Aproveitando o ensejo do Dia do Índio, queria chamar a atenção para o estado lamentável da arqueologia indígena brasileira, e especialmente da juntura crítica em que se encontram nossos museus indígenas. Gosto muito de museus, e sempre que me encontro em uma nova cidade procuro fazer uma visita aos exemplares locais. Assim, numa viagem que fiz a Campo Grande em 2009, fiz questão de visitar o http://www.mcdb.org.br/ Museu das Culturas Dom Bosco (MCDB) Em termos de acervo, deve ser um dos maiores museus indígenas do país, com renome mundial. Fundado por missionários salesianos em 1951, hoje ele pertence à Universidade Católica Dom Bosco. O acervo, se bem me lembro, tem mais de 17.000 artefatos indígenas. (O museu também tem uma grande coleção de espécimes biológicos, incluindo cenetnas de aves e animais empalhados; mas quando visitei essa parte do acervo ainda estava amontoada de qualquer jeito num grande galpão.) Em 2006 o MCDB foi transferido para um novo prédio, no enorme Parque das Nações Indígenas em Campo Grande. As novas instalações são fora de série: um prédio grande e luxuosíssimo, de fazer inveja a muitos museus do 1o. mundo. Tem arquitetura moderna, murais de concreto esculpido, vitrines elegantes e imaginativas --- inclusive umas com vidro espesso, embutidas no piso, sobre as quais andam os visitantes. Centenas de artefatos indígenas, muito bonitos e bem conservados, estão expostos ali. Porém, em termos de informação ou educação, o MCDB (pelo menos, como ele era em 2009) tem valor ZERO. Passei uma tarde inteira no museu, e quando saí não sabia nada mais sobre os índios de MS do que sabia quando entrei. E não consigo imaginar como alguém, índígena ou cara-pálida, poderia aproveitar algo de uma visita. A causa dessa falha é uma nova praga que há alguns anos está assolando os museus de todo mundo, mais destrutiva que qualquer traça, fungo ou caruncho. Trata-se do /Museologus vulgaris/ --- vulgarmente conhecido "museólogo" Essa praga é uma nova profissão, cujos membros tem um diploma que supostamente os qualifica para dirigir e organizar museus em geral. Não sei se no Brasil essa profissão tem reserva legal de mercado, mas o fato é que museólogos hoje estão tomando o controle efetivo de muitos museus, no Brasil e no mundo. Mas acontece que museologia é um curso técnico ou de graduação, cujos aspectos técnicos (quando os há) se limitam a técnicas de conservação e restauração. Assim, o museólogo geralmente não sabe NADA de arqueologia, biologia, história, pintura, ou seja lá o que for o tema do museu. Em consequência, não sabe reconhecer nem comunicar o valor científico, histórico ou artístico do seu acervo. Sua visão do museu se limita aos aspectos estéticos e midiáticos. Em vez de cuidar do valor científico e documentário do acervo, o museólogo só pensa em tornar o museu mais bonito, espetacular e divertido. Ou seja, a direção dos museus está sendo tirada das mãos dos especialistas e entregue a meros decoradores de vitrine. O Museu Dom Bosco é um perfeito exemplo desse problema. No período em que cresceu e conquistou sua fama, ele era dirigido por missionários; que, embora não fossem arqueólogos ou antropólogos profissionais, eram movidos por genuíno interesse científico, e organizaram a coleção de acordo. Porém os museólogos que assumiram seu lugar, depois da mudança para o prédio novo, aparentemente não compartilham do mesmo espírito. Assim, no novo museu, os artefatos parecem ter sido agrupados e arranjados apenas por critérios estéticos e não científicos ou educativos. Em particular, não havia NENHUMA etiqueta ou legenda explicativa. Pior: os novos curadores jutaram algumas dúzias de etiquetas da exposição original, e fizeram delas um collage artístico, que penduraram na entrada do novo prédio. No novo museu, diante de uma vitrine cheia de lanças enfeitadas, o visitante não tem como saber a que tribo e época elas pertenceram; se elas são ornamentais ou utilitárias; se serviam para caça, pesca, guerra, ou dança; nem mesmo se são autênticas, reconstruções, ou artesanato para turistas. E isso vale para todo os artigos expostos, desde abanos até zarabatanas. O que é que o visitante pode aprender olhando para tais vitrines? A reforma pode ter também prejudicado o valor do museu como recurso para pesquisa. Isso porque um objeto arqueológico só tem valor científico se vier acompanhado de informações precisas sobre o local onde foi encontrado, como foi coletado, que outros objetos havia em seu entorno, etc.. Sem essa informação, o objeto é inútil para o arqueólogo. O mesmo vale para espécimes biológicos e