta, respondi eu vagamente por vaidade.

--- Não é possivel! exclamou Escobar. Quarenta annos! Nem parece trinta;
está muito moça e bonita. Tambem a alguem ha de você sair, com esses
olhos que Deus lhe deu; são exactamente os della. Enviuvou ha muitos
annos?

Contei-lhe o que sabia da vida della e de meu pae. Escobar escutava
attento, perguntando mais, pedindo explicação das passagens omissas ou
só escuras. Quando eu lhe disse que não me lembrava nada da roça, tão
pequenino viera, contou-me duas ou tres reminiscencias dos seus tres
annos de edade, ainda agora frescas. E não contavamos voltar á roça?

--- Não, agora não voltamos mais. Olhe, aquelle preto que alli vae
passando, é de lá. Thomaz!

--- Nhonhô!

Estavamos na horta da minha casa, e o preto andava em serviço;
chegou-se a nós e esperou.

--- É casado, disse eu para Escobar. Maria onde está?

--- Está soccando milho, sim, senhor.

--- Você ainda se lembra da roça, Thomaz?

--- Alembra, sim, senhor.

--- Bem, vá-se embora.

Mostrei outro, mais outro, e ainda outro, este Pedro, aquelle José,
aquelle outro Damiao...

--- Todas as lettras do alphabeto, interrompeu Escoltar.

Com effeito, eram differentes lettras, e só então reparei nisto;
apontei ainda outros escravos, alguns com os mesmos nomes,
distinguindo-se por um appellido, ou da pessoa, como João Fulo, Maria
Gorda, ou de nação como Pedro Benguella, Antonio Moçambique...

--- E estão todos aqui em casa? perguntou elle.

--- Não, alguns andam ganhando na rua, outros estão alugados. Não era
possivel ter todos em casa. Nem são todos os da roça; a maior parte
ficou lá.

--- O que me admira é que D.~Gloria se acostumasse logo a viver em casa
da cidade, onde tudo é apertado; a de lá é naturalmente grande.

--- Não sei, mas parece. Mamãe tem outras casas maiores que esta; diz
porém que ha de morrer aqui. As outras estão alugadas. Algumas são bem
grandes, como a da rua da Quitanda...

--- Conheço essa; é bonita.

--- Tem tambem no Rio Comprido, na Cidade-Nova, uma no Cattete...

--- Não lhe hão de faltar tectos, concluiu elle sorrindo com sympathia.

Caminhámos para o fundo. Passámos o lavadouro; elle parou um instante
ahi, mirando a pedra de bater roupa e fazendo reflexões a proposito do
asseio; depois continuámos. Quaes foram as reflexões não me lembra
agora; lembra-me só que as achei engenhosas, e ri, elle riu tambem. A
minha alegria accordava a delle, e o ceu estava tão azul, e o ar tão
claro, que a natureza parecia rir tambem comnosco. São assim as boas
horas deste mundo. Escobar confessou esse accordo do interno com o
externo, por palavras tão finas e altas que me commoveram; depois, a
proposito da belleza moral que se ajusta á physica, tornou a falar de
minha mãe, «um anjo dobrado», disse elle.




\chapt{XCIV}{Ideias arithmeticas.}

Não digo o mais, que foi muito. Nem elle sabia só elogiar e pensar,
sabia tambem calcular depressa e bem. Era das cabeças arithmeticas de
Holmes (\mth{2+2 ¤ 4}). Não se imagina a facilidade com que elle
sommava ou multiplicava de cór. A divisão, que foi sempre uma das
operações difficeis para mim, era para elle como nada: cerrava um pouco
os olhos, voltados para cima, e sussurrava as denominações dos
algarismos: estava prompto. Isto com sete, treze, vinte algarismos. A
vocação era tal que o fazia amar os proprios signaes das sommas, e
tinha esta opinião que os algarismos, sendo poucos, eram muito mais
conceituosos que as vinte e cinco letras do alphabeto.

--- Ha lettras inuteis e lettras dispensaveis, dizia elle. Que serviço
diverso prestam o \emph{d} e o \emph{t}? Tem quasi o mesmo som. O mesmo
digo do \emph{b} e do \emph{p}, o mesmo do \emph{s}, do \emph{c} e do
\emph{z}, o mesmo do \emph{k} e do \emph{g}, etc.~. São trapalhices
calligraphicas. Veja os algarismos: não ha dous que façam o mesmo
officio; 4 é 4, e 7 é 7. E admire a belleza com que um 4 e um 7 formam
esta cousa que se exprime por 11. Agora dobre 11 e terá 22; multiplique
por egual numero, dá 484, e assim por deante. Mas onde a perfeição é
maior é no emprego do zero. O valor do zero é, em si mesmo, nada; mas o
officio deste signal negativo é justamente augmentar. Um 5 sósinho é um
5; ponha-lhe dous 00, é 500. Assim, o que não vale nada faz valer muito,
cousa que não fazem as letras dobradas, pois eu tanto \emph{approvo}
com um \emph{p} como com dous \emph{pp}.

Criado na orthographia de meus paes, custava-me a ouvir taes
blasphemias, mas não ousava refutal-o. Comtudo, um dia, proferi algumas
palavras de defesa, ao que elle respondeu que era um preconceito, e
accrescentou que as ideias arithmeticas podiam ir ao infinito, com a
vantagem que eram mais faceis de menear. Assim que, eu não era capaz de
resolver de momento um problema philosophico ou linguistico, ao passo
que elle podia sommar, em tres minutos, quaesquer quantias.

--- Por exemplo... dê-me um caso, dê-me uma porção de numeros que eu
não saiba nem possa saber antes... olhe, dê-me o numero das casas de
sua mãe e os alugueis de cada uma, e se eu não disser a somma total em
dous, em um minuto enforque-me!

Acceitei a aposta, e na semana seguinte levei-lhe escriptos em um papel
os algarismos das casas e dos alugueis. Escobar pegou no papel,
passou-os pelos olhos afim de os decorar, e emquanto eu fitava o
relogio, elle erguia as pupillas, cerrava as palpebras, e sussurrava...
Oh! o vento não é mais rapido! Foi dito e feito; em meio minuto
bradava-me:

--- Dá tudo 1¦070$000 mensaes.

Fiquei pasmado. Considera que eram não menos de nove casas, e que os
alugueis variavam de uma para outra, indo de 70$000 a 180$000. Pois
tudo isto em que eu gastaria tres ou quatro minutos, --- e havia de ser
no papel, --- fel-o Escobar de cór, brincando. Olhava-me triumphalmente,
e perguntava se não era exacto. Eu, só por lhe mostrar que sim, tirei
do bolso o papelinho que levava com a somma total, e mostrei-lh'o; era
aquillo mesmo, nem um erro: 1¦070$000.

--- Isto prova que as ideias arithmeticas são mais simples, e portanto
mais naturaes. A natureza é simples. A arte é atrapalhada.

Fiquei tão enthusiasmado com a facilidade mental do meu amigo, que não
pude deixar de abraçal-o. Era no pateo; outros seminaristas notaram a
nossa effusao; um padre que estava com elles não gostou.

--- A modestia, disse-nos, não consente esses gestos excessivos; pódem
estimar-se com moderação.

Escobar observou-me que os outros e o padre falavam de inveja e
propoz-me viver separados. Interrompi-o dizendo que não; se era inveja,
tanto peor para elles.

--- Quebremos-lhe a castanha na bocca!

--- Mas...

--- Fiquemos ainda mais amigos que até aqui.

Escobar apertou-me a mão ás escondidas, com tal força que ainda me doem
os dedos. É illusão, de certo, se não é effeito das longas horas que
tenho estado a escrever sem parar. Suspendamos a penna por alguns
instantes...




\chapt{XCV}{O papa.}

A amizade de Escobar fez-se grande e fecunda; a de José Dias não lhe
quiz ficar atraz. Na primeira semana disse-me este em casa:

--- Agora é certo que você vae sair já do seminario.

--- Como?

--- Espere até amanhã. Vou jogar com elles que me chamaram; amanhã, lá
no quarto, no quintal, ou na rua, indo á missa, conto-lhe o que ha. A
ideia é tão santa que não está mal no santuario. Amanhã, Bentinho.

--- Mas é cousa certa?

--- Certissima!

No dia seguinte revelou-me o mysterio. Ao primeiro aspecto, confesso
que fiquei deslumbrado. Trazia uma nota de grandeza e de
espiritualidade que falava aos meus olhos de seminarista. Era não menos
que isto. Minha mãe, ao parecer delle, estava arrependida do que fizera,
e desejaria ver-me cá fóra, mas entendia que o vinculo moral da
promessa a prendia indissoluvelmente. Cumpria rompel-o, e para tanto
valia a Escriptura, com o poder de desligar dado aos apostolos. Assim
que, elle e eu iriamos a Roma pedir a absolvição do papa... Que me
parecia?

--- Parece-me bem, respondi depois de alguns segundos de reflexão. Póde
ser um bom remedio.

--- É o unico, Bentinho, é o unico! Vou já hoje conversar com D.~Gloria,
exponho-lhe tudo, e podemos partir daqui a dous mezes, ou antes...

--- Melhor é falar domingo que vem; deixe-me pensar primeiro...

--- Oh! Bentinho! interrompeu o aggregado. Pensar em que? Você o que
quer... Digo? Não se amofina com o seu velho? Você o que quer é
consultar a uma pessoa.

Rigorosamente, eram duas pessoas, Capitú e Escobar, mas eu neguei a pés
juntos que quizesse consultar ninguem. E que pessoa, o reitor? Não era
natural que lhe confiasse tal assumpto. Não, nem reitor, nem professor,
nem ninguem; era só o tempo de reflectir, uma semana, no domingo daria
a resposta, e desde já lhe dizia que a ideia não me parecia má.

--- Não?

--- Não.

--- Pois resolvamos hoje mesmo.

--- Não se vae a Roma brincando.

--- Quem tem bocca vae a Roma, e bocca no nosso caso é a moeda. Ora,
você póde muito bem gastar comsigo... Commigo, não; um par de calças,
tres camisas e o pão diario, não preciso mais. Serei como S.~Paulo, que
vivia do officio emquanto ia prégando a palavra divina. Pois eu vou,
não prégal-a, mas buscal-a. Levaremos cartas do internuncio e do bispo,
cartas para o nosso ministro, cartas de capuchinhos... Bem sei a
objecção que se póde oppôr a esta ideia; dirão que é dado pedir a
dispensa cá de longe; mas, alem do mais que não digo, basta reflectir
que é muito mais solemne e bonito ver entrar no Vaticano, e prostrar-se
aos pés do papa o proprio objecto do favor, o levita promettido, que
vae pedir para sua mãe ternissima e dulcissima a dispensa de Deus.
Considere o quadro, você beijando o pé ao principe dos apostolos; Sua
Santidade, com o sorriso evangelico, inclina-se, interroga, ouve,
absolve e abençoa. Os anjos o contemplam, a Virgem recommenda ao
santissimo filho que todos os seus desejos, Bentinho, sejam satisfeitos,
e que o que você amar na terra seja egualmente amado no ceu...

Não digo mais, porque é preciso acabar o capitulo, e elle não acabou o
discurso. Falou a todos os meus sentimentos de catholico e de namorado.
Vi a alma alliviada de minha mãe, vi a alma feliz de Capitú, ambas em
casa, e eu com ellas, e elle comnosco, tudo mediante uma pequena viagem
a Roma, que eu só geographicamente sabia onde ficava; espiritualmente,
tambem, mas a distancia que estaria da vontade de Capitú é que não. Eis
o ponto essencial. Se Capitú achasse longe, não iria; mas era preciso
ouvil-a, e assim tambem a Escobar, que me daria um bom conselho.




\chapt{XCVI}{Um substituto.}

Expuz a Capitú a ideia de José Dias. Ouviu-me attentamente, e acabou
triste.

--- Você indo, disse ella, esquece-me inteiramente.

--- Nunca!

--- Esquece. A Europa dizem que é tão bonita, e a Italia principalmente.
Não é de lá que vêm as cantoras? Você esquece-me, Bentinho. E não
haverá outro meio? D.~Gloria está morta para que você saia do seminario.

--- Sim, mas julga-se presa pela promessa.

Capitú não achava outra ideia, nem acabava de adoptar esta. De caminho,
pediu-me que, se acaso fosse a Roma, jurasse que no fim de seis mezes
estaria de volta.

--- Juro.

--- Por Deus?

--- Por Deus, por tudo. Juro que no fim de seis mezes estarei de volta.

--- Mas se o papa não tiver ainda soltado a você?

--- Mando dizer isso mesmo.

--- E se você mentir?

Esta palavra doeu-me muito, e não achei logo que lhe replicasse. Capitú
metteu o negocio á bulha, rindo e chamando-me disfarçado. Depois,
declarou crer que eu cumpriria o juramento, mas ainda assim não
consentiu logo; ia ver se não haveria outra cousa, e eu que visse
tambem por meu lado. Quando voltei ao seminario, contei tudo ao meu
amigo Escobar, que me ouviu com egual attenção e acabou com a mesma
tristeza da outra. Os olhos, de costume fugidios, quasi me comeram de
contemplação. De repente, vi-lhe no rosto um clarão, um reflexo de
ideia. E ouvi-lhe dizer com volubilidade:

--- Não, Bentinho, não é preciso isso. Ha melhor, --- não digo melhor,
porque o Santo Padre vale sempre mais que tudo, --- mas ha cousa que
produz o mesmo effeito.

--- Que é?

--- Sua mãe fez promessa a Deus de lhe dar um sacerdote, não é? Pois
bem, dê-lhe um sacerdote, que não seja você. Ella póde muito bem tomar
a si algum mocinho orphão, fazel-o ordenar á sua custa, está dado um
padre ao altar, sem que você...

--- Entendo, entendo, é isso mesmo.

--- Não acha? continuou elle. Consulte sobre isto o protonotario; elle
lhe dirá se não é a mesma cousa, ou eu mesmo consulto, se quer; e se
elle hesitar, fala-se ao Sr.~bispo.

Eu, reflectindo:

--- Sim, parece que é isso; realmente, a promessa cumpre-se, não se
perdendo o padre.

Escobar observou que, pelo lado economico, a questão era facil; minha
mãe gastaria o mesmo que commigo, e um orphão não precisaria grandes
commodidades. Citou a somma dos alugueis das casas, 1¦070$000, alem dos
escravos...

--- Não ha outra cousa, disse eu.

--- E saimos juntos.

--- Você tambem?

--- Tambem eu. Vou melhorar o meu latim e saio; nem dou theologia. O
proprio latim não é preciso; para quê no commercio?

--- \emph{In hoc signo vinces}, disse eu rindo.

Sentia-me pilherico. Oh! como a esperança alegra tudo. Escobar sorriu,
parecendo gostar da resposta. Depois ficámos a cuidar de nós mesmos,
cada um com os seus olhos perdidos, provavelmente. Os delle estavam
assim, quando tornei de longe, e agradeci de novo o plano lembrado; não
podia havel-o melhor. Escobar ouviu-me contentissimo.

--- Ainda uma vez, disse elle gravemente, a religião e a liberdade
fazem boa companhia.




\chapt{XCVII}{A saida.}

Tudo se fez por esse teor. Minha mãe hesitou um pouco, mas acabou
cedendo, depois que o padre Cabral, tendo consultado o bispo, voltou a
dizer-lhe que sim, que podia ser. Saí do seminario no fim do anno.

Tinha então pouco mais de dezesete... Aqui devia ser o meio do livro,
mas a inexperiencia fez-me ir atraz da penna, e chego quasi ao fim do
papel, com o melhor da narração por dizer. Agora não ha mais que
leval-a a grandes pernadas, capitulo sobre capitulo, pouca emenda,
pouca reflexão, tudo em resumo. Já esta pagina vale por mezes, outras
valerão por annos, e assim chegaremos ao fim. Um dos sacrificios que
faço a esta dura necessidade é a analyse das minhas emoções dos
dezesete annos. Não sei se alguma vez tiveste dezesete annos. Se sim,
deves saber que é a edade em que a metade do homem e a metade do menino
formam um só curioso. Eu era um curiosissimo, diria o meu aggregado
José Dias, e não diria mal. O que essa qualidade superlativa me rendeu
não poderia nunca dizel-o aqui, sem cair no erro que acabo de condemnar;
a analyse das minhas emoções daquelle tempo é que entrava no meu plano.
Posto que filho do seminario e de minha mãe, sentia já, debaixo do
recolhimento casto, uns assomos de petulancia e de atrevimento; eram do
sangue, mas eram tambem, das moças que na rua ou da janella não me
deixavam viver socegado. Achavam-me lindo, e diziam-m'o; algumas
queriam mirar de mais perto a minha belleza, e a vaidade é um principio
de corrupção.




\chapt{XCVIII}{Cinco annos.}

Venceu a razão; fui-me aos estudos. Passei os dezoito annos, os
dezenove, os vinte, os vinte e um; aos vinte e dous era bacharel em
direito. Tudo mudára em volta de mim. Minha mãe resolvera-se a
envelhecer; ainda assim os cabellos brancos vinham de má vontade, aos
poucos e espalhadamente; a touca, os vestidos, os sapatos rasos e
surdos eram os mesmos de outr'ora. Já não andaria tanto de um lado para
outro. Tio Cosme padecia do coração e ia descançar. A prima Justina
apenas estava mais edosa. José Dias tambem, não tanto que me não
fizesse a fineza de ir assistir á minha graduação, e descer commigo a
serra, lepido e viçoso, como se o bacharel fosse elle. A mãe de Capitú
fallecera, o pae aposentára-se no mesmo cargo em que quiz dar demissão
da vida.

Escobar começava a negociar em café depois de haver trabalhado quatro
annos em uma das primeiras casas do Rio de Janeiro. Era opinião de
prima Justina que elle affagára a ideia de convidar minha mãe a
segundas nupcias; mas, se tal ideia houve, cumpre não esquecer a grande
differença de edade. Talvez elle não pensasse em mais que associal-a
aos seus primeiros tentamens commerciaes, e de facto, a pedido meu,
minha mãe adeantou-lhe alguns dinheiros, que elle lhe restituiu, logo
que poude, não sem este remoque: «D.~Gloria é medrosa e não tem ambição.»

A separação não nos esfriou. Elle foi o terceiro na troca das cartas
entre mim e Capitú. Desde que a viu animou-me muito no nosso amor. As
relações que travou com o pae de Sancha estreitaram as que já trazia
com Capitú, e fel-o servir a ambos nós, como amigo. A principio,
custou-lhe a ella acceital-o, preferia José Dias, mas José Dias
repugnava-me por um resto de respeito de creança. Venceu Escobar; posto
que vexada, Capitú entregou-lhe a primeira carta, que foi mãe e avó das
outras. Nem depois de casado suspendeu elle o obsequio... Que elle
casou, --- adivinha com quem, --- casou com a boa Sancha, a amiga de
Capitú, quasi irmã della, tanto que alguma vez, escrevendo-me, chamava
a esta a «sua cunhadinha.» Assim se formam as affeições e os
parentescos, as aventuras e os livros.




\chapt{XCIX}{O filho é a cara do pae.}

Minha mãe, quando eu regressei bacharel quasi estalou de felicidade.
Ainda ouço a voz de José Dias, lembrando o evangelho de S.~João, e
dizendo ao ver-nos abraçados.

--- Mulher, eis ahi o teu filho! Filho, eis ahi a tua mãe!

Minha mãe, entre lagrimas:

--- Mano Cosme, é a cara do pae, não é?

--- Sim, tem alguma cousa, os olhos, a disposição do rosto. É o pae, um
pouco mais moderno, concluiu por chalaça. E diga-me agora, mana Gloria,
não foi melhor que elle não teimasse em ser padre? Veja se este peralta
daria um padre capaz.

--- Como vae o meu substituto?

--- Vae indo, ordena-se para o anno, respondeu tio Cosme. Has de ir ver
a ordenação; eu tambem, se o meu senhor coração consentir. É bom que te
sintas na alma do outro, como se recebesses em ti mesmo a sagração.

--- Justamente! exclamou minha mãe. Mas veja bem, mano Cosme, veja se
não é a figura do meu defuncto. Olha, Bentinho, olha bem para mim.
Sempre achei que te parecias com elle, agora é muito mais. O bigode é
que desfaz um pouco...

--- Sim, mana Gloria, o bigode realmente... mas é muito parecido.

E minha mãe beijava-me com uma ternura quo não sei escrever. Tio Cosme,
para alegral-a, chamava-me doutor, José Dias tambem, e todos em casa, a
prima, os escravos, as visitas, Padua, a filha, e ella mesma
repetiam-me o titulo.




\chapt{C}{ «Tu serás feliz, Bentinho!»}

No quarto, desfazendo a mala e tirando a carta de bacharel de dentro da
lata, ia pensando na felicidade e na gloria. Via o casamento e a
carreira illustre, emquanto José Dias me ajudava calado e zeloso. Uma
fada invisivel desceu alli, e me disse em voz egualmente macia e cabida:
«Tu serás feliz, Bentinho; tu vaes ser feliz.»

--- E porque não seria feliz? perguntou José Dias endireitando o tronco
e fitando-me.

--- Você ouviu? perguntei eu erguendo-me tambem, espantado.

--- Ouvi o quê?

--- Ouviu uma voz que dizia que eu serei feliz?

--- É boa! Você mesmo é que está dizendo...

Ainda agora sou capaz de jurar que a voz era da fada; naturalmente as
fadas, expulsas dos contos e dos versos, metteram-se no coração da
gente e falam de dentro para fóra. Esta, por exemplo, muita vez a ouvi
clara e distincta. Ha de ser prima das feiticeiras da Escocia: «Tu
serás rei, Macbeth!» --- «Tu serás feliz, Bentinho!» Ao cabo, é a mesma
predicção, pela mesma toada universal e eterna. Quando voltei do meu
espanto, ouvi o resto do discurso de José Dias:

---... Ha de ser feliz, como merece, assim como mereceu esse diploma
que alli está, que não é favor de ninguem. A distinccão que tirou em
todas as materias é prova disso; já lhe contei que ouvi da bocca dos
lentes, em particular, os maiores elogios. Demais, a felicidade não é
só a gloria, é tambem outra cousa... Ah! você não confiou tudo ao velho
José Dias! O pobre José Dias está ahi para um canto, é caju chupado,
não vale nada; agora são os novos, os Escobares... Não lhe nego que é
moço muito distineto, e trabalhador, e marido de truz; mas, enfim,
velho tambem sabe amar...

--- Mas que é?

--- Que ha de ser? Quem é que não sabe tudo?... Aquella intimidade de
visinhos tinha de acabar nisto, que é verdadeiramente uma benção do ceu,
porque ella é um anjo, é um anjissimo... Perdôe a cincada, Bentinho,
foi um modo de accentuar a perfeição daquella moça. Cuidei o contrario,
outr'ora; confundi os modos de creança com expressões de caracter, e
não vi que essa menina travessa e já de olhos pensativos era a flôr
caprichosa de um fructo sadio e doce... Porque é que não me contou
tambem o que outros sabem, e cá em casa está mais que adivinhado e
approvado?

--- Mamãe approva devéras?

--- Pois então? Temos falado sobre isso, e ella fez-me o favor de pedir
a minha opinião. Pergunte-lhe o que é que eu lhe disse em termos claros
e positivos; pergunte-lhe. Disse-lhe que não podia desejar melhor nora
para si, boa, discreta, prendada, amiga da gente... e uma dona de casa,
que não lhe digo nada. Depois da morte da mãe, tomou conta de tudo.
Padua, agora que se aposentou, não faz mais que receber o ordenado e
entregal-o á filha. A filha é que distribue o dinheiro, paga as contas,
faz o rol das despezas, cuida de tudo, mantimento, roupa, luz; você já
a viu o anno passado. E quanto á formosura você sabe melhor que ninguem...

--- Mas, devéras, mamãe consultou o senhor sobre o nosso casamento?

--- Positivamente, não; fez-me o favor de perguntar se Capitú não daria
uma boa esposa; eu é que, na resposta, falei em nora. D.~Gloria não
negou e até deu um ar de riso.

--- Mamãe sempre que me escrevia, falava de Capitú.

--- Você sabe que ellas se dão muito, e por isso é que sua prima anda
cada vez mais amuada. Talvez agora case mais depressa.

--- Prima Justina?

--- Não sabe? São contos, naturalmente; mas emfim, o doutor João da
Costa enviuvou ha poucos mezes, e dizem (não sei, o protonotario é que
me contou) dizem que os dous andam meio inclinados a acabar com a
viuvez, entre si, casando-se. Ha de ver que não ha nada, mas não é fóra
de proposito, comquanto ella sempre achasse que o doutor era um feixe
de ossos... Só se ella é um cemiterio, commentou rindo; e logo serio:
Digo isto por gracejo...

Não ouvi o resto. Ouvia só a voz da minha fada interior, que me repetia,
mas já então sem palavras: «Tu serás feliz, Bentinho!» E a voz de
Capitú me disse a mesma cousa, com termos diversos, e assim tambem a de
Escobar, os quaes ambos me confirmaram a noticia de José Dias pela sua
propria impressão. Emfim, minha mãe, algumas semanas depois, quando lhe
fui pedir licença para casar, alem do consentimento, deu-me egual
prophecia, salva a redacção propria de mãe: «Tu serás feliz, meu filho!»




\chapt{CI}{No ceu.}

Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor pegue em si, morto
de esperar, e vá espairecer a outra parte; casemo-nos. Foi em 1865, uma
tarde de Março, por signal que chovia. Quando chegámos ao alto da
Tijuca, onde era o nosso ninho de noivos, o ceu recolheu a chuva e
accendeu as estrellas, não só as já conhecidas, mas ainda as que só
serão descobertas daqui a muitos seculos. Foi grande fineza e não foi
unica. S.~Pedro, que tem as chaves do ceu, abriu-nos as portas delle,
fez-nos entrar, e depois de tocar-nos com o baculo, recitou alguns
versiculos da sua primeira epistola: «As mulheres sejam sujeitas a seus
maridos... Não seja o adorno dellas o enfeite dos cabellos riçados ou
as rendas de ouro, mas o homem que está escondido no coração.... Do
mesmo modo, vós, maridos, co-habitai com ellas, tratando-as com honra,
como a vasos mais fracos, e herdeiras comvosco da graça da vida» Em
seguida, fez signal aos anjos, e elles entoaram um trecho do \emph{Cantico},
tão concertadamente, que desmentiriam a hypothese do tenor italiano, se
a execução fosse na terra; mas era no ceu. A musica ia com o texto,
como se houvessem nascido juntos, á maneira de uma opera de Wagner.
Depois, visitámos uma parte daquelle logar infinito. Descança que não
farei descripção alguma, nem a lingua humana possue fórmas idoneas para
tanto.

Ao cabo, póde ser que tudo fosse um sonho; nada mais natural a um
ex-seminarista que ouvir por toda a parte latim e Escriptura. É verdade
que Capitú, que não sabia Escriptura nem latim, decorou algumas
palavras, como estas, por exemplo: «Sentei-me á sombra daquelle que
tanto havia desejado.» Quanto ás de S.~Pedro, disse-me no dia seguinte
que estava por tudo, que eu era a unica renda e o unico enfeite que
jamais poria em si. Ao que eu repliquei que a minha esposa teria sempre
as mais finas rendas deste mundo.




\chapt{CII}{De casada.}

Imagina um relogio que só tivesse pendulo, sem mostrador, de maneira
que não se vissem as horas escriptas. O pendulo iria de um lado para
outro, mas nenhum signal externo mostraria a marcha do tempo. Tal foi
aquella semana da Tijuca.

De quando em quando, tornavamos ao passado e divertiamo-nos em
relembrar as nossas tristezas e calamidades, mas isso mesmo era um modo
de não sairmos de nós. Assim vivemos novamente a nossa longa espera de
namorados, os annos da adolescencia, a denuncia que está nos primeiros
capitulos, e riamos de José Dias que conspirou a nossa desunião, e
acabou festejando o nosso consorcio. Uma ou outra vez, falavamos em
descer, mas as manhãs marcadas eram sempre de chuva ou de sol, e nós
esperavamos um dia encoberto, que teimava em não vir.

Não obstante, achei que Capitú estava um tanto impaciente por descer.
Concordava em ficar, mas ia falando do pae e de minha mãe, da falta de
noticias nossas, disto e daquillo, a ponto que nos arrufámos um pouco.
Perguntei-lhe se já estava aborrecida de mim.

--- Eu?

--- Parece.

--- Você ha de ser sempre creança, disse ella fechando-me a cara entre
as mãos e chegando muito os olhos aos meus. Então eu esperei tantos
annos para aborrecer-me em sete dias? Não, Bentinho; digo isto porque é
realmente assim, creio que elles pódem estar desejosos de ver-nos e
imaginar alguma doença, e, confesso, pela minha parte, que queria ver
papae.

--- Pois vamos amanhã.

--- Não; ha de ser com tempo encoberto, redarguiu rindo.

Peguei-lhe no riso e na palavra, mas a impaciencia continuou, e
descemos com sol.

A alegria com que poz o seu chapéo de casada, e o ar de casada com que
me deu a mão para entrar e sair do carro, e o braço para andar na rua,
tudo me mostrou que a causa da impaciencia de Capitú eram os signaes
exteriores do novo estado. Não lhe bastava ser casada entre quatro
paredes e algumas arvores; precisava do resto do mundo tambem. E quando
eu me vi embaixo, pisando as ruas com ella, parando, olhando, falando,
senti a mesma cousa. Inventava passeios para que me vissem, me
confirmassem e me invejassem. Na rua, muitos voltavam a cabeça curiosos,
outros paravam, alguns perguntavam: «Quem são?» e um sabido explicava:
«Este é o doutor Santiago, que casou ha dias com aquella moça, D.~Capitolina,
depois de uma longa paixão de creanças; moram na Gloria, as familias
residem em Matacavallos.» E ambos os dous: «É uma mocetona!»




\chapt{CIII}{A felicidade tem boa alma.}

Mocetona é vulgar; José Dias achou melhor. Foi a unica pessoa cá de
baixo que nos visitou na Tijuca, levando abraços dos nossos e palavras
suas, mas palavras que eram musicas verdadeiras; não as ponho aqui para
ir poupando papel, mas foram deliciosas. Um dia, comparou-nos a aves
criadas em dous vãos de telhado contiguos. Imagina o resto, as aves
emplumando as azas e subindo ao ceu, e o ceu agora mais largo para
poder contel-as tambem. Nenhum de nós riu; ambos escutavamos commovidos
e convencidos, esquecendo tudo, desde a tarde de 1858.... A felicidade
tem boa alma.




\chapt{CIV}{As pyramides.}

José Dias dividia-se agora entre mim e minha mãe, alternando os
jantares da Gloria com os almoços de Matacavallos. Tudo corria bem. Ao
fim de dous annos de casado, salvo o desgosto grande de não ter um
filho, tudo corria bem. Perdera meu sogro, é verdade, e o tio Cosme
estava por pouco, mas a saude de minha mãe era boa; a nossa excellente.

Eu era advogado de algumas casas ricas, e os processos vinham chegando.
Escobar contribuira muito para as minhas estréas no fôro. Interveiu com
um advogado celebre para que me admittisse á sua banca, e arranjou-me
algumas procurações, tudo espontaneamente.

Demais, as nossas relações de familia estavam previamente feitas;
Sancha e Capitú continuavam depois de casadas a amizade da escola,
Escobar e eu a do seminario. Elles moravam em Andarahy, aonde queriam
que fossemos muitas vezes, e, não podendo ser tantas como desejavamos,
iamos lá jantar alguns domingos, ou elles vinham fazel-o comnosco.
Jantar é pouco. Iamos sempre muito cedo, logo depois do almoço, para
gozarmos o dia compridamente, e só nos separavamos ás nove, dez e onze
horas, quando não podia ser mais. Agora que penso naquelles dias de
Andarahy e da Gloria, sinto que a vida e o resto não sejam tão rijos
como as Pyramides. Escobar e a mulher viviam felizes; tinham uma
filhinha. Em tempo ouvi falar de uma aventura do marido, negocio de
theatro, não sei que actriz ou bailarina, mas se foi certo, não deu
escandalo. Sancha era modesta, o marido trabalhador. Como eu um dia
dissesse a Escobar que lastimava não ter um filho, replicou-me:

--- Homem, deixa lá. Deus os dará quando quizer, e se não der nenhum é
que os quer para si, e melhor será que fiquem no ceu.

--- Uma creança, um filho é o complemento natural da vida.

--- Virá, se for necessario.

Não vinha. Capitú pedia-o em suas orações, eu mais de uma vez dava por
mim a rezar e a pedil-o. Já não era como em creança; agora pagava
antecipadamente, como os alugueis da casa.




\chapt{CV}{Os braços.}

No mais, tudo corria bem. Capitú gostava de rir e divertir-se, e, nos
primeiros tempos, quando iamos a passeios ou espectaculos, era como um
passaro que saisse da gaiola. Arranjava-se com graça e modestia. Embora
gostasse de joias, como as outras moças, não queria que eu lhe
comprasse muitas nem caras, e um dia affligiu-se tanto que prometti não
comprar mais nenhuma; mas foi só por pouco tempo.

A nossa vida era mais ou menos placida. Quando não estavamos com a
familia ou com amigos, ou se não iamos a algum espectaculo ou serão
particular (e estes eram raros) passavamos as noites á nossa, janella
da Gloria, mirando o mar e o ceu, a sombra das montanhas e dos navios,
ou a gente que passava na praia. Ás vezes, eu contava a Capitú a
historia da cidade, outras dava-lhe noticias de astronomia; noticias de
amador que ella escutava attenta e curiosa, nem sempre tanto que não
cochillasse um pouco. Não sabendo piano, apprendeu depois de casada, e
depressa, e d'ahi a pouco tocava nas casas de amizade. Na Gloria era
uma das nossas recreações; tambem cantava, mas pouco e raro, por não
ter voz; um dia chegou a entender que era melhor não cantar nada e
cumpriu o alvitre. De dansar gostava, e enfeitava-se com amor quando ia
a um baile; os braços é que.... Os braços merecem um periodo.