antropológicos, relíquias históricas, pinturas, etc.. Então, rezo para que os museólogos do MCDB não tenham jogado fora os catálogos e documentação juntados pelos missionários, como fizeram com suas etiquetas. Mas, pelo que tenho visto acontecer em outros museus, não apostaria um centavo nisso. Supostamente o MCDB tem um catálogo informatizado; mas, conhecendo o trabalho que dá manter uma base de 17.000 registros, aposto que seu conteúdo é uma pálida sombra do catálogo original em papel, e está cheio de erros. O mesmo drama está se desenrolando em outros museus do país. Nessa mesma viagem a Campo Grande, visitei o Museu Arqueológico da UFMS. Em termos de tamanho, é bem mais modesto que o MCDB, apenas um par de salas. Mas encontrei lá a mesma calamidade: lindas vitrines de vidro, com alguns artefatos aleatórios, evidentemente escolhidos e arrumados por critérios puramente estéticos --- e totalmente sem legendas. Perguntei pra museóloga de plantão porque não havia etiquetas. "Porque", disse ela, "se colocarmos etiquetas, as pessoas ficam lendo, e não prestam atenção no que eu falo." Ugh! A tão decantada mostra "Brasil Antes", que visitei no Rio há alguns anos, foi outro exemplo de arqueologia reduzida a decoração de ambientes: nota dez em beleza, nota zero em informação. O cúmulo foi uma parede inteira tomada por dois enormes decalques de petroglifos da Serra da Capivara, no Piauí --- ambos do *mesmo* conjunto de petroglifos, só que tiradas e realçadas com cores um pouco diferentes. Talvez os organizadores não tenham percebido a duplicação; ou perceberam, e acharam que não tinha importância. Não sei qual é pior. Visitei o Museu Nacional, na Quinta da Boa vista, há coisa de uns dez anos. Na época, o museu todo estava em mau estado (ao contrário do Museu Histórico, perto do Santos Dumont). As paredes externas estavam inclusive todas pichadas: devia ser o único Museu Nacional no mundo com essa "distinção". Mesmo nesse contexto, a ala indígena foi decepcionante. Lá havia legendas, mas em geral sem datas, ou mesmo sem indicação de local. Em Niterói, fiz questão de visitar o museu de Itaipu, na praia de mesmo nome. Naquele lugar há um sambaquí coberto por uma duna de areia, onde se encontram ossos e artefatos de índios pré-cabralinos. Lá mostraram-me o acervo do museu: um pedaço de sambaquí, e um pote de plástico, desses de margarina, contendo alguns fragmentos de ossos. Sobre o museu do IAB, em Belford Roxo (RJ), tenho um relato simplesmente horripilante (numa meia-noite de lua cheia eu talvez conte). Há algumas honradas exceções. O Museu de Arqueologia e Etnografia (MAE), no campus da USP, ainda é dirigido por arqueólogos competentes. Em Florianópolis, soube que havia um museu de arqueologia, mas ninguém sabia me dizer onde ficava. Por fim descobri que ficava no último andar de um colégio (não universidade!) de padres. O museu é pequeno mas bem cuidado; só que era tão pouco frequentado que só abria quando aparecia um visitante. Mas não sei quanto tempo essas exceções vão durar. O museu de Florianópolis, que nasceu como o Dom Bosco, pode logo seguir o mesmo caminho. Quanto será que o MAE-USP aguenta? Infelizmente, a invasão dos museólogos é uma praga mundial. Em 2004 eu participei de um congresso em Berlim (ICHIM 2004) que antigamente abrigava trabalhos técnicos de computação aplicada a arqueologia. Para minha decepção, a edição de 2004 foi inteiramente tomada por museólogos. O assunto de praticamente todas as palestras foi como tornar museus mais parecidos com videogames, na esperança de assim atrair crianças viciadas nos ditos cujos. Outra decepção eu tive no ano passado, quando visitei a Acadmia de Ciências da Califórnia em San Francisco. O museu fantástico que, eu conheci durante meu doutorado, foi inteiramente reformado. O prédio clássico foi substituído, a um custo astronômico, por um galpão de aço e vidro, com arquitetura de shopping de luxo --- mas apenas uma fração do espaço útil para exibições. Assim, o museu hoje tem talvez 1/3 do conteúdo efetivo que tinha 20 anos atrás --- e um ingresso 5 vezes mais caro. Ao longo de sua história, museus sofreram incontáveis danos por incêndios, enchentes, terremotos, insetos, guerras, roubos, e principalmente por decaso e falta de recursos. Mesmo assim, no geral eles conseguiram desempenhar bem seu papel, e contribuíram imensamente para a educação de seus cidadãos. Mas o advento dos museólogos agora ameaça conseguir em uma ou duas décadas o que todas essas calamidades não conseguiram em muitos séculos: a destruição de todos os museus do mundo. Haverá algum meio de evitar essa catástrofe?