Eram bellos, e na primeira noite que os levou nús a um baile, não creio
que houvesse eguaes na cidade, nem os seus, leitora, que eram então de
menina, se eram nascidos, mas provavelmente estariam ainda no marmore,
donde vieram, ou nas mãos do divino esculptor. Eram os mais bellos da
noite, a ponto que me encheram de desvanecimento. Conversava mal com as
outras pessoas, só para vel-os, por mais que elles se entrelaçassem aos
das casacas alheias. Já não foi assim no segundo baile; nesse, quando
vi que os homens não se fartavam de olhar para elles, de os buscar,
quasi de os pedir, e que roçavam por elles as mangas pretas, fiquei
vexado e aborrecido. Ao terceiro não fui, e aqui tive o apoio de
Escobar, a quem confiei candidamente os meus tedios; concordou logo
commigo.

--- Sanchinha tambem não vae, ou irá de mangas compridas; o contrario
parece-me indecente.

--- Não é? Mas não diga o motivo; hão de chamar-nos seminaristas.
Capitú já me chamou assim. Nem por isso deixei de contar a Capitú a
approvação de Escobar. Ella sorriu e respondeu que os braços de
Sanchinha eram mal feitos, mas cedeu depressa, e não foi ao baile; a
outros foi, mas levou-os meio vestidos de escomilha ou não sei quê, que
nem cobria nem descobria inteiramente, como o sendal de Camões.




\chapt{CVI}{Dez libras esterlinas.}

Já disse que era poupada, ou fica dito agora, e não só de dinheiro mas
tambem de cousas usadas, dessas que se guardam por tradição, por
lembrança ou por saudade. Uns sapatos, por exemplo, uns sapatinhos
rasos de fitas pretas que se cruzavam no peito do pé e principio da
perna, os ultimos que usou antes de calçar botinas, trouxe-os para casa,
e tirava-os de longe em longe da gaveta da commoda, com outras
velharias, dizendo-me que eram pedaços de creança. Minha mãe, que tinha
o mesmo genio, gostava de ouvir falar e fazer assim.

Quanto ás puras economias de dinheiro, direi um caso, e basta. Foi
justamente por occasião de uma licção de astronomia, á praia da Gloria.
Sabes que alguma vez a fiz cochilar um pouco. Uma noite perdeu-se em
fitar o mar, com tal força e concentração, que me deu ciumes.

--- Você não me ouve, Capitú.

--- Eu? Ouço perfeitamente.

--- O que é que eu dizia?

--- Você... você falava de Sirius.

--- Qual, Sirius, Capitú. Ha vinte minutos que eu falei de Sirius.

--- Falava de... falava de Marte, emendou ella apressada.

Realmente, era de Marte, mas é claro que só apanhára o som da palavra,
não o sentido. Fiquei serio, e o impeto que me deu foi deixar a sala;
Capitú, ao percebel-o, fez-se a mais mimosa das creaturas, pegou-me na
mão, confessou-me que estivera contando, isto é, sommando uns dinheiros
para descobrir certa parcella que não achava. Tratava-se de uma
conversão de papel em ouro. A principio suppuz que era um recurso para
desenfadar-me, mas d'ahi a pouco estava eu mesmo calculando tambem, já
então com papel e lapis, sobre o joelho, e dava a differença que ella
buscava.

--- Mas que libras são essas? perguntei-lhe no fim.

Capitú fitou-me rindo, e replicou que a culpa de romper o segredo era
minha. Ergueu-se, foi ao quarto e voltou com dez libras esterlinas, na
mão; eram as sobras do dinheiro que eu lhe dava mensalmente para as
despezas.

--- Tudo isto?

--- Não é muito, dez libras só; é o que a avarenta de sua mulher poude
arranjar, em alguns mezes, concluiu fazendo tinir o ouro na mão.

--- Quem foi o corretor?

--- O seu amigo Escobar.

--- Como é que elle não me disse nada?

--- Foi hoje mesmo.

--- Elle esteve cá?

--- Pouco antes de você chegar; eu não disse para que você não
desconfiasse.

Tive vontade de gastar o dobro do ouro em algum presente commemorativo,
mas Capitú deteve-me. Ao contrario, consultou-me sobre o que haviamos
de fazer daquellas libras.

--- São suas, respondi.

--- São nossas, emendou.

--- Pois você guarde-as.

No dia seguinte, fui ter com Escobar ao armazem, e ri-me do segredo de
ambos. Escobar sorriu e disse-me que estava para ir ao meu escriptorio
contar-me tudo. A cunhadinha (continuava a dar este nome a Capitú)
tinha-lhe falado naquillo por occasião da nossa ultima visita a
Andarahy, e disse-lhe a razão do segredo.

--- Quando contei isto a Sanchinha, concluiu elle, ficou espantada: «Como
é que Capitú póde economisar, agora que tudo está tão caro?» --- «Não
sei, filha; sei que arranjou dez libras.»

--- Vê se ella apprende tambem.

--- Não creio; Sanchinha não é gastadeira, mas tambem não é poupada; o
que lhe dou chega, mas só chega.

Eu, depois de alguns instantes de reflexão:

--- Capitú é um anjo!

Escobar concordou de cabeça, mas sem enthusiasmo, como quem sentia não
poder dizer o mesmo da mulher. Assim pensarias tu tambem, tão certo é
que as virtudes das pessoas proximas nos dão tal ou qual vaidade,
orgulho ou consolação.




\chapt{CVII}{Ciumes do mar.}

Se não fosse a astronomia, não descobriria eu tão cedo as dez libras de
Capitú; mas não é por isso que torno a ella, é para que não cuides que
a vaidade de professor é que me fez padecer com a desattenção de Capitú
e ter ciumes do mar. Não, meu amigo. Venho explicar-te que tive taes
ciumes pelo que podia estar na cabeça de minha mulher, não fóra ou
acima della. É sabido que as distracções de uma pessoa pódem ser
culpadas, metade culpadas, um terço, um quinto, um decimo de culpadas,
pois que em materia de culpa a graduação é infinita. A recordação de
uns simples olhos basta para fixar outros que os recordem e se deleitem
com a imaginação delles. Não é mister peccado effectivo e mortal, nem
papel trocado, simples palavra, aceno, suspiro ou signal ainda mais
miudo e leve. Um anonymo ou anonyma que passe na esquina da rua faz com
que mettamos Sirius dentro de Marte, e tu sabes, leitor, a differença
que ha de um a outro na distancia e no tamanho, mas a astronomia tem
dessas confusões. Foi isto que me fez empallidecer, calar e querer
fugir da sala para voltar, Deus sabe quando; provavelmente, dez minutos
depois. Dez minutos depois, estaria eu outra vez na sala, ao piano ou á
janella, continuando a licção interrompida:

--- Marte está a distancia de...

Tão pouco tempo? Sim, tão pouco tempo, dez minutos. Os meus ciumes eram
intensos, mas curtos; com pouco derrubaria tudo, mas com o mesmo pouco
ou menos reconstruiria o ceu, a terra e as estrellas.

A verdade é que fiquei mais amigo de Capitú, se era possivel, ella
ainda mais meiga, o ar mais brando, as noites mais claras, e Deus mais
Deus. E não foram propriamente as dez libras esterlinas que fizeram
isto, nem o sentimento de economia que revelavam e que eu conhecia, mas
as cautelas que Capitú empregou para o fim de descobrir-me um dia o
cuidado de todos os dias. Escobar tambem se me fez mais pegado ao
coração. As nossas visitas foram-se tornando mais proximas, e as nossas
conversações mais intimas.




\chapt{CVIII}{Um filho.}

Pois nem tudo isso me matava a sede de um filho, um triste menino que
fosse, amarello e magro, mas um filho, um filho proprio da minha pessoa.
Quando iamos a Andarahy e viamos a filha de Escobar e Sancha,
familiarmente Capitúsinha, por differençal-a de minha mulher, visto que
lhe deram o mesmo nome á pia, ficavamos cheios de invejas. A pequena
era graciosa e gorducha, faladeira e curiosa. Os paes, como os outros
paes, contavam as travessuras e agudezas da menina, e nós, quando
voltavamos á noite para a Gloria, vinhamos suspirando as nossas invejas,
e pedindo mentalmente ao ceu que nol-as matassem...

... As invejas morreram, as esperanças nasceram, e não tardou que
viesse ao mundo o fructo dellas. Não era escasso nem feio, como eu já
pedia, mas um rapagão robusto e lindo.

A minha alegria quando elle nasceu, não sei dizel-a; nunca a tive egual,
nem creio que a possa haver identica, ou que de longe ou de perto se
pareça com ella. Foi uma vertigem e uma loucura, Não cantava na rua por
natural vergonha, nem em casa para não affligir Capitú convalescente.
Tambem não caía, porque ha um deus para os paes novos. Fóra, vivia com
o espirito no menino; em casa, com os olhos, a observal-o, a miral-o, a
perguntar-lhe donde vinha, e porque é que eu estava tão inteiramente
nelle, e varias outras tolices sem palavras, mas pensadas ou deliradas
a cada instante. Talvez perdi algumas causas no fôro por descuido.

Capitú não era menos terna para elle e para mim. Davamos as mãos um ao
outro, e, quando não olhavamos para o nosso filho, conversavamos de nós,
do nosso passado e do nosso futuro. As horas de maior encanto e
mysterio eram as de amamentação. Quando eu via o meu filho chupando o
leite da mãe, e toda aquella união da natureza para a nutrição e vida
de um ser que não fôra nada, mas que o nosso destino affirmou que seria,
e a nossa constancia e o nosso amor fizeram que chegasse a ser, ficava
que não sei dizer nem digo; positivamente não me lembra, e receio que o
que dissesse me saisse escuro.

Escusai minucias. Assim que, não é preciso contar a dedicação de minha
mãe e de Sancha, que tambem foi passar com Capitú os primeiros dias e
noites. Quiz rejeitar o obsequio de Sancha; respondeu-me que eu não
tinha nada com isso; tambem Capitú, em solteira, fôra tratal-a á rua
dos Invalidos.

--- Não se lembra que o senhor foi lá vel-a?

--- Lembra-me; mas Escobar...

--- Eu virei jantar com vocês, e ás noites sigo para Andarahy; oito
dias, e está tudo passado. Bem se vê que você é pae de primeira viagem.

--- Tambem você; onde está a segunda?

Usavamos então estas graças em familia. Hoje, que me recolhi á minha
casmurrice, não sei se ainda ha tal linguagem, mas deve haver. Escobar
cumpriu o que disse; jantava comnosco, e ia-se á noite. Sobre tarde
desciamos á praia ou iamos ao Passeio Publico, fazendo elle os seus
calculos, eu os meus sonhos. Eu via o meu filho medico, advogado,
negociante, metti-o em varias universidades e bancos, e até acceitei a
hypolhese de ser poeta. A possibilidade de politico foi consultada, e
cri que me saisse orador, e grande orador.

--- Póde ser, redarguia Escobar; ninguem diria o que veiu a ser
Demosthenes.

Escobar acompanhava muita vez as minhas creancices; tambem interrogava
o futuro. Chegou a falar da hypolhese de casar o pequeno com a filha. A
amizade existe; esteve toda nas mãos com que apertei as de Escobar, ao
ouvir-lhe isto, e na total ausencia de palavras com que alli assignei o
pacto; estas vieram depois, de atropello, afinadas pelo coração, que
batia com grande força. Acceitei a lembrança, e propuz que os
encaminhassemos a este fim, pela educação egual e commum, pela infancia
unida e correcta.

Era minha ideia que Escobar fosse padrinho do pequeno; a madrinha devia
ser e seria minha mãe. Mas a primeira parte se trocou por intervenção
do tio Cosme, que, ao ver a creança, disse-lhe entre outros carinhos:

--- Anda, toma a benção a teu padrinho, velhaco. E, voltando-se para
mim:

--- Não desisto do favor; e ha de ser depressa o baptisado, antes que a
minha doença me leve de vez.

Contei discretamente a anecdota a Escobar, para que elle me
comprehendesse e desculpasse; riu-se e não se magoou. Fez mais, quiz
que o almoço do baptisado fosse na chacara delle, e foi. Eu ainda
tentei espaçar a cerimonia a ver se tio Cosme succumbia primeiro á
doença, mas parece que esta era mais de aborrecer que de matar. Não
houve remedio senão levar o menino á pia, onde se lhe deu o nome de
Ezequiel; era o de Escobar, e eu quiz supprir deste modo a falta de
compadrio.




\chapt{CIX}{Um filho unico.}

Ezequiel, quando começou o capitulo anterior, não era ainda gerado;
quando acabou era christão e catholico. Este outro é destinado a fazer
chegar o meu Ezequiel aos cinco annos, um rapagão bonito, com os seus
olhos claros, já inquietos, como se quizessem namorar todas as moças da
visinhança, ou quasi todas.

Agora, se considerares que elle foi unico, que nenhum outro veiu, certo
nem incerto, morto nem vivo, um só e unico, imaginarás os cuidados que
nos deu, os somnos que nos tirou, e que sustos nos metteram as crises
dos dentes e outras, a menor febricula, toda a existencia commum das
creanças. A tudo acudiamos, segundo cumpria e urgia, cousa que não era
necessario dizer, mas ha leitores tão obtusos, que nada entendem, se se
lhes não relata tudo e o resto. Vamos ao resto.




\chapt{CX}{Rasgos da infancia.}

O resto come-me ainda muitos capitulos; ha vidas que os tem menos, e
fazem-se ainda assim completas e acabadas.

Aos cinco e seis annos, Ezequiel não parecia desmentir os meus sonhos
da praia da Gloria; ao contrario, adivinhavam-se nelle todas as
vocações possiveis, desde vadio até apostolo. Vadio é aqui posto no bom
sentido, no sentido de homem que pensa e cala; mettia-se ás vezes
comsigo, e nisto fazia lembrar a mãe, desde pequena. Assim tambem,
agitava-se todo e instava por ir persuadir ás visinhas que os doces que
eu lhe trazia eram doces devéras; não o fazia antes de farto d'elles,
mas tambem os apostolos não levam a boa doutrina senão depois de a
terem toda no coração. Escobar, bom negociante, opinava que a causa
principal desta outra inclinação, talvez fosse convidar implicitamente
as visinhas a egual apostolado, quando os paes lhe trouxessem doces; e
ria-se da propria graça, e annunciava-me. que o faria seu socio.

Gostava de musica, não menos que de doce, e eu disse a Capitú que lhe
tirasse ao piano o prégão do preto das cocadas de Matacavallos...

--- Não me lembra.

--- Não diga isso; você não se lembra daquelle preto que vendia doce,
ás tardes...

--- Lembro-me de um preto que vendia doce, mas não sei mais da toada.

--- Nem das palavras?

--- Nem das palavras.

A leitora, que ainda se lembrará das palavras, dado que me tenha lido
com attenção, ficará espantada de tamanho esquecimento, tanto mais que
lhe lembrarão ainda as vozes da sua infancia e adolescencia; haverá
olvidado algumas, mas nem tudo fica na cabeça. Assim me replicou Capitú,
e não achei treplica. Fiz, porém, o que ella não esperava; corri aos
meus papeis velhos. Em S.~Paulo, quando estudante, pedi a um professor
de musica que me transcrevesse a toada do prégão; elle o fez com prazer
(bastou-me repetir-lh'o de memoria), e eu guardei o papelinho; fui
procural-o. D'ahi a pouco interrompi um romance que ella tocava, com o
pedacinho de papel na mão. Expliquei-lh'o; ella teclou as dezeseis
notas.

Capitú achou á toada um sabor particular, quasi delicioso; contou ao
filho a historia do prégão, e assim o cantava e teclava. Ezequiel
aproveitou a musica para pedir-me que desmentisse o texto dando-lhe
algum dinheiro.

Fazia de medico, de militar, de actor e bailarino. Nunca lhe dei
oratorios; mas cavallos de pau e espada á cinta eram com elle. Já não
falo dos batalhões que passavam na rua, e que elle corria a ver; todas
as creanças o fazem. O que nem todas fazem é ter os olhos que esta
tinha. Em nenhuma vi as andas de gosto com que assistia á passagem da
tropa e ouvia tocar a marcha dos tambores.

--- Olha, papae! olha!

--- Estou vendo, meu filho!

--- Olha o commandante! Olha o cavallo do commandante! Olha os soldados!

Um dia amanheceu tocando corneta com a mão; dei-lhe uma cornetinha de
metal. Comprei-lhe soldadinhos de chumbo, gravuras de batalhas que elle
mirava por muito tempo, querendo que lhe explicasse uma peça de
artilharia, um soldado caído, outro de espada alçada, e todos os seus
amores iam para o de espada alçada. Um dia (ingenua edade!)
perguntou-me impaciente:

--- Mas, papae, porque é que elle não deixa cair a espada de uma vez?

--- Meu filho, é porque é pintado.

--- Mas então porque é que elle se pintou?

Ri-me do engano e expliquei-lhe que não era o soldado que se tinha
pintado no papel, mas o gravador, e tive de explicar tambem o que era
gravador e o que era gravura: as curiosidades de Capitú, em summa.

Taes são os principaes rasgos da infancia: mais um e acabo o capitulo.
Um dia, na chacara de Escobar, deu com um gato que tinha um rato
atravessado na bocca. O gato nem deixava a presa, nem via por onde
fugisse. Ezequiel não disse nada, deteve-se, acocorou-se, e ficou
olhando. Ao vel-o assim attento, perguntámos-lhe de longe o que era;
fez-nos signal que nos calassemos. Escobar concluiu:

--- Vão ver que é o gato que apanhou algum rato. Os ratos continuam a
infestar-me a casa, que é o diabo. Vamos ver.

Capitú quiz tambem ver o filho; acompanhei-os. Effectivamente, era um
gato e um rato, lance banal, sem interesse nem graça. A unica
circumstancia particular era estar o rato vivo, esperneando, e o meu
pequeno enlevado. De resto, o instante foi curto. O gato, logo que
sentiu mais gente, dispoz-se a correr; o menino, sem tirar-lhe os olhos
de cima, fez-nos outro signal de silencio; e o silencio não podia ser
maior. Ia dizer religioso, risquei a palavra, mas aqui a ponho outra
vez, não só por significar a totalidade do silencio, mas tambem porque
havia naquella acção do gato e do rato alguma cousa que prendia com
ritual. O unico rumor eram os ultimos guinchos do rato, aliás
frouxissimos; as pernas mal se lhe moviam e desordenadamente. Um tanto
aborrecido, bati palmas para que o gato fugisse, e o gato fugiu. Os
outros nem tiveram tempo de atalharme, Ezequiel ficou abatido.

--- Ora, papae!

--- Que foi? A esta hora o rato está comido.

--- Pois sim, mas eu queria ver.

Os dous riram-se; eu mesmo achei-lhe graça.




\chapt{CXI}{Contado depressa.}

Achei-lhe graça, e não lh'a nego ainda agora, apesar do tempo passado,
dos successos occorridos, e da tal ou qual sympathia ao rato que acho
em mim; teve graça. Não me pesa dizel-o; os que amam a natureza como
ella quer ser amada, sem repudio parcial nem exclusões injustas, não
acham nella nada inferior. Amo o rato, não desamo o gato. Já pensei em
os fazer viver juntos, mas vi que são incompativeis. Em verdade, um
roe-me os livros, outro o queijo; mas não é muito que eu lhes perdôe,
se já perdoei a um cachorro que me levou o descanço em peores
circumstancias. Contarei o caso depressa.

Foi quando nasceu Ezequiel; a mãe estava com febre, Sancha vivia ao pé
della, e tres cães na rua latiam toda a noite. Procurei o fiscal, e foi
como se procurasse o leitor, que só agora sabe disto. Então resolvi
matal-os; comprei veneno, mandei fazer tres bolas de carne, e eu mesmo
inseri nellas a droga. De noite, saí; era uma hora; nem a doente, nem a
enfermeira podiam dormir, com a bulha dos cães. Quando elles me viram,
afastaram-se, dous desceram para o lado da praia do Flamengo, um ficou
a curta distancia, como que esperando. Fui-me a elle, assobiando e
dando estalinhos com os dedos. O diabo ainda latiu, mas fiado nos
signaes de amizade, foi-se calando, até que se calou de todo. Como eu
continuasse, elle veiu a mim, devagar, mexendo a cauda, que é o seu
modo de rir delles; eu tinha já na mão as bolas envenenadas, e ia
deitar-lhe uma dellas, quando aquelle riso especial, carinho, confiança
ou o que quer que seja, me atou a vontade; fiquei assim não sei como,
tocado de pena e guardei as bolas no bolso. Ao leitor póde parecer que
foi o cheiro da carne que remetteu o cão ao silencio. Não digo que não;
eu cuido que elle não me quiz altribuir perfidia ao gesto, e
entregou-se-me. A conclusão é que se livrou.




\chapt{CXII}{As imitações de Ezequiel.}

Tal não faria Ezequiel. Não comporia bolas envenenadas, supponho, mas
não as recusaria tambem. O que faria com certeza era ir atraz dos cães,
a pedrada, até onde lhe dessem as pernas. E se tivesse um pau, iria a
pau. Capitú morria por aquelle batalhador futuro.

--- Não sae a nós, que gostamos da paz, disse-me ella um dia, mas papae
em moço era assim tambem; mamãe é que contava.

--- Sim, não sairá maricas, repliquei; eu só lhe descubro um
defeitosinho, gosta de imitar os outros.

--- Imitar como?

--- Imitar os gestos, os modos, as attitudes; imita prima Justina,
imita José Dias; já lhe achei até um geito dos pés de Escobar e dos
olhos...

Capitú deixou-se estar pensando e olhando para mim, e disse afinal que
era preciso emendal-o. Agora reparava que realmente era vezo do filho,
mas parecia-lhe que era só imitar por imitar, como succede a muitas
pessoas grandes, que tomam as maneiras dos outros; e para que não fosse
mais longe...

--- Tambem não vamos mortifical-o. Sempre ha tempo de corrigil-o.

--- Ha, vou ver. Você tambem não era assim, quando se zangava com
alguem...

--- Quando me zangava, concordo; vingança de menino.

--- Sim, mas eu não gósto de imitações em casa.

--- E naquelle tempo gostavas de mim? disse eu batendo-lhe na face.

A resposta de Capitú foi um riso doce de escarneo, um desses risos que
não se descrevem, e apenas se pintarão; depois estirou os braços e
atirou-m'os sobre os hombros, tão cheios de graça que pareciam (velha
imagem!) um collar de flôres. Eu fiz o mesmo aos meus, e senti não
haver alli um esculptor que nos transferisse a attitude a um pedaço de
marmore. Só brilharia o artista, é certo. Quando uma pessoa ou um grupo
saem bem, ninguem quer saber do modelo, mas da obra, e a obra é que
fica. Não importa; nós saberiamos que eramos nós.




\chapt{CXIII}{Embargos de terceiro.}

Por falar nisto, é natural que me perguntes se, sendo antes tão cioso
della, não continuei a sel-o apesar do filho e dos annos. Sim, senhor,
continuei. Continuei, a tal ponto que o menor gesto me affligia, a mais
infima palavra, uma insistencia qualquer; muita vez só a indifferença
bastava. Cheguei a ter ciumes de tudo e de todos. Um visinho, um par de
valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror ou
desconfiança. É certo que Capitú gostava de ser vista, e o meio mais
proprio a tal fim (disse-me uma senhora, um dia) é ver tambem, e não ha
ver sem mostrar que se vê.

A senhora que me disse isto cuido que gostou de mim, e foi naturalmente
por não achar da minha parte correspondencia aos seus affectos que me
explicou daquella maneira os seus olhos teimosos. Outros olhos me
procuravam tambem, não muitos, e não digo nada sobre elles, tendo aliás
confessado a principio as minhas aventuras vindouras, mas eram ainda
vindouras. Naquelle tempo, por mais mulheres bonitas que achasse,
nenhuma receberia a minima parte do amor que tinha a Capitú. A minha
propria mãe não queria mais que metade. Capitú era tudo e mais que tudo;
não vivia nem trabalhava que não fosse pensando nella. Ao theatro iamos
juntos; só me lembra que fosse duas vezes sem ella, um beneficio de
actor, e uma estréa de opera, a que ella não foi por ter adoecido, mas
quiz por força que eu fosse. Era tarde para mandar o camarote a Escobar;
saí, mas voltei no fim do primeiro acto. Encontrei Escobar á porta do
corredor.

--- Vinha falar-te, disse-me elle.

Expliquei-lhe que tinha saido para o theatro, donde voltára receioso de
Capitú, que ficára doente.

--- Doente de que? perguntou Escobar.

--- Queixava-se da cabeça e do estomago.

--- Então, vou-me embora. Vinha para aquelle negocio dos embargos...

Eram uns embargos de terceiro; occorrera um incidente importante, e,
tendo elle jantado na cidade, não quiz ir para casa sem dizer-me o que
era, mas já agora falaria depois...

--- Não, falemos já, sobe; ella póde estar melhor. Se estiver peor,
desces.

Capitú estava melhor e até boa. Confessou-me que apenas tivera uma dôr
de cabeça de nada, mas aggravára o padecimento para que eu fosse
divertir-me. Não falava alegre, o que me fez desconfiar que mentia,
para me não metter medo, mas jurou que era a verdade pura. Escobar
sorriu e disse:

--- A cunhadinha está tão doente como você ou eu. Vamos aos embargos.




\chapt{CXIV}{Em que se explica o explicado.}

Antes de ir aos embargos, expliquemos ainda um ponto que já ficou
explicado, mas não bem explicado. Viste que eu pedi (cap.~CX) a um
professor de musica de S.~Paulo que me escrevesse a toada daquelle
prégão de doces de Matacavallos. Em si, a materia é chocha, e não vale
a pena de um capitulo, quanto mais dous; mas ha materias taes que
trazem ensinamentos interessantes, senão agradaveis. Expliquemos o
explicado.

Capitú e eu tinhamos jurado não esquecer mais aquelle prégão; foi em
momento de grande ternura, e o tabellião divino sabe as cousas que se
juram em taes momentos, elle que as registra nos livros eternos.

--- Você jura?

--- Juro, disse ella estendendo tragicamente o braço.

Aproveitei o gesto para beijar-lhe a mão; estava ainda no seminario.
Quando fui para S.~Paulo, querendo um dia relembrar a toada, vi que a
ia perdendo inteiramente; consegui recordal-a e corri ao professor, que
me fez o obsequio de a escrever no pedacinho de papel. Foi para não
faltar ao juramento que fiz isto. Mas has de crer que, quando corri aos
papeis velhos, naquella noite da Gloria, tambem me não lembrava já da
toada nem do texto? Fiz-me de pontual ao juramento, e este é que foi o
meu peccado; esquecer, qualquer esquece.

Ao certo, ninguem sabe se ha de manter ou não um juramento. Cousas
futuras! Portanto, a nossa constituição politica, transferindo o
juramento á affinnação simples, é profundamente moral. Acabou com um
peccado terrivel. Faltar ao compromisso é sempre infidelidade, mas a
alguem que tenha mais temor a Deus que aos homens não lhe importará
mentir, uma vez ou outra, desde que não mette a alma no purgatorio. Não
confundam purgatorio com inferno, que é o eterno naufragio. Purgatorio
é uma casa de penhores, que empresta sobre todas as virtudes, a juro
alto e prazo curto. Mas os prazos renovam-se, até que um dia uma ou
duas virtudes medianas pagam todos os peccados grandes e pequenos.




\chapt{CXV}{Duvidas sobre duvidas.}

Vamos agora aos embargos... E porque iremos aos embargos? Deus sabe o
que custa escrevel-os, quanto mais contal-os. Da circumstancia nova que
Escobar me trazia apenas digo o que lhe disse então, isto é, que não
valia nada.

--- Nada?

--- Quasi nada.

--- Então vale alguma cousa.

--- Para reforçar as razões que já temos vale menos que o chá que você
vae tomar commigo.

--- É tarde para tomar chá.

--- Tomaremos depressa.

Tomámos depressa. Durante elle, Escobar olhava para mim desconfiado,
como se cuidasse que eu recusava a circumstancia nova por forrar-me a
escrevel-a; mas tal suspeita não ia com a nossa amizade. Quando elle
saiu, referi as minhas duvidas a Capitú; ella as desfez com a arte fina
que possuia, um geito, uma graça toda sua, capaz de dissipar as mesmas
tristezas de Olympio.

--- Seria o negocio dos embargos, concluiu; e elle que veiu até aqui, a
esta hora, é que está impressionado com a demanda.

--- Tens razão.

Palavra puxa palavra, falei de outras duvidas. Eu era então um poço
dellas; coaxavam dentro de mim, como verdadeiras rans, a ponto de me
tirarem o somno algumas vezes. Disse-lhe que começava a achar minha mãe
um tanto fria e arredia com ella. Pois aqui mesmo valeu a arte fina de
Capitú!

--- Já disse a você o que é; cousas de sogra. Mamãesinha tem ciumes de
você; logo que elles passem e as saudades augmentem, ella torna a ser o
que era. Em lhe faltando o neto...

--- Mas eu tenho notado que já é fria tambem com Ezequiel. Quando elle
vae commigo, mamãe não lhe faz as mesmas graças.

--- Quem sabe se não anda doente?

--- Vamos nós jantar com ella amanhã?

--- Vamos... Não... Pois vamos.

Fomos jantar com a minha velha. Já lhe podia chamar assim, posto que os
seus cabellos brancos não o fossem todos nem totalmente, e o rosto
estivesse comparativamente fresco; era uma especie de mocidade
quinquagenaria ou de ancianidade viçosa, á escolha... Mas nada de
melancolias; não quero falar dos olhos molhados, á entrada e á saida.
Pouco entrou na conversação. Tambem não era differente da costumada.
José Dias falou do casamento e suas bellezas, da politica, da Europa e
da homeopathia, tio Cosme das suas molestias, prima Justina da
visinhança, ou de José Dias, quando este saía da sala.

Quando voltámos, á noite, viemos por alli a pé, falando das minhas
duvidas. Capitú novamente me aconselhou que esperassemos. Sogras eram
todas assim; lá vinha um dia e mudavam. Ao passo que me falava,
recrudescia de ternura. Dalli em deante foi cada vez mais doce commigo;
não me ia esperar á janella, para não espertar-me os ciumes, mas quando
eu subia, via no alto da escada, entre as grades da cancella, a cara
deliciosa da minha amiga e esposa, risonha como toda a nossa infancia,
Ezequiel ás vezes estava com ella; nós o haviamos acostumado a ver o
osculo da chegada e da saida, e elle enchia-me a cara de beijos.




\chapt{CXVI}{Filho do homem.}

Apalpei José Dias sobre as maneiras novas de minha mãe; ficou espantado.
Não havia nada, nem podia haver cousa nenhuma, tantos eram os louvores
incessantes que elle ouvia «á bella e virtuosa Capitú.»

--- Agora, quando os ouço, entro tambem no côro, mas a principio ficava
envergonhadissimo. Para quem chegou, como eu, a arrenegar deste
casamento, era duro confessar que elle foi uma verdadeira benção do ceu.
Que digna senhora nos saiu a creança travessa de Matacavallos! O pae é
que nos separou um pouco, em quanto não nos conheciamos, mas tudo
acabou em bem. Pois, sim, senhor, quando D.~Gloria elogia a sua nora e
comadre...

--- Então mamãe?...

--- Perfeitamente!

--- Mas, porque é que não nos visita ha tanto tempo?

--- Creio que tem andado mais achacada dos seus rheumatismos. Este anno
tem feito muito frio... Imagine a afflicção della, que andava o dia
inteiro; agora é obrigada a estar quieta, ao pé do irmão, que lá tem o
seu mal...

Quiz observar-lhe que tal razão explicava a interrupção das visitas, e
não a frieza quando iamos nós a Matacavallos; mas não estendi tão longe
a intimidade do aggregado. José Dias pediu para ver o nosso «prophetasinho»
(assim chamava a Ezequiel) e fez-lhe as festas do costume. Desta vez
falou ao modo biblico (estivera na vespera a folhear o livro de
Ezequiel, como soube depois), e perguntava-lhe: «Como vae isso, filho
do homem?» «Dize-me, filho do homem, onde estão os teus brinquedos?» «Queres
comer doce, filho do homem?»

--- Que filho do homem é esse, perguntou-lhe Capitú agastada.

--- São os modos de dizer da Biblia.

--- Pois eu não gósto delles, replicou ella com aspereza.

--- Tem razão, Capitú, concordou o aggregado. Você não imagina como a
Biblia é cheia de expressões cruas e grosseiras. Eu falava assim para
variar... Tu como vaes, meu anjo? Meu anjo, como é que eu ando na rua?

--- Não, atalhou Capitú; já lhe vou tirando esse costume de imitar os
outros.

--- Mas tem muita graça; a mim, quando elle copia os meus gestos,
parece-me que sou eu mesmo, pequenino. Outro dia chegou a fazer um
gesto de D.~Gloria, tão bem que ella lhe deu um beijo em paga. Vamos,
como é que eu ando?

--- Não, Ezequiel, disse eu, mamãe não quer. Eu mesmo achava feio tal
séstro. Alguns dos gestos já lhe iam ficando mais repetidos, como o das
mãos e pés de Escobar; ultimamente, até apanhára o modo de voltar da
cabeça deste, quando falava, e o de deixal-a cair, quando ria. Capitú
ralhava. Mas o menino era travesso, como o diabo; apenas começámos a
falar de outra cousa, saltou ao meio da sala, dizendo a José Dias:

--- O senhor anda assim.

Não podemos deixar de rir, eu mais que ninguem. A primeira pessoa que
fechou a cara, que o reprehendeu e chamou a si foi Capitú.

--- Não quero isso, ouviu?




\chapt{CXVII}{Amigos proximos.}

Já então Escobar deixára Andarahy e comprára uma casa no Flamengo, casa
que ainda alli vi, ha dias, quando me deu na gana experimentar se as
sensações antigas estavam mortas ou dormiam só; não posso dizel-o bem,
porque os somnos, quando são pesados, confundem vivos e defunctos, a
não ser a respiração. Eu respirava um pouco, mas póde ser que fosse do
mar, meio agitado. Emfim, passei, accendi um charuto, e dei por mim no
Cattete; tinha subido pela rua da Princeza, uma rua antiga... Ó ruas
antigas! ó casas antigas! ó pernas antigas! Todos nós eramos antigos, e
não é preciso dizer que no máu sentido, no sentido de velho e acabado.

Velha é a casa, mas não lhe alteraram nada. Não sei até se ainda tem o
mesmo numero. Não digo que numero é para não irem indagar e cavar a
historia. Não é que Escobar ainda lá more nem sequer viva; morreu pouco
depois, por um modo que hei de contar. Emquanto viveu, uma vez que
estavamos tão proximos, tinhamos por assim dizer uma só casa, eu vivia
na delle, elle na minha, e o pedaço de praia entre a Gloria e o
Flamengo era como um caminho de uso proprio e particular. Fazia-me
pensar nas duas casas de Matacavallos, com o seu muro de permeio.

Um historiador da nossa lingua, creio que João de Barros, põe na bocca
de um rei barbaro algumas palavras mansas, quando os portuguezes lhe
propunham estabelecer alli ao pé uma fortaleza; dizia o rei que os bons
amigos deviam ficar longe uns dos outros, não perto, para se não
zangarem como as aguas do mar que batiam furiosas no rochedo que elles
viam dalli. Que a sombra do escriptor me perdôe, se eu duvido que o rei
dissesse tal palavra nem que ella seja verdadeira. Provavelmente foi o
mesmo escriptor que a inventou para adornar o texto, e não fez mal,
porque é bonita; realmente, é bonita. Eu creio que o mar então batia na
pedra, como é seu costume, desde Ullysses e antes. Agora que a
comparação seja verdadeira é que não. Seguramente ha inimigos contiguos,
mas tambem ha amigos de perto e do peito. E o escriptor esquecia (salvo
se ainda não era do seu tempo) esquecia o adagio: longe dos olhos,
longe do coração. Nós não podiamos ter os corações agora mais perto. As
nossas mulheres viviam na casa uma da outra, nós passavamos as noites
cá ou lá conversando, jogando ou mirando o mar. Os dous pequenos
passavam dias, ora no Flamengo, ora na Gloria Como eu observasse que
podia acontecer com elles o que se dera entre mim e Capitú, acharam
todos que sim, e Sancha accrescentou que até já se iam parecendo. Eu
expliquei:

--- Não; é porque Ezequiel imita os gestos dos outros.

Escobar concordou commigo, e insinuou que alguma vez as creanças que se
frequentam muito acabam parecendo-se umas com as outras. Opinei de
cabeça, como me succedia nas materias que eu não sabia bem nem mal.
Tudo podia ser. O certo é que elles se queriam muito, e podiam acabar
casados, mas não acabaram casados.




\chapt{CXVIII}{A mão de Sancha.}

Tudo acaba, leitor; é um velho truismo, a que se póde acerescentar que
nem tudo o que dura dura muito tempo. Esta segunda parte não acha
crentes faceis; ao contrario, a ideia de que um castello de vento dura
mais que o mesmo vento de que é feito, difficilmente se despegará da
cabeça, e é bom que seja assim, para que se não perça o costume
daquellas construcções quasi eternas.

O nosso castello era solido, mas um domingo... Na vespera tinhamos
passado a noite no Flamengo, não só os dous casaes inseparaveis, como
ainda o aggregado e prima Justina. Foi então que Escobar, falando-me á
janella, disse-me que fossemos lá jantar no dia seguinte; precisavamos
falar de um projecto em familia, um projecto para os quatro.

--- Para os quatro? Uma contradança.

--- Não. Não és capaz de adivinhar o que seja, nem eu digo. Vem amanhã.

Sancha não tirava os olhos de nós durante a conversa, ao canto da
janella. Quando o marido saiu, veiu ter commigo. Perguntou-me de que é
que falaramos; disse-lhe que de um projecto que eu não sabia qual fosse;
ella pediu-me segredo, e revelou-me o que era: uma viagem á Europa
dalli a dous annos. Disse isto de costas para dentro, quasi suspirando.
O mar batia com grande força na praia; havia ressaca.

--- Vamos todos? perguntei por fim.

--- Vamos.

Sancha ergueu a cabeça e olhou para mim com tanto prazer que eu, graças
ás relações della e Capitú, não se me daria beijal-a na testa.
Entretanto, os olhos de Sancha não convidavam a expansões fraternaes,
pareciam quentes e intimativos, diziam outra cousa, e não tardou que se
afastassem da janella, onde eu fiquei olhando para o mar, pensativo. A
noite era clara.

Dalli mesmo busquei os olhos de Sancha, ao pé do piano; encontrei-os em
caminho. Pararam os quatro e ficaram deante uns dos outros, uns
esperando que os outros passassem, mas nenhuns passavam. Tal se dá na
rua entre dous teimosos. A cautela desligou-nos; eu tornei a voltar-me
para fóra. E assim posto entrei a cavar na memoria se alguma vez olhára
para ella com a mesma expressão, e fiquei incerto. Tive uma certeza só,
é que um dia pensei nella, como se pensa na bella desconhecida que
passa; mas então dar-se-hia que ella adivinhando... Talvez o simples
pensamento me transluzisse cá fóra, e ella me fugisse outr'ora irritada
ou acanhada, e agora por um movimento invencivel... Invencivel; esta
palavra foi como uma benção de padre á missa, que a gente recebe e
repete em si mesma.

--- O mar amanhã está de desafiar a gente, disse-me a voz de Escobar,
ao pé de mim.

--- Você entra no mar amanhã?

--- Tenho entrado com mares maiores, muito maiores. --- Você não
imagina o que é um bom mar em hora bravia. É preciso nadar bem, como eu,
e ter estes pulmões, --- disse elle batendo no peito, e estes braços;
apalpa.

Apalpei-lhe os braços, como se fossem os de Sancha. Custa-me esta
confissão, mas não posso supprimil-a; era jarretar a verdade. Nem só os
apalpei com essa ideia, mas ainda senti outra cousa: achei-os mais
grossos e fortes que os meus, e tive-lhes inveja; accresce que sabiam
nadar.

Quando saimos, tornei a falar com os olhos á dona da casa. A mão della
apertou muito a minha, e demorou-se mais que de costume.

A modestia pedia então, como agora, que eu visse naquelle gesto de
Sancha uma sancção ao projecto do marido e um agradecimento. Assim
devia ser, mas um fluido particular que me correu todo o corpo desviou
de mim a conclusão que deixo escripta. Senti ainda os dedos de Sancha
entre os meus, apertando uns aos outros. Foi um instante de vertigem e
de peccado. Passou depressa no relogio do tempo; quando cheguei o
relogio ao ouvido, trabalhavam só os minutos da virtude e da razão.

---... Uma senhora deliciosissima, concluiu José Dias um discurso que
vinha fazendo.

--- Deliciosissima! repeti com algum ardor, que moderei logo,
emendando-me: Realmente, uma bella noite!

--- Como devem ser todas as daquella casa, continuou o aggregado. Cá
fóra, não; cá fóra o mar está zangado; escute.

Ouvia-se o mar forte, --- como já se ouvia de casa, --- a ressaca era
grande, e, a distancia, viam-se crescer as ondas. Capitú e prima
Justina, que iam adeante, detiveram-se n'uma das voltas da praia, e
fomos conversando os quatro; mas eu conversava mal. Não havia meio de
esquecer inteiramente a mão de Sancha nem os olhos que trocámos. Agora
achava-lhes isto, agora aquillo. Os instantes do diabo intercalavam-se
nos minutos de Deus, e o relogio foi assim marcando alternativamente a
minha perdição e a minha salvação. José Dias despediu-se de nós á porta.
Prima Justina dormiu em nossa casa; iria embora, no dia seguinte,
depois do almoço e da missa. Eu recolhi-me ao meu gabinete, onde me
demorei mais que de costume. O retrato de Escobar, que eu tinha alli,
ao pé do de minha mãe, falou-me como se fosse a propria pessoa. Combati
sinceramente os impulsos que trazia do Flamengo; rejeitei a figura da
mulher do meu amigo, e chamei-me desleal. Demais, quem me affirmava que
houvesse alguma intenção daquella especie no gesto da despedida e nos
anteriores? Tudo podia ligar-se ao interesse da nossa viagem. Sancha e
Capitú eram tão amigas que seria um prazer mais para ellas irem juntas.
Quando houvesse alguma intenção sexual, quem me provaria que não era
mais que uma sensação fulgurante, destinada a morrer com a noite e o
somno? Ha remorsos que não nascem de outro peccado, nem tem maior
duração. Agarrei-me a esta hypothese que se conciliava com a mão de
Sancha, que eu sentia de memoria dentro da minha mão, quente e demorada,
apertada e apertando...

Sinceramente, eu achava-me mal entre um amigo e a attracção. A timidez
póde ser que fosse outra causa daquella crise; não é só o ceu que dá as
nossas virtudes, a timidez tambem, não contando o acaso, mas o acaso é
um mero accidente; a melhor origem dellas é o ceu. Entretanto, como a
timidez vem do ceu, que nos dá a compleição, a virtude, filha della é,
genealogicamente, o mesmo sangue celestial. Assim reflectiria, se
pudesse; mas a principio vaguei á tôa. Paixão não era nem inclinação.
Capricho seria ou quê? Ao fim de vinte minutos era nada, inteiramente
nada. O retrato de Escobar pareceu falar-me; vi-lhe a attitude franca e
simples, sacudi a cabeça e fui deitar-me.




\chapt{CXIX}{Não faça isso, querida.}

A leitora, que é minha amiga e abriu este livro com o fim de descançar
da cavatina de hontem para a valsa de hoje, quer fechal-o ás pressas,
ao ver que beiramos um abysmo. Não faça isso, querida; eu mudo de rumo.




\chapt{CXX}{Os autos.}

Na manhã seguinte accordei livre das abominações da vespera;
chamei-lhes allucinações, tomei café, percorri os jornaes e fui estudar
uns autos. Capitú e prima Justina sairam para a missa das nove, na Lapa.
A figura de Sancha desappareceu inteiramente no meio das allegações da
parte adversa, que eu ia lendo nos autos, allegações falsas,
inadmissiveis, sem apoio na lei nem nas praxes. Vi que era facil ganhar
a demanda; consultei Dalloz, Pereira e Souza...

Uma só vez olhei para o retrato de Escobar. Era uma bella photographia
tirada um anno antes. Estava de pé, sobrecasaca abotoada, a mão
esquerda no dorso de uma cadeira, a direita mettida ao peito, o olhar
ao longe para a esquerda do espectador. Tinha garbo e naturalidade. A
moldura que lhe mandei pôr não encobria a dedicatoria, escripta embaixo,
não nas costas do cartão: «Ao meu querido Bentinho o seu querido
Escobar 20 -4 -70.» Estas palavras fortaleceram-me os pensamentos
daquella manhã, e espantaram de todo as recordações da vespera.
Naquelle tempo a minha vista era boa; eu podia lel-as do logar em que
estava. Tornei aos autos.




\chapt{CXXI}{A catastrophe.}

No melhor delles, ouvi passos precipitados na escada, a campainha soou,
soaram palmas, golpes na cancella, vozes, acudiram todos, acudi eu
mesmo. Era um escravo da casa de Sancha que me chamava:

--- Para ir lá... sinhô nadando, sinhô morrendo.

Não disse mais nada, ou eu não lhe ouvi o resto. Vesti-me, deixei
recado a Capitú e corri ao Flamengo. Em caminho, fui adivinhando a
verdade. Escobar metteu-se a nadar, como usava fazer, arriscou-se um
pouco mais fóra que de costume, apesar do mar bravio, foi enrolado e
morreu. As canoas que acudiram mal puderam trazer-lhe o cadaver.




\chapt{CXXII}{O enterro.}

A viuva... Poupo-vos as lagrimas da viuva, as minhas, as da outra gente.
Sai de lá cerca de onze horas; Capitú e prima Justina esperavam-me, uma
com o parecer abatido e estupido, outra enfastiada apenas.

--- Vão fazer companhia á pobre Sanchinha; eu vou cuidar do enterro.

Assim fizemos. Quiz que o enterro fosse pomposo, e a affluencia dos
amigos foi numerosa. Praia, ruas, praça da Gloria, tudo eram carros,
muitos delles particulares. A casa, não sendo grande, não podiam lá
caber todos; muitos estavam na praia, falando do desastre, apontando o
logar em que Escobar fallecêra, ouvindo referir a chegada do morto.
José Dias ouviu tambem falar dos negocios do finado, divergindo alguns
na avaliação dos bens, mas havendo accordo em que o passivo devia ser
pequeno. Elogiavam as qualidades de Escobar. Um ou outro discutia o
recente gabinete Rio Branco; estavamos em Março de 1871. Nunca me
esqueceu o mez nem o anno.

Como eu houvesse resolvido falar no cemiterio, escrevi algumas linhas e
mostrei-as em casa a José Dias, que as achou realmente dignas do morto
e de mim. Pediu-me o papel, recitou lentamente o discurso, pesando as
palavras, e confirmou a primeira opinião; no Flamengo espalhou a
noticia. Alguns conhecidos vieram interrogar-me:

--- Então, vamos ouvil-o?

--- Quatro palavras.

Poucas mais seriam. Tinha-as escripto com receio de que a emoção me
impedisse de improvisar. No \emph{tilbury} em que andei uma ou duas
horas, não fizera mais que recordar o tempo do seminario, as relações
de Escobar, as nossas sympathias, a nossa amizade, começada, continuada
e nunca interrompida, até que um lance da fortuna fez separar para
sempre duas creaturas que promettiam ficar por muito tempo unidas. De
quando em quando enxugava os olhos. O cocheiro aventurou duas ou tres
perguntas sobre a minha situação moral; não me arrancando nada,
continuou o seu officio. Chegando a casa, deitei aquellas emoções ao
papel; tal seria o discurso.




\chapt{CXXIII}{Olhos de ressaca.}

Emfim, chegou a hora da encommendação e da partida. Sancha quiz
despedir-se do marido, e o desespero daquelle lance consternou a todos.
Muitos homens choravam tambem, as mulheres todas. Só Capitú, amparando
a viuva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria
arrancal-a dalli. A confusão era geral. No meio della, Capitú olhou
alguns instantes para o cadaver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que
não admira lhe saltassem algumas lagrimas poucas e caladas...

As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as della; Capitú enxugou-as
depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de
caricias para a amiga, e quiz leval-a; mas o cadaver parece que a
retinha tambem. Momento houve em que os olhos de Capitú fitaram o
defuncto, quaes os da viuva, sem o pranto nem palavras desta, mas
grandes e abertos, como a vaga do mar lá fóra, como se quizesse tragar
tambem o nadador da manhã.




\chapt{CXXIV}{O discurso.}

--- Vamos, são horas...

Era José Dias que me convidava a fechar o ataúde. Fechámol-o, e eu
peguei numa das argolas; rompeu o alarido final. Palavra que, quando
cheguei á porta, vi o sol claro, tudo gente e carros, as cabeças
descobertas, tive um daquelles meus impulsos que nunca chegavam á
execução: foi atirar á rua caixão, defuncto e tudo. No carro disse a
José Dias que se calasse. No cemiterio tive de repetir a cerimonia da
casa, desatar as correias, e ajudar a levar o feretro á cova. O que
isto me custou imagina. Descido o cadaver á cova, trouxeram a cal e a
pá; sabes disto, terás ido a mais de um enterro, mas o que não sabes
nem póde saber nenhum dos teus amigos, leitor, ou qualquer outro
extranho, é a crise que me tomou quando vi todos os olhos em mim, os
pés quietos, as orelhas attentas, e, ao cabo de alguns instantes de
total silencio, um sussurro vago, algumas vozes interrogativas, signaes,
e alguem, José Dias, que me dizia ao ouvido:

--- Então, fale.

Era o discurso. Queriam o discurso. Tinham jus ao discurso annunciado.
Machinalmente, metti a mão no bolso, saquei o papel e li-o aos
trambolhões, não todo, nem seguido, nem claro; a voz parecia-me entrar
em vez de sair, as mãos tremiam-me. Não era só a emoção nova que me
fazia assim, era o proprio texto, as memorias do amigo, as saudades
confessadas, os louvores á pessoa e aos seus meritos; tudo isto que eu
era obrigado a dizer e dizia mal. Ao mesmo tempo, temendo que me
adivinhassem a verdade, forcejava por escondel-a bem. Creio que poucos
me ouviram, mas o gesto geral foi de comprehensão e de approvação. As
mãos que me deram a apertar eram de solidariedade; alguns diziam: «Muito
bonito! muito bem! magnifico!» José Dias achou que a eloquencia
estivera na altura da piedade. Um homem, que me pareceu jornalista,
pediu-me licença para levar o manuscripto e imprimil-o. Só a minha
grande turvação recusaria um obsequio tão simples.




\chapt{CXXV}{Uma comparação.}

Priamo julga-se o mais infeliz dos homens, por beijar a mão daquelle
que lhe matou o filho. Homero é que relata isto, e é um bom autor, não
obstante contal-o em verso, mas ha narrações exactas em verso, e até
mau verso. Compara tu a situação de Priamo com a minha; eu acabava de
louvar as virtudes do homem que recebera defuncto aquelles olhos... É
impossivel que algum Homero não tirasse da minha situação muito melhor
effeito, ou quando menos, egual. Nem digas que nos faltam Homeros, pela
causa apontada em Camões; não, senhor, faltam-nos, é certo, mas é
porque os Priamos procuram a sombra e o silencio. As lagrimas, se as
têm, são enxugadas atraz da porta, para que as caras appareçam limpas e
serenas; os discursos são antes de alegria que de melancolia, e tudo
passa como se Achilles não matasse Heitor.




\chapt{CXXVI}{Scismando.}

Pouco depois de sair do cemiterio, rasguei o discurso e deitei os
pedaços pela portinhola fóra, sem embargo dos esforços de José Dias
para impedil-o.

--- Não presta para nada, disse-lhe eu, e como posso ter a tentação de
dal-o a imprimir, fica já destruido de uma vez. Não presta, não vale
nada.

José Dias demonstrou longamente o contrario, depois elogiou o enterro,
e por ultimo fez o panegyrico do morto, uma grande alma, espirito
activo, coração recto, amigo, bom amigo, digno da esposa amantissima
que Deus lhe dera...

Neste ponto do discurso, deixei-o falar sósinho e peguei a scismar
commigo. O que scismei foi tão escuro e confuso que não me deixou tomar
pé. No Cattete mandei parar o carro, disse a José Dias que fosse buscar
as senhoras ao Flamengo e as levasse para casa; eu iria a pé.

--- Mas...

--- Vou fazer uma visita.

A razão d'isto era acabar de scismar, e escolher uma resolução que
fosse adequada ao momento. O carro andaria mais depressa que as pernas;
estas iriam pausadas ou não, podiam afrouxar o passo, parar, arrepiar
caminho, e deixar que a cabeça scismasse á vontade. Fui andando e
scismando. Tinha já comparado o gesto de Sancha na vespera e o
desespero daquelle dia; eram inconciliaveis. A viuva era realmente
amantissima. Assim se desvaneceu de todo a illusão da minha vaidade.
Não seria o mesmo caso de Capitú? Cuidei de recompôr-lhe os olhos, a
posição em que a vi, o ajuntamento de pessoas que devia naturalmente
impôr-lhe a dissimulação, se houvesse algo que dissimular. O que aqui
vae por ordem logica e deductiva, tinha sido antes uma barafunda de
ideias e sensações, graças aos solavancos do carro e ás interrupções de
José Dias. Agora, porém, raciocinava e evocava claro e bem. Conclui de
mim para mim que era a antiga paixão que me offuscava ainda e me fazia
desvairar como sempre.

Quando cheguei a esta conclusão final, chegava tambem á porta de casa,
mas voltei para traz, e subi outra vez a rua do Cattete. Eram as
duvidas que me affligiam ou a necessidade de affligir Capitú com a
minha grande demora? Ponhamos que eram as duas causas; andei largo
espaço, até que me senti socegar, e endireitei para casa. Batiam oito
horas numa padaria.




\chapt{CXXVII}{O barbeiro.}

Perto de casa, havia um barbeiro, que me conhecia de vista, amava a
rabeca e não tocava inteiramente mal. Na occasião em que ia passando,
executava não sei que peça. Parei na calçada a ouvil-o (tudo são
pretextos a um coração agoniado), elle viu-me, e continuou a tocar. Não
attendeu a um freguez, e logo a outro, que alli foram, a despeito da
hora e de ser domingo, confiar-lhe as caras á navalha. Perdeu-os sem
perder uma nota; ia tocando para mim. Esta consideração fez-me chegar
francamente á porta da loja, voltado para elle. Ao fundo, levantando a
cortina de chita que fechava o interior da casa, vi apontar uma moça
trigueira, vestido claro, flôr no cabello. Era a mulher delle; creio
que me descobriu de dentro, e veiu agradecer-me com a presença o favor
que eu fazia ao marido. Se me não engano, chegou a dizel-o com os olhos.
Quanto ao marido, tocava agora com mais calor; sem ver a mulher, sem
ver freguezes, grudava a face ao instrumento, passava a alma ao arco, e
tocava, tocava...

Divina arte! Ia-se formando um grupo, deixei a porta da loja e vim
andando para casa; enfiei pelo corredor e subi as escadas sem estrepito.
Nunca me esqueceu o caso deste barbeiro, ou por estar ligado a um
momento grave da minha vida, ou por esta maxima, que os compiladores,
pódem tirar daqui e inserir nos compendios de escola. A maxima é que a
gente esquece devagar as boas acções que pratíca, e verdadeiramente não
as esquece nunca. Pobre barbeiro! perdeu duas barbas naquella noite,
que eram o pão do dia seguinte, tudo para ser ouvido de um transeunte.
Suppõe agora que este, em vez de ir-se embora, como eu fui, ficava á
porta a ouvil-o e a namorar-lhe a mulher; então é que elle, todo arco,
todo rabeca, tocaria desesperadamente. Divina arte!




\chapt{CXXVIII}{Punhado de successos.}

Como ia dizendo, subi as escadas sem estrepito, empurrei a cancella,
que estava apenas encostada, e dei com prima Justina e José Dias
jogando cartas na saleta proxima. Capitú levantou-se do canapé e veiu a
mim. O rosto della era agora sereno e puro. Os outros suspenderam o
jogo, e todos falámos do desastre e da viuva. Capitú censurou a
imprudencia de Escobar, e não dissimulou a tristeza que lhe trazia a
dôr da amiga. Perguntei-lhe por que não ficára com Sancha aquella noite.

--- Tem lá muita gente; ainda assim offereci-me, mas não quiz. Tambem
lhe disse que era melhor vir para cá, e passar aqui uns dias comnosco.

--- Tambem não quiz?

--- Tambem não.

--- Entretanto, a vista do mar ha de ser-lhe penosa, todas as manhãs,
ponderou José Dias, e não sei como poderá...

--- Mas, passa; o que é que não passa? atalhou prima Justina.

E como em torno desta ideia, começassemos uma troca de palavras, Capitú
saiu para ir ver se o filho dormia. Ao passar pelo espelho, concertou
os cabellos tão demoradamente que pareceria affectação, se não
soubessemos que ella era muito amiga de si. Quando tornou trazia os
olhos vermelhos; disse-nos que, ao mirar o filho dormindo pensára na
filhinha de Sancha, e na afflicção da viuva. E, sem se lhe dar das
visitas, nem reparar se havia algum criado, abraçou-me e disse-me que,
se quizesse pensar nella, era preciso pensar primeiro na minha vida.
José Dias achou a phrase «lindissima», e perguntou a Capitú porque é
que não fazia versos. Tentei metter o caso á bulha, e assim acabámos a
noite.

No dia seguinte, arrependi-me de haver rasgado o discurso, não que
quizesse dal-o a imprimir, mas era lembrança do finado. Pensei em
recompôl-o, mas só achei phrases soltas, que uma vez juntas não tinham
sentido. Tambem pensei em fazer outro, mas era já difficil, e podia ser
apanhado em falso pelos que me tinham ouvido no cemiterio. Quanto a
recolher os pedacinhos de papel deitados á rua, era tarde; estariam já
varridos.

Inventariei as lembranças de Escobar, livros, um tinteiro de bronze,
uma bengala de marfim, um passaro, o album de Capitú, duas paizagens do
Paraná e outras. Tambem elle as possuia de minha mão. Vivemos assim a
trocar memorias e regalos, ora em dia de annos, ora sem razão
particular. Tudo isso me empanava os olhos... Vieram os jornaes do dia:
davam noticia do desastre e da morte de Escobar, os estudos e os
negocios deste, as qualidades pessoaes, a sympathia do commercio, e
tambem falavam dos bens deixados, da mulher e da filha. Tudo isso foi
na segunda-feira. Na terça-feira foi aberto o testamento, que me
nomeava segundo testamenteiro; o primeiro logar cabia á mulher. Não me
deixava nada, mas as palavras que me escrevera em carta separada eram
sublimes de amizade e estima. Capitú desta vez chorou muito; mas.
compoz-se depressa.

Testamento, inventario, tudo andou quasi tão depressa como aqui vae
dito. Ao cabo de pouco tempo, Sancha retirou-se para a casa dos
parentes no Paraná.




\chapt{CXXIX}{A D.~Sancha.}

D.~Sancha, peço-lhe que não leia este livro; ou, se o houver lido até
aqui, abandone o resto. Basta fechal-o; melhor será queimal-o, para lhe
não dar tentação e abril-o outra vez. Se, apesar do aviso, quizer ir
até o fim, a culpa é sua; não respondo pelo mal que receber. O que já
lhe tiver feito, contando os gestos daquelle sabbado, esse acabou, uma
vez que os acontecimentos, e eu com elles, desmentimos a minha illusão;
mas o que agora a alcançar, esse é indelevel. Não, amiga minha, não
leia mais. Vá envelhecendo, sem marido nem filha, que eu faço a mesma
cousa, e é ainda o melhor que se póde fazer depois da mocidade. Um dia,
iremos daqui até á porta do ceu, onde nos encontraremos renovados, como
as plantas novas, \emph{come piante novelle},

Rinovellate di novelle fronde.

O resto em Dante.




\chapt{CXXX}{Um dia...}

Porquanto, um dia Capitú quiz saber o que é que me fazia andar calado e
aborrecido. E propoz-me a Europa, Minas, Petropolis, uma serie de
bailes, mil desses remedios aconselhados aos melancolicos. Eu não sabia
que lhe respondesse; recusei as diversões. Como insistisse,
repliquei-lhe que os meus negocios andavam mal. Capitú sorriu para
animar-me. E que tinha que andassem mal? Tornariam a andar bem, e até
lá as joias, os objectos de algum valor seriam vendidos, e iriamos
residir em algum becco. Viveriamos socegados e esquecidos; depois
tornariamos á tona da agua. A ternura com que me disse isto era de
commover as pedras. Pois nem assim. Respondi-lhe seccamente que não era
preciso vender nada. Deixei-me estar calado e aborrecido. Ella
propoz-me jogar cartas ou damas, um passeio a pé, uma visita a
Matacavallos; e, como eu não acceitasse nada, foi para a sala, abriu o
piano, e começou a tocar; eu aproveitei a ausencia, peguei do chapéo e
saí.

... Perdão, mas este capitulo devia ser precedido de outro, em que
contasse um incidente, occorrido poucas semanas antes, dous mezes
depois da partida de Sancha. Vou escrevel-o; podia antepôl-o a este,
antes de mandar o livro ao prelo, mas custa muito alterar o numero das
paginas; vae assim mesmo, depois a narração seguirá direita até o fim.
Demais, é curto.




\chapt{CXXXI}{Anterior ao anterior.}

Foi o caso que a minha vida era outra vez doce e placida, a banca do
advogado rendia-me bastante, Capitú estava mais bella, Ezequiel ia
crescendo. Começava o anno de 1872.

--- Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma espressão exquisita?
perguntou-me Capitú. Só vi duas pessoas assim, um amigo de papae e o
defuncto Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira para o lado
de papae, não precisa revirar os olhos, assim, assim...

Era depois de jantar; estavamos ainda á mesa, Capitú brincava com o
filho, ou elle com ella, ou um com outro, porque, em verdade,
queriam-se muito, mas é tambem certo que elle me queria ainda mais a
mim. Approximei-me de Ezequiel, achei que Capitú tinha razão; eram os
olhos de Escobar, mas não me pareceram exquisitos por isso. Afinal não
haveria mais que meia duzia de expressões no mundo, e muitas
semelhanças se dariam naturalmente. Ezequiel não entendeu nada, olhou
espantado para ella e para mim, e afinal saltou-me ao collo:

--- Vamos passear, papae?

--- Logo, meu filho.

Capitú, alheia a ambos, fitava agora a outra borda da mesa; mas,
dizendo-lhe eu que, na belleza, os olhos de Ezequiel saíam aos da mãe,
Capitú sorriu abanando a cabeça com um ar que nunca achei em mulher
alguma, provavelmente porque não gostei tanto das outras. As pessoas
valem o que vale a affeição da gente, e é d'ahi que mestre Povo tirou
aquelle adagio que quem o feio ama bonito lhe parece. Capitú tinha meia
duzia de gestos unicos na terra. Aquelle entrou-me pela alma dentro.
Assim fica explicado que eu corresse á minha esposa e amiga e lhe
enchesse a cara de beijos; mas este outro incidente não é radicalmente
necessario á comprehensão do capitulo passado e dos futuros; fiquemos
nos olhos de Ezequiel.




\chapt{CXXXII}{O debuxo e o colorido.}

Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa
inteira, iam-se apurando com o tempo. Eram como um debuxo primitivo que
o artista vae enchendo e colorindo aos poucos, e a figura entra a ver,
sorrir, palpitar, falar quasi, até que a familia pendura o quadro na
parede, em memoria do que foi e já não póde ser. Aqui podia ser e era.
O costume valeu muito contra o effeito da mudança; mas a mudança fez-se,
não á maneira de theatro, fez-se como a manhã que aponta vagarosa,
primeiro que se possa ler uma carta, depois lê-se a carta na rua, em
casa, no gabinete, sem abrir as janellas; a luz coada pelas persianas
basta a distinguir as lettras. Li a carta, mal a principio e não toda,
depois fui lendo melhor. Fugia-lhe, é certo, mettia o papel no bolso,
corria a casa, fechava-me, não abria as vidraças, chegava a fechar os
olhos. Quando novamente abria os olhos e a carta, a lettra era clara e
a noticia clarissima.

Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminario e do Flamengo
para se sentar commigo á mesa, receber-me na escada, beijar-me no
gabinete de manhã, ou pedir-me á noite a benção do costume. Todas essas
acções eram repulsivas; eu tolerava-as e praticava-as, para me não
descobrir a mim mesmo e ao mundo. Mas o que pudesse dissimular ao mundo,
não podia fazel-o a mim, que vivia mais perto de mim que ninguem.
Quando nem mãe nem filho estavam commigo o meu desespero era grande, e
eu jurava matal-os a ambos, ora de golpe, ora devagar, para dividir
pelo tempo da morte todos os minutos da vida embaçada e agoniada.
Quando, porém, tornava a casa e via no alto da escada a creaturinha que
me queria e esperava, ficava desarmado e differia o castigo de um dia
para outro.

O que se passava entre mim e Capitú naquelles dias sombrios, não se
notará aqui, por ser tão miudo e repetido, e já tão tarde que não se
poderá dizel-o sem falha nem canceira. Mas o principal irá. E o
principal é que os nossos temporaes eram agora continuos e terriveis.
Antes de descoberta aquella má terra da verdade, tivemos outros de
pouca dura; não tardava que o ceu se fizesse azul, o sol claro e o mar
chão, por onde abriamos novamente as velas que nos levavam ás ilhas e
costas mais bellas do universo, até que outro pé de vento desbaratava
tudo, e nós, postos á capa, esperavamos outra bonança, que não era
tardia nem dubia, antes total, proxima e firme.

Releva-me estas metaphoras; cheiram ao mar e á maré que deram morte ao
meu amigo e comborço Escobar. Cheiram tambem aos olhos de ressaca de
Capitú. Assim, posto sempre fosse homem de terra, conto aquella parte
da minha vida, como um marujo contaria o seu naufragio.

Já entre nós só faltava dizer a palavra ultima; nós a liamos, porém,
nos olhos um do outro, vibrante e decisiva, e sempre que Ezequiel vinha
para nós não fazia mais que separar-nos. Capitú propoz mettel-o em um
collegio, donde só viesse aos sabbados; custou muito ao menino acceitar
esta situação.

--- Quero ir com papae! Papae ha de ir commigo! bradava elle.

Fui eu mesmo que o levei um dia de manhã, uma segunda-feira. Era no
antigo largo da Lapa, perto da nossa casa. Levei-o a pé, pela mão, como
levára o ataúde do outro. O pequeno ia chorando e fazendo perguntas a
cada passo, se voltaria para casa, e quando, e se eu iria vel-o...

--- Vou.

--- Papae não vae!

--- Vou sim.

--- Jura, papae!

--- Pois sim.

--- Papae não diz que jura.

--- Pois juro.

E lá o levei e deixei. A ausencia temporaria não atalhou o mal, e toda
a arte fina de Capitú para fazel-o attenuar, ao menos, foi como se não
fosse; eu sentia-me cada vez peor. A mesma situação nova aggravou a
minha paixão. Ezequiel vivia agora mais fóra da minha vista; mas a
volta delle, ao fim das semanas, ou pelo descostume em que eu ficava,
ou porque o tempo fosse andando e completando a semelhança, era a volta
de Escobar mais vivo e ruidoso. Até a voz; dentro de pouco, já me
parecia a mesma. Aos sabbados, buscava não jantar em casa e só entrar
quando elle estivesse dormindo; mas não escapava ao domingo, no
gabinete, quando eu me achava entre jornaes e autos. Ezequiel entrava
turbulento, expansivo, cheio de riso e de amor, porque o demo do
pequeno cada vez morria mais por mim. Eu, a falar verdade, sentia agora
uma aversão que mal podia disfarçar, tanto a ella como aos outros. Não
podendo encobrir inteiramente esta disposição moral, cuidava de me não
fazer encontradiço com elle, ou só o menos que pudesse; ora tinha
trabalho que me obrigava a fechar o gabinete, ora saía ao domingo para
ir passear pela cidade e arrabaldes o meu mal secreto.




\chapt{CXXXIII}{Uma ideia.}

Um dia, --- era uma sexta-feira, --- não pude mais. Certa ideia, que
negrejava em mim, abriu as azas e entrou a batel-as de um lado para
outro, como fazem as ideias que querem sair. O ser sexta-feira creio
que foi acaso, mas tambem póde ter sido proposito; fui educado no
terror daquelle dia; ouvi cantar balladas em casa, vindas da roça e da
antiga metropole, nas quaes a sexta-feira era o dia de agouro.
Entretanto, não havendo almanaks no cerebro, é provavel que a ideia não
batesse as azas senão pela necessidade que sentia de vir ao ar e á vida.
A vida é tão bella que a mesma ideia da morte precisa de vir primeiro a
ella, antes de se ver cumprida. Já me vás entendendo; lê agora outro
capitulo.




\chapt{CXXXIV}{O dia de sabbado.}

A ideia saiu finalmente do cerebro. Era noite, e não pude dormir, por
mais que a sacudisse de mim. Tambem nenhuma noite me passou tão curta.
Amanheceu, quando cuidava não ser mais que uma ou duas horas. Sai,
suppondo deixar a ideia em casa; ella veiu commigo. Cá fóra tinha a
mesma côr escura, as mesmas azas trepidas, e posto avoasse com ellas,
era como se fosse fixa; eu a levava na retina, não que me encobrisse as
cousas externas, mas via-as atravez della, com a côr mais pallida que
de costume, e sem se demorarem nada.

Não me lembra bem o resto do dia. Sei que escrevi algumas cartas,
comprei uma substancia, que não digo, para não espertar o desejo de
proval-a. A pharmacia falliu, é verdade; o dono fez-se banqueiro, e o
banco prospera. Quando me achei com a morte no bolso senti tamanha
alegria como se acabasse de tirar a sorte grande, ou ainda maior,
porque o premio da loteria gasta-se, e a morte não se gasta. Fui a casa
de minha mãe, com o fim de despedir-me, a titulo de visita. Ou de
verdade ou por illusão, tudo alli me pareceu melhor nesse dia, minha
mãe menos triste, tio Cosme esquecido do coração, prima Justina da
lingua. Passei uma hora em paz. Cheguei a abrir mão do projecto. Que
era preciso para viver? Nunca mais deixar aquella casa, ou prender
aquella hora a mim mesmo...




\chapt{CXXXV}{Othello.}

Jantei fóra. De noite fui ao theatro. Representava-se justamente \emph{Othello},
que eu não vira nem lera nunca; sabia apenas o assumpto, e estimei a
coincidencia. Vi as grandes raivas do mouro, por causa de um lenço, ---
um simples lenço! --- e aqui dou materia á meditação dos psychologos
deste e de outros continentes, pois não me pude furtar á observação de
que um lenço bastou a accender os ciumes de Othello e compor a mais
sublime tragedia deste mundo. Os lenços perderam-se, hoje são precisos
os proprios lençóes; alguma vez nem lençóes ha, e valem só as camisas.
Taes eram as ideias que me iam passando pela cabeça, vagas e turvas, á
medida que o mouro rolava convulso, e Iago distilava a sua calumnia.
Nos intervallos não me levantava da cadeira; não queria expôr-me a
encontrar algum conhecido. As senhoras ficavam quasi todas nos
camarotes, emquanto os homens iam fumar. Então eu perguntava a mim
mesmo se alguma daquellas. não teria amado alguem que jazesse agora no
cemiterio, e vinham outras incoherencias, até que o panno subia e
continuava a peça. O ultimo acto mostrou-me que não eu, mas Capitú
devia morrer. Ouvi as supplicas de Desdemona, as suas palavras amorosas
e puras, e a furia do mouro, e a morte que este lhe deu entre applausos
freneticos do publico.

--- E era innocente, vinha eu dizendo rua abaixo; --- que faria o
publico, se ella devéras fosse culpada, tão culpada como Capitú? E que
morte lhe daria o mouro? Um travesseiro não bastaria; era preciso
sangue e fogo, um fogo intenso e vasto, que a consumisse de todo, e a
reduzisse a pó, e o pó seria lançado ao vento, como eterna extincção...

Vaguei pelas ruas o resto da noite. Ceei, é verdade, um quasi nada, mas
o bastante para ir até á manhã. Vi as ultimas horas da noite e as
primeiras do dia, vi os derradeiros passeadores e os primeiros
varredores, as primeiras carroças, os primeiros ruidos, os primeiros
albores, um dia que vinha depois do outro e me veria ir para nunca mais
voltar. As ruas que eu andava como que me fugiam por si mesmas. Não
tornaria a contemplar o mar da Gloria, nem a serra dos Orgãos, nem a
fortaleza de Santa-Cruz e as outras. A gente que passava não era tanta,
como nos dias communs da semana, mas era já numerosa e ia a algum
trabalho, que repetiria depois; eu é que não repetiria mais nada.

Cheguei a casa, abri a porta devagarinho, subi pé ante-pé, e metti-me
no gabinete; iam dar seis horas. Tirei o veneno do bolso, fiquei em
mangas de camisa, e escrevi ainda uma carta, a ultima, dirigida a
Capitú. Nenhuma das outras era para ella; senti necessidade de lhe
dizer uma palavra em que lhe ficasse o remorso da minha morte. Escrevi
dous textos. O primeiro queimei-o por ser longo e diffuso. O segundo
continha só o necessario, claro e breve. Não lhe lembrava o nosso
passado, nem as lutas havidas, nem alegria alguma; falava-lhe só de
Escobar e da necessidade de morrer.




\chapt{CXXXVI}{A chicara de café.}

O meu plano foi esperar o café, dissolver nelle a droga e ingeril-a.
Até lá, não tendo esquecido de todo a minha historia romana, lembrou-me
que Catão, antes de se matar, leu e releu um livro de Platão. Não tinha
Platão commigo; mas um tomo truncado de Plutarcho, em que era narrada a
vida do celebre romano, bastou-me a occupar aquelle pouco tempo, e,
para em tudo imital-o, estirei-me no canapé. Nem era só imital-o nisso;
tinha necessidade de incutir em mim a coragem delle, assim como elle
precisára dos sentimentos do philosopho, para intrepidamente morrer. Um
dos males da ignorancia é não ter este remedio á ultima hora. Ha muita
gente que se mata sem elle, e nobremente expira; mas estou que muita
mais gente poria termo aos seus dias, se pudesse achar essa especie de
cocaina moral dos bons livros. Entretanto, querendo fugir a qualquer
suspeita de imitação, lembra-me bem que, para não ser encontrado ao pé
de mim o livro de Plutarcho, nem ser dada a noticia nas gazetas com a
da côr das calças que eu então vestia, assentei de pôl-o novamente no
seu logar, antes de beber o veneno.

O copeiro trouxe o café. Ergui-me, guardei o livro, e fui para a mesa
onde ficára a chicara. Já a casa estava em rumores; era tempo de acabar
commigo. A mão tremeu-me ao abrir o papel em que trazia a droga
embrulhada. Ainda assim tive animo de despejar a substancia na chicara,
e comecei a mexer o café, os olhos vagos, a memoria em Desdemona
innocente; o espectaculo da vespera vinha intrometter-se na realidade
da manhã. Mas a photographia de Escobar deu-me o animo que me ia
faltando; lá estava elle, com a mão nas costas da cadeira, a olhar ao
longe...

--- Acabemos com isto, pensei.

Quando ia a beber, cogitei se não seria melhor esperar que Capitú e o
filho saissem para a missa; beberia depois; era melhor. Assim disposto,
entrei a passear no gabinete. Ouvi a voz de Ezequiel no corredor, vi-o
entrar e correr a mim bradando:

--- Papae! papae!

Leitor, houve aqui um gesto que eu não descrevo por havel-o
inteiramente esquecido, mas crê que foi bello e tragico. Effectivamente,
a figura do pequeno fez-me recuar até dar de costas na estante.
Ezequiel abraçou-me os joelhos, esticou-se na ponta dos pés, como
querendo subir e dar-me o beijo do costume; e repetia, puxando-me:

--- Papae! papae!




\chapt{CXXXVII}{Segundo impulso.}

Se eu não olhasse para Ezequiel, é provavel que não estivesse aqui
escrevendo este livro, porque o meu primeiro impeto foi correr ao café
e bebel-o. Cheguei a pegar na chicara, mas o pequeno beijava-me a mão,
como de costume, e a vista delle, como o gesto, deu-me outro impulso
que me custa dizer aqui; mas vá lá, diga-se tudo. Chamem-me embora
assassino; não serei eu que os desdiga ou contradiga; o meu segundo
impulso foi criminoso. Inclinei-me e perguntei a Ezequiel se já tomára
café.

--- Já, papae; vou á missa com mamãe.

--- Toma outra chicara, meia chicara só.

--- E papae?

--- Eu mando vir mais; anda, bebe!

Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a chicara, tão tremulo que quasi a
entornei, mas disposto a fazel-a cair pela guela abaixo, caso o sabor
lhe repugnasse, ou a temperatura, porque o café estava frio... Mas não
sei que senti que me fez recuar. Puz a chicara em cima da mesa, e dei
por mim a beijar doudamente a cabeça do menino.

--- Papae! papae! exclamava Ezequiel

--- Não, não, eu não sou teu pae!




\chapt{CXXXVIII}{Capitú que entra.}

Quando levantei a cabeça, dei com a figura de Capitú deante de mim. Eis
ahi outro lance, que parecera de theatro, e é tão natural como o
primeiro, uma vez que a mãe e o filho iam á missa, e Capitú não saía
sem falar-me. Era já um falar secco e breve; a mór parte das vezes, eu
nem olhava para ella. Ella olhava sempre, esperando.

Desta vez, ao dar com ella, não sei se era dos meus olhos, mas Capitú
pareceu-me livida. Seguiu-se um daquelles silencios, a que, sem mentir,
se póde chamar de um seculo, tal é a extensão do tempo nas grandes
crises. Capitú recompoz-se; disse ao filho que se fosse embora, e
pediu-me que lhe explicasse...

--- Não ha que explicar, disse eu.

--- Ha tudo; não entendo as tuas lagrimas nem as de Ezequiel. Que houve
entre vocês?

--- Não ouviu o que lhe disse?

Capitú respondeu que ouvira choro e rumor de palavras. Eu creio que
ouvira tudo claramente, mas confessal-o seria perder a esperança do
silencio e da reconciliação; por isso negou a audiencia e confirmou
unicamente a vista. Sem lhe contar o episodio do café, repeti-lhe as
palavras do final do capitulo.

--- O que? perguntou ella como se ouvira mal.

--- Que não é meu filho.

Grande foi a estupefacção de Capitú, e não menor a indignação que lhe
suecedeu, tão naturaes ambas que fariam duvidar as primeiras
testemunhas de vista do nosso fôro. Já ouvi que as ha para varios casos,
questão de preço; eu não creio, tanto mais que a pessoa que me contou
isto acabava de perder uma demanda. Mas, haja ou não testemunhas
alugadas, a minha era verdadeira; a propria natureza jurava por si, e
eu não queria duvidar della. Assim que, sem attender á linguagem de
Capitú, aos seus gestos, á dôr que a retorcia, a cousa nenhuma, repeti
as palavras ditas duas vezes com tal resolução que a fizeram afrouxar.
Após alguns instantes, disse-me ella:

--- Só se póde explicar tal injuria pela convicção sincera; entretanto,
você que era tão cioso dos menores gestos, nunca revelou a menor sombra
de desconfiança. Que é que lhe deu tal ideia? Diga, --- continuou vendo
que eu não respondia nada, --- diga tudo; depois do que ouvi, posso
ouvir o resto, não póde ser muito. Que é que lhe deu agora tal
convicção? Ande, Bentinho, fale! fale! Despeça-me daqui, mas diga tudo
primeiro.

--- Ha cousas que se não dizem.

--- Que se não dizem só metade; mas já que disse metade, diga tudo.

Tinha-se sentado n'uma cadeira ao pé da mesa. Podia estar um tanto
confusa, o porte não era de accusada. Pedi-lhe ainda uma vez que não
teimasse.

--- Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você
acha que tenho defesa, ou peço-lhe desde já a nossa separação: não
posso mais!

--- A separação é cousa decidida, redargui pegando-lhe na proposta. Era
melhor que a fizessemos por meias palavras ou em silencio; cada um iria
com a sua ferida. Uma vez, porém, que a senhora insiste, aqui vae o que
lhe posso dizer, e é tudo.

Não disse tudo; mal pude alludir aos amores de Escobar sem proferir-lhe
o nome. Capitú não poude deixar de rir, de um riso que eu sinto não
poder transcrever aqui; depois, em um tom juntamente ironico e
melancolico:

--- Pois até os defunctos! Nem os mortos escapam aos seus ciumes!

Concertou a capinha e ergueu-se. Suspirou, creio que suspirou, emquanto
eu, que não pedia outra cousa mais que a plena justificação della,
disse-lhe não sei que palavras adequadas a este fim. Capitú olhou para
mim com desdem, e murmurou:

--- Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de
Deus explicará tudo... Ri-se? É natural; apesar do seminario, não
acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos nisto; não nos fica bem
dizer mais nada.




\chapt{CXXXIX}{A photographia.}

Palavra que estive a pique de crer que era victima de uma grande
illusão, uma phantasmagoria de allucinado; mas a entrada repentina de
Ezequiel, gritando --- «Mamãe! mamãe! é hora da missa!» restituiu-me á
consciencia da realidade. Capitú e eu, involuntariamente, olhámos para
a photographia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a
confusão della fez-se confissão pura. Este era aquelle; havia por força
alguma photographia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno
Ezequiel. De bocca, porém, não confessou nada; repetiu as ultimas
palavras, puxou do filho e sairam para a missa.




\chapt{CXL}{Volta da egreja.}

Ficando só, era natural pegar do café e bebel-o. Pois, não, senhor;
tinha perdido o gosto á morte. A morte era uma solução; eu acabava de
achar outra, tanto melhor quanto que não era definitiva, e deixava a
porta aberta á reparação, se devesse havel-a. Não disse \emph{perdão},
mas \emph{reparação}, isto é, justiça. Qualquer que fosse a razão do
acto, rejeitei a morte, e esperei o regresso de Capitú. Este foi mais
demorado que de costume; cheguei a temer que ella houvesse ido á casa
de minha mãe, mas não foi.

--- Confiei a Deus todas as minhas amarguras, disse-me Capitú ao voltar
da egreja; ouvi dentro de mim que a nossa separação é indispensavel, e
estou ás suas ordens.

Os olhos com que me disse isto eram embuçados, como espreitando um
gesto de recusa ou de espera. Contava com a minha debilidade ou com a
propria incerteza em que eu podia estar da paternidade do outro, mas
falhou tudo. Acaso haveria em mim um homem novo, um que apparecia agora,
desde que impressões novas e fortes o descobriam? Nesse caso era um
homem apenas encoberto. Respondi-lhe que ia pensar, e fariamos o que eu
pensasse. Em verdade vos digo que tudo estava pensado e feito.

No intervallo, evocára as palavras do finado Gurgel, quando me mostrou
em casa delle o retrato da mulher, parecido com Capitú. Has de
lembrar-te dellas; se não, relê o capitulo, cujo numero não ponho aqui,
por não me lembrar já qual seja, mas não fica longe. Reduzem-se a dizer
que ha taes semelhanças inexplicaveis... Pelo dia adeante, e nos outros
dias, Ezequiel ia ter commigo ao gabinete, e as feições do pequeno
davam ideia clara das do outro, ou eu ia attentando mais nellas. De
envolta, lembravam-me episodios vagos e remotos, palavras, encontros e
incidentes, tudo em que a minha cegueira não poz malicia, e a que
faltou o meu velho ciume. Uma vez em que os fui achar sósinhos e
calados, um segredo que me fez rir, uma palavra della sonhando, todas
essas reminiscencias vieram vindo agora, em tal atropello que me
atordoaram... E porque os não esganei um dia, quando desviei os olhos
da rua onde estavam duas andorinhas trepadas no fio telegraphico?
Dentro, as minhas outras andorinhas estavam trepadas no ar, os olhos
enfiados nos olhos, mas tão cautelosos que se desenfiaram logo,
dizendo-me uma palavra amiga e alegre. Contei-lhes o namoro das
andorinhas de fóra, e acharam-lhe graça; Escobar declarou que, para
elle, seria melhor se as andorinhas, em vez de trepadas no fio de arame,
estivessem á mesa do jantar cosidas. «Nunca comi os ninhos dellas,
continuou, mas devem ser bons, se os chins os inventaram.» E ficámos a
tratar dos chins e dos classicos que falaram delles, emquanto Capitú,
confessando que a aborreciamos, foi a outros cuidados. Agora
lembrava-me tudo o que então me pareceu nada.




\chapt{CXLI}{A solução.}

Aqui está o que fizemos. Pegámos em nós e fomos para a Europa, não
passear, nem ver nada, novo nem velho; paramos na Suissa. Uma
professora do Rio-Grande, que foi comnosco, ficou de companhia a Capitú,
ensinando a lingua materna a Ezequiel, que apprenderia o resto nas
escolas do paiz. Assim regulada a vida, tornei ao Brazil.

Ao cabo de alguns mezes, Capitú começára a escrever-me cartas, a que
respondi com brevidade e sequidão. As della eram submissas, sem odio,
acaso affectuosas, e para o fim saudosas; pedia-me que a fosse ver.
Embarquei um anno depois, mas não a procurei, e repeti a viagem com o
mesmo resultado. Na volta, os que se lembravam della, queriam noticias,
e eu dava-lh'as, como se acabasse de viver com ella; naturalmente as
viagens eram feitas com o intuito de simular isto mesmo, e enganar a
opinião. Um dia, finalmente...




\chapt{CXLII}{Uma santa.}

Entenda-se que, se nas viagens que fiz á Europa, José Dias não foi
commigo, não é que lhe faltasse vontade; ficava de companhia a tio
Cosme, quasi invalido, e a minha mãe, que envelheceu depressa. Tambem
elle estava velho, posto que rijo. Ia a bordo despedir-se de mim, e as
palavras que me dizia, os gestos de lenço, os proprios olhos que
enxugava eram taes que me commoviam tambem. A ultima vez não foi a
bordo.

--- Venha...

--- Não posso.

--- Está com medo?

--- Não; não posso. Agora, adeus, Bentinho, não sei se me verá mais;
creio que vou para a outra Europa, a eterna...

Não foi logo; minha mãe embarcou primeiro. Procura no cemiterio de S.~João
Baptista uma spultura sem nome, com esta unica indicação: \emph{Uma
santa}. É ahi. Fiz fazer essa inscripção com alguma difficuldade. O
esculptor achou-a exquisita; o administrador do cemiterio consultou o
vigario da parochia; este ponderou-me que as santas estão no altar e no
ceu.

--- Mas, perdão, atalhei, eu não quero dizer que naquella sepultura
está uma canonisada. A minha ideia é dar com tal palavra uma definição
terrena de todas as virtudes que a finada possuiu na vida. Tanto é
assim que, sendo a modestia uma dellas, desejo conserval-a posthuma,
não lhe escrevendo o nome.

--- Todavia, o nome, a filiação, as datas...

--- Quem se importará com datas, filiação, nem nomes, depois que eu
acabar?

--- Quer dizer que era uma santa senhora, não?

--- Justamente. O protonotario Cabral, se fosse vivo, confirmaria aqui
o que lhe digo.

--- Nem eu contesto a verdade, hesito só na formula. Conheceu então o
protonotario?

--- Conheci-o. Era um padre-modelo.

--- Bom canonista, bom latinista, pio e caridoso, continuou o vigario.

--- E possuia algumas prendas de sociedade, disse eu; lá em casa sempre
ouvi que era insigne parceiro ao gamão...

--- Tinha muito bom dado! suspirou lentamente o vigario. Um dado de
mestre!

--- Então, parece-lhe...?

--- Uma vez que não ha outro sentido, nem poderia havel-o, sim, senhor,
admitte-se...

José Dias assistiu a estas diligencias, com grande melancolia. No fim,
quando saimos, disse mal do padre, chamou-lhe meticuloso. Só lhe achava
desculpa por não ter conhecido minha mãe, nem elle nem os outros homens
do cemiterio.

--- Não a conheceram; se a conhecessem, mandariam esculpir \emph{santissima}.




\chapt{CXLIII}{O ultimo superlativo.}

Não foi o ultimo superlativo de José Dias. Outros teve que não vale a
pena escrever aqui, até que veiu o ultimo, o melhor delles, o mais doce,
o que lhe fez da morte um pedaço de vida. Já então morava commigo;
posto que minha mãe lhe deixasse uma pequena lembrança, veiu dizer-me
que, com legado ou sem elle, não se separaria de mim. Talvez a
esperança delle fosse enterrar-me. Correspondia-se com Capitú, a quem
pedia que lhe mandasse o retrato de Ezequiel; mas Capitú ia adiando a
remessa de correio a correio, até que elle não pediu mais nada, a não
ser o coração do joven estudante; pedia-lhe tambem que não deixasse de
falar a Ezequiel no velho amigo do pae e do avô, «destinado pelo ceu a
amar o mesmo sangue.» Era assim que elle preparava os cuidados da
terceira geração; mas a morte veiu antes de Ezequiel. A doença foi
rapida. Mandei chamar um medico homeopatha.

--- Não, Bentinho, disse elle; basta um allopatha; em todas as escolas
se morre. Demais, foram ideias da mocidade, que o tempo levou;
converto-me á fé de meus paes. A allopathia é o catholicismo da
medicina...

Morreu sereno, após uma agonia curta. Pouco antes ouviu que o ceu
estava lindo, e pediu que abrissemos a janella.

--- Não, o ar póde fazer-lhe mal.

--- Que mal? Ar é vida.

Abrimos a janella. Realmente, estava um ceu azul e claro. José Dias
soergueu-se e olhou para fóra; após alguns instantes, deixou cair a
cabeça, murmurando: Lindissimo! Foi a ultima palavra que proferiu neste
mundo. Pobre José Dias! Porque hei de negar que chorei por elle?




\chapt{CXLIV}{Uma pergunta tardia.}

Assim chorem por mim todos os olhos de amigos e amigas que deixo neste
mundo, mas não é provavel. Tenho-me feito esquecer. Moro longe e saio
pouco. Não é que haja effectivamente ligado as duas pontas da vida.
Esta casa do Engenho Novo, comquanto reproduza a de Matacavallos,
apenas me lembra aquella, e mais por effeito de comparação e de
reflexão que de sentimento. Já disse isto mesmo.

Hão de perguntar-me por que razão, tendo a propria casa velha, na mesma
rua antiga, não impedi que a demolissem e vim reproduzil-a nesta. A
pergunta devia ser feita a principio, mas aqui vae a resposta. A razão
é que, logo que minha mãe morreu, querendo ir para lá, fiz primeiro uma
longa visita de inspecção por alguns dias, e toda a casa me desconheceu.
No quintal a aroeira e a pitangueira, o poço, a caçamba velha e o
lavadouro, nada sabia de mim. A casuarina era a mesma que eu deixára ao
fundo, mas o tronco, em vez de recto, como outr'ora, tinha agora um ar
de ponto de interrogação; naturalmente pasmava do intruso. Corri os
olhos pelo ar, buscando algum pensamento que alli deixasse, e não achei
nenhum. Ao contrario, a ramagem começou a sussurrar alguma cousa que
não entendi logo, e parece que era a cantiga das manhãs novas. Ao pé
dessa musica sonora e jovial, ouvi tambem o grunhir dos porcos, especie
de troça concentrada e philosophica.

Tudo me era extranho e adverso. Deixei que demolissem a casa, e, mais
tarde, quando vim para o Engenho Novo, lembrou-me fazer esta
reproducção por explicações que dei ao architecto segundo contei em
tempo.




\chapt{CXLV}{O regresso.}

Ora, foi já nesta casa que um dia, estando a vestir-me para almoçar,
recebi um cartão com este nome:

Ezequiel A.~de Santiago

--- A pessoa está ahi? perguntei ao criado.

--- Sim, senhor; ficou esperando.

Não fui logo, logo; fil-o esperar uns dez ou quinze minutos na sala. Só
depois é que me lembrou que cumpria ter certo alvoroço e correr,
abraçal-o, falar-lhe na mãe. A mãe, --- creio que ainda não disse que
estava morta e enterrada. Estava; lá repousa na velha Suissa. Acabei de
vestir-me ás pressas. Quando saí do quarto, tomei ares de pae, um pae
entre manso e crespo, metade Dom Casmurro. Ao entrar na sala, dei com
um rapaz, de costas, mirando o busto de Massinissa, pintado na parede.
Vim cauteloso, e não fiz rumor. Não obstante, ouviu-me os passos, e
voltou-se depressa. Conheceu-me pelos retratos e correu para mim. Não
me mexi; era nem mais nem menos o meu antigo e joven companheiro do
seminario de S.~José, um pouco mais baixo, menos cheio de corpo, e,
salvo as cores, que eram vivas, o mesmo rosto do meu amigo. Trajava á
moderna, naturalmente, e as maneiras eram differentes, mas o aspecto
geral reproduzia a pessoa morta. Era o proprio, o exacto, o verdadeiro
Escobar. Era o meu comborço; era o filho de seu pae. Vestia de luto
pela mãe; eu tambem estava de preto. Sentámo-nos.

--- Papae não faz differença dos ultimos retratos, disse-me elle.

A voz era a mesma de Escobar, o sotaque era afrancezado. Expliquei-lhe
que realmente pouco diferia do que era, e comecei um interrogatorio
para ter menos que falar e dominar assim a minha emoção. Mas isto mesmo
dava animação á cara delle, e o meu collega do seminario ia resurgindo
cada vez mais do cemiterio. Eil-o aqui, deante de mim, com egual riso e
maior respeito; total, o mesmo obsequio e a mesma graça. Anciava por
ver-me. A mãe falava muito em mim, louvando-me extraordinariamente,
como o homem mais puro do mundo, o mais digno de ser querido.

--- Morreu bonita, concluiu.

--- Vamos almoçar.

Se pensas que o almoço foi amargo, enganas-te. Teve seus minutos de
aborrecimento, é verdade; a principio doeu-me que Ezequiel não fosse
realmente meu filho, que me não completasse e continuasse. Se o rapaz
tem saido á mãe, eu acabava crendo tudo, tanto mais facilmente quanto
que elle parecia haver-me deixado na vespera, evocava a meninice,
scenas e palavras, a ida para o collegio..

--- Papae ainda se lembra quando me levou para o collegio? perguntou
rindo.

--- Pois não hei de lembrar-me?

--- Era na Lapa; eu ia desesperado, e papae não parava, dava-me cada
puxão, e eu com as perninhas.... Sim, senhor, acceito.

Estendeu o copo ao vinho que eu lhe offerecia, bebeu um gole, e
continuou a comer. Escobar comia assim tambem, com a cara mettida no
prato. Contou-me a vida na Europa, os estudos, particularmente os de
archeologia, que era a sua paixão. Falava da antiguidade com amor,
contava o Egypto e os seus milhares de seculos, sem se perder nos
algarismos; tinha a cabeça arithmetica do pae. Eu, posto que a ideia da
paternidade do outro me estivesse já familiar, não gostava da
resurreição. Ás vezes, fechava os olhos para não ver gestos nem nada,
mas o diabrete falava e ria, e o defuncto falava e ria por elle.

Não havendo remedio senão ficar com elle, fiz-me pae devéras. A ideia
de que pudesse ter visto alguma photographia de Escobar, que Capitú por
descuido levasse comsigo, não me acudiu, nem, se acudisse, persistiria.
Ezequiel cria em mim, como na mãe. Se fosse vivo José Dias, acharia
nelle a minha propria pessoa. Prima Justina quiz vel-o, mas estando
enferma, pediu-me que o levasse lá. Conhecia aquella parenta. Creio que
o desejo de ver Ezequiel era para o fim de verificar no moço o debuxo
que por ventura houvesse achado no menino. Seria um regalo ultimo;
atalhei-o a tempo.

--- Está muito mal, disse eu a Ezequiel que queria ir vel-a, qualquer
emoção póde trazer-lhe a morte. Iremos vel-a, quando ficar melhor.

Não fomos; a morte levou-a dentro de poucos dias. Ella descança no
Senhor ou como quer que seja. Ezequiel viu-lhe a cara no caixão e não a
conheceu, nem podia, tão outra a fizeram os annos e a morte. No caminho
para o cemiterio, iam-lhe lembrando uma porção de cousas, alguma rua,
alguma torre, um trecho de praia, e era todo alegria. Assim acontecia
sempre que voltava para casa, ao fim do dia; contava-me as recordações
que ia recebendo das ruas e das casas. Admirava-se que muitas destas
fossem as mesmas que elle deixára, como se as casas morressem meninas.

Ao cabo de seis mezes, Ezequiel falou-me em uma viagem á Grecia, ao
Egypto, e á Palestina, viagem scientifica, promessa feita a alguns
amigos.

--- De que sexo? perguntei rindo.

Sorriu vexado, e respondeu-me que as mulheres eram creaturas tão da
moda e do dia que nunca haviam de entender uma ruina de trinta seculos.
Eram dous collegas da universidade. Prometti-lhe recursos, e dei-lhe
logo os primeiros dinheiros precisos. Commigo disse que uma das
consequencias dos amores furtivos do pae era pagar eu as archeologias
do filho; antes lhe pagasse a lepra.... Quando esta ideia me atravessou
o cerebro, senti-me tão cruel e perverso que peguei no rapaz, e quiz
apertal-o ao coração, mas recuei; encarei-o depois, como se faz a um
filho de verdade; os olhos que elle me deitou foram ternos e
agradecidos.




\chapt{CXLVI}{Não houve lepra.}

Não houve lepra, mas ha febres por todas essas terras humanas, sejam
velhas ou novas. Onze mezes depois, Ezequiel morreu de uma febre
typhoide, e foi enterrado nas immediações de Jerusalem, onde os dous
amigos da universidade lhe levantaram um tumulo com esta inscripção,
tirada do propheta Ezequiel, em grego: «Tu eras perfeito nos teus
caminhos.» Mandaram-me ambos os textos, grego e latino, o desenho da
sepultura, a conta das despesas e o resto do dinheiro que elle levava;
pagaria o triplo para não tornar a vel-o.

Como quizesse verificar o texto, consultei a minha Vulgata, e achei que
era exacto, mas tinha ainda um complemento: «Tu eras perfeito nos teus
caminhos, \emph{desde o dia da tua creação}.» Parei e perguntei calado:
«Quando seria o dia da creação de Ezequiel?» Ninguem me respondeu. Eis
ahi mais um mysterio para ajuntar aos tantos deste mundo. Apesar de
tudo, jantei bem e fui ao theatro.




\chapt{CXLVII}{A exposição retrospectiva.}

Já sabes que a minha alma, por mais lacerada que tenha sido, não ficou
ahi para um canto como uma flôr livida e solitaria. Não lhe dei essa
côr ou descôr. Vivi o melhor que pude, sem me faltarem amigas que me
consolassem da primeira. Caprichos de pouca dura, é verdade. Ellas é
que me deixavam como pessoas que assistem a uma exposição retrospectiva,
e, ou se fartam de vel-a, ou a luz da sala esmorece. Uma só dessas
visitas tinha carro á porta e cocheiro de libré. As outras iam
modestamente, \emph{calcante pede}, e, se chovia, eu é que ia buscar um
carro de praça, e as mettia dentro, com grandes despedidas, e maiores
recommendações:

--- Levas o catalogo?

--- Levo; até amanhã.

--- Até amanhã.

Não voltavam mais. Eu ficava á porta, esperando, ia até á esquina,
espiava, consultava o relogio, e não via nada nem ninguem. Então, se
apparecia outra visita, dava-lhe o braço, entravamos, mostrava-lhe as
paizagens, os quadros historicos ou de genero, uma aquarella, um pastel,
uma \emph{gouache}, e tambem esta cançava, e ia embora com o catalogo
na mão....




\chapt{CXLVIII}{E bem, e o resto?}

Agora, porque é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a
primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de
ressaca, nem os de cigana obliqua e dissimulada. Mas não é este
propriamente o resto do livro. O resto é saber se a Capitú da praia da
Gloria já estava dentro da de Matacavallos, ou se esta foi mudada
naquella por effeito de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach,
se soubesse dos meus primeiros ciumes, dir-me-hia, como no seu cap.~IX,
vers.~1: «Não tenhas ciumes de tua mulher para que ella não se metta a
enganar-te com a malicia que apprender de ti.» Mas eu creio que não, e
tu concordarás commigo; se te lembras bem da Capitú menina, has de
reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.

E bem, qualquer que seja a solução, uma cousa fica, e é a summa das
summas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o
meu maior amigo, tao extremosos ambos e tão queridos tambem, quiz o
destino que acabassem juntando-se e enganando-me.... A terra lhes seja
leve! Vamos á \emph{Historia dos suburbios}.



\finpg{FIM